quinta-feira, dezembro 5

Que nem cambucá: Casca grossa, miolo doce

A D. Maria Luísa da Cunha Jaguaribe tinha dupla personalidade. Tanto era áspera e desagradável para os que não lhe calhavam, como charmosa e delicada para os que lhe caíam no goto. Duas consistências, que nem cambucá: casca grossa, miolo doce. É por isto que a casa vivia cheia dos eleitos do segundo grupo. Começava à hora do café, com a presença da tia Regina que chegava de rosário em punho e tinha a peculiaridade de desfiá-lo conta por conta, mistério por mistério, comendo ou conversando. Ia entremeando uma mastigadela de pão cheia de graça, o Senhor é convosco, do bolo de fubá Santa Maria Mãe de Deus, um gole de xícara agora e na hora de nossa morte, com as novidades do dia, horrorizada de saber que a Siá Beta tinha se mudado para a Rua do Sapo que estais no céu, santificado seja Vosso Nome e indignada com o mutismo do Paleta durante visita que lhe fizera e em que o grosseirão, Inhazinha, nem entrara em conversação, enfim... seja feita Vossa vontade porque cada um dá o que tem, assim como nós perdoamos os nossos devedores, não nos deixeis cair em tentação, que homem insuportável! coitada de Berta! e livrai-nos Senhor de todo mal, amém... Outro, pontual, era o Dr. Bernardo Aroeira com D. Manuelita, sua mulher. Eram compadres de meus avós e vinham sempre com um dos filhos — o Mário, o Biscuit, o Manuelito ou uma das filhas — a Alice, a Mariquinhas, a Simini. Elas arvoravam, invariavelmente, penteado idêntico e esquisito em que figurava fita larga como barrigueira, passada na testa feito curativo de cabeça quebrada. Ultimamente a D. Manuelita tornara-se notória por doença que lhe dera de crescer a barriga e com a qual não tinham atinado nem o Dr. Lindolfo nem o Dr. Vilaça. A Senhorinha, parteira, dizia que era menino. Os médicos, que absolutamente! Não pode ser gravidez, não, Dona Senhorinha... Pois não vê que D. Manuelita é pessoa de cinquenta e tantos, que teve um filho depois do outro e que o mais moço está agora com vinte anos? ora esta! Pois a razão estava com a Senhorinha e o casal Aroeira à hora dos netos, ganhou mais um filho — o Carlinhos — que a mãe de cabeça branca amamentava muito à vontade, rindo tanto, tanto, tanto... e mostrando o rebento de casa em casa, em companhia do marido que depois dessa paternidade tardia adotara ar a um tempo sonso, modesto e capaz. Tratavam-no com admiração no Clube, na Rua Halfeld, no Foltran e na redação de O Farol. Sim senhor, Seu Aroeira, muito bem...
Pedro Nava, "Balão Cativo" 

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