segunda-feira, abril 7

Eu disse pra moça: 'Solta os bichos!'

Foi semana passada no Jardim Botânico, quando participei na livraria Janela de uma palestra com Marcelo Moutinho, que lançava seu novo (ótimo) livro de crônicas, “O último dia da infância”. Uma moça da plateia com uma franjinha vintage ao estilo Elsa Martinelli pediu o microfone.

Ela disse que gostava de escrever, que tinha até publicado um conto numa plaquete da livraria, mas queria mesmo era adentrar em mundos mais próximos aos do cotidiano das pessoas, narrar o que lhes ia de doméstico na existência, aqueles detalhes que parecem tão pequenos, tão sem importância e, no entanto, explicam as vidas. A moça passou a mão na franjinha, um pouco para acertar o alinhamento, outro tanto para tomar coragem. Perguntou: “O que faço para escrever crônicas?”.

Eu poderia esbanjar charme intelectual, citar os autores de sempre e aborrecer a audiência com a velha história de quem-não-lê-não-escreve. Não fi-lo. Cronistas não se levam tão a sério e, afinal, ela já era iniciada nos prazeres do texto.


Recomendo sempre que antes de pensar na Academia Brasileira de Letras, o candidato se inscreva na academia de ginástica mais próxima. Escrever é atividade física, não é só malhação do cérebro. Parte do corpo se espreme o dia inteiro contra o assento da cadeira, outra parte se debruça estressada sobre o notebook na esperança, durante muitas horas vã, de que surja alguma ideia na tela. Escrever dói, castiga os músculos do cóccix até o pescoço.

Recuei também desse aconselhamento porque, via-se com clareza, embora eu tenha sido bastante discreto no processo de observação, que era moça exercitada nas melhores séries da ginástica pós-moderna. De sua mochila saía o cabeçote típico, tão Smart Fit, de uma garrafa com shake de whey. Lembrei então de outro recurso muito útil, quase fundamental, a quem pretende escrever este gênero, e foi a ele que recorri para, com sinceridade crônica, aconselhar a moça no seu projeto de ser cronista: “Tenha um bichinho”, sugeri.

Ter um animal doméstico, um gatinho, um cãozinho, é tão útil para o exercício da profissão quanto a leitura das 710 páginas de “Todas as crônicas” que a Rocco acabou de lançar com a obra de Clarice Lispector. Quando a busca de inspiração já se esgotou, quando a meia dúzia de voltas em Ipanema se mostrou improdutiva na busca de assunto, você vai olhar em desespero para os cantos da casa – e lá estarão eles, o cachorro aos seus pés, o gato em cima do computador, todos se oferecendo, musas e musos, para preencher a página em branco.

Animais domésticos são exemplos de amizade profunda, reproduzem qualidades, medos e desejos, essas condições humanas que, postas no papel, fazem da crônica um gênero de características tão delicadas. Otto Lara Rezende levou o país às lágrimas em “Volta, Zeno”, a crônica sobre o desaparecimento do gato em meio a uma mudança de residência. Carlos Heitor Cony chorou a morte da cadelinha Mila em dúzias de textos. Machado de Assis, romancista maior, cronista menor, não tinha animal em casa.

Eu sugeri à moça que tivesse o seu gatinho, o seu cãozinho, esses pets maravilhosos e cheios de assunto, mas que isso era só o início da crônica. Vida do cronista é dureza. Depois, com humor, estilo e ração personalizada, é preciso soltar os bichos.

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