segunda-feira, junho 2

A morte é uma extravagância

Há poucos dias fiz uma ressonância magnética abdominal. Vesti uma espécie de pijama extremamente largo, e, a seguir, entrei numa minúscula sala blindada. Uma enfermeira prendeu-me a uma maca estreita. Saiu, fechando a pesada porta, enquanto a maca deslizava para o interior de um cilindro metálico — e lá fui eu, como um pãozinho cru entrando no forno.

Temos de permanecer encerrados naquele cilindro, sem nos movermos, durante intermináveis 20 minutos, enquanto nos torturam com uma suave musiquinha enfadonha, intercalada por fortes rajadas de metralhadora.

Perguntei a alguns amigos o que fizeram, durante tal eternidade, para não soçobrarem ao terror. “Eu cantei”, disse-me a mãe dos meus filhos mais velhos: “Escolhi cinco temas do Gilberto Gil, e cantei-os como se estivesse numa festa de família!”. Sorte a do cilindro, porque ela canta muito bem.

Um outro amigo, matemático, disse-me que tentou comprovar a veracidade da Conjuntura de Collatz, um quebra-cabeças aparentemente simples, mas insondável. Uma piada muito popular (entre matemáticos) durante os anos da Guerra Fria, assegurava que a Conjuntura de Collatz teria sido inventada pelos serviços secretos soviéticos para distrair os cientistas ocidentais.

Quanto a mim, fechei os olhos e sonhei que estava morto. Passeava ao longo de uma praia, que era também uma biblioteca. Ao fundo, sentado numa rocha, junto ao mar, vi um homem muito velho. A mão direita acariciava uma bengala invisível. Era Jorge Luis Borges. Aproximei-me:

— O senhor também está morto? — perguntei.

— Não tenho a certeza. — retorquiu Borges. — Talvez eu seja apenas um livro à espera de um leitor.

— Eu sim, estou morto! — confessei. — Completamente morto! Mas mesmo sabendo que estou morto, e que não posso ficar mais morto do que estou agora, continuo sentindo muito medo da morte.

Borges tentou tranquilizar-me:

— A vida é um livro. Você pode sempre voltar ao início.

Ao sentar-me diante dele, noutra rocha, percebi que tinha os sapatos cheios de areia. Descalcei-os e sacudi-os.

— E a solidão? — perguntei. — Sabe dizer-me o que é a solidão?

Borges hesitou um breve instante. A seguir agitou no ar a bengala invisível, apontando os livros ao redor:

— Está vendo esta biblioteca? Imagine que todos estes livros tivessem sido escritos por si. Tantos livros e uma única voz. A esse inferno poderíamos chamar solidão.

Quando me retiraram, meio zonzo, da máquina de ressonância magnética eu já sabia que o meu próximo romance seria sobre a morte e a solidão; já criara o início de um enredo, algumas frases, e até o personagem principal — um geólogo e poeta, que, diagnosticado com uma doença incurável, compra uma igreja abandonada, junto a uma falésia, em pleno deserto do Namibe, em Angola, e ali se instala, com alguns livros e muitas interrogações. “Morrer é uma superstição extremamente bem sucedida” — defende o meu geólogo. — “Penso na vida como sendo uma música em loop infinito. Em algum momento ela começa, desenvolve-se, mas, na verdade, nunca termina.”

Agora só preciso escrever o romance. Abençoada ressonância magnética.
José Eduardo Agualusa

Nenhum comentário:

Postar um comentário