Andava com um passinho leve — pardal ciscando a terra. Seu sorriso, bastava reparar, era suspenso como o das hienas. O coração, contudo, um imenso caldeirão onde borbulhavam a inveja, a mágoa, o desamor. Diziam que seu marido partiu atrás de menos martírios. E a todos que a fada seduzia a bruxa servia sua poção amarga. Seu cachorro branco, tímido, portava uma doença de pele. Não sei se ele almejava o céu ou o inferno. O cão, ao olhar, suplicava carinho, mas não se deixava acariciar. Teria o cachorro também duas almas? A madrasta, arreada sobre o muro, nego ciava tomate com a mulher de duas almas. Eu suspeitava.
A cidade acordava lerda, como se fosse possível escolher os sonhos. O sino da igreja serrava as ruas, becos, praças. Os habitantes sentiam-se prenhes de Deus e perdoados dos pecados ainda por cometerem. O cheiro do café conciliava as almas e a vida, provisoriamente. Ao tomarem das palavras, os lamentos rabiscavam o povoado como se impedidos de escolher outro destino.
Bartolomeu Campos de Queirós, "Vermelho Amargo"
Bartolomeu Campos de Queirós, "Vermelho Amargo"

Nenhum comentário:
Postar um comentário