Amigos epistolares
Não faz tanto tempo – 15 anos? 20 anos? – era a delícia das cartas em papel que faziam chegar o cheiro do outro, os erros e as paixões e as saudades do outro. Pena que tenha ficado raro sentir essas trilhas manuscritas do amigo, seus descaminhos, seus circunlóquios, mas, mesmo assim, por outros meios, sobrevivem os companheiros epistolares. Raros que sejam, eles ainda voltam de quando em quando sem maior interesse que o de se dar à prosa solta, num convívio de que fazem parte os desertos de espera por novas mensagens e os festins de leitura com suas exclamações, suas reticências e as muito francas opiniões sobre tudo.
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Niso Ramponi |
O amigo epistolar é aquele que frequenta nossa casa interna, incluindo aí o recinto de pensamentos lunares que, por qualquer razão, não abriríamos num encontro ao vivo. Não que o amigo epistolar seja menos amigo num encontro ao vivo, senão que esse tipo de amizade acontece numa dimensão paralela de existência em quem a palavra por si mesma tem um efeito sortílego de presença. Há amigos epistolares que não encontramos pessoalmente durante anos, ou mesmo por toda uma vida. Existem até os que evitam o cara a cara por medo de que surja uma distância, uma nuvem de cerimônia que nunca antes houve entre as palavras, ou pudor de que rebente uma paixão ou alguma outra surpresa incontornável.
É também magicamente físico o convívio entre os amigos epistolares. Um provoca ebulições no outro, ansiedade, euforia, súbitas gargalhadas e, às vezes, uma ligeira mágoa, a que se segue uma inquietude, a que se segue uma compreensão muda, por causa de um silêncio estendido. Há ainda a pedra na garganta quando as mensagens param, ou mais, quando sustam, não por capricho do amigo, não por uma vida atarefada ou por revanche numa guerra de silêncios. Quando as mensagens sustam porque um dia, e desse dia em diante, falta o amigo. Vem alguém falar em nome dele, participar a notícia, e então aquele medo de uma insuspeita distância se concretiza. Das muitas mortes que vamos amealhando nesta vida, essa é a que dói na alma do verbo. É a morte que nos lega um triste espólio de palavras incorrespondidas.Mariana Ianell
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