domingo, fevereiro 21

Livrarias em tempos modernos

Quando eu quero comprar uma roupa, o vendedor de roupas entende de tudo. Quando eu quero comprar um carro, o vendedor de carros também entende de tudo. Mas quando eu quero comprar um livro, o vendedor de livros nunca entende do produto que ele tem que vender.

Entrei numa livraria para pesquisar uns preços. Perguntei por A náusea, de Sartre. O rapaz consultou o sistema - coisa que eles adoram fazer - e encontrou uma cópia em uma prateleira lá no canto. Me disse o preço, eu li a contracapa e as orelhas. Ele perguntou se eu estudava Letras, eu respondi Jornalismo. Me indaguei o por quê da pergunta, se talvez estudantes de Letras têm desconto ou se são os únicos a lerem Sartre. Mas resolvi não esticar a conversa e segui para uma segunda livraria.

Lá, perguntei para outro rapaz pelo mesmo livro. Ele também foi consultar o sistema:

- Tem H?

Eu franzi a testa:

- Como assim?

Estiquei os olhos para ler o que ele estava digitando no computador que não "A náusea" e "Sartre". Estava escrito "Anáusea". 

- Não, é "a" espaço "náusea" - informei, acabando com seu neologismo do absurdo.

Ele se corrigiu, murmurou Jean-Paul Sartre em um falso sotaque francês e me disse "só por encomenda". Suspirei e fui embora pensando que vendedores de livros têm muito a aprender com vendedores de carros ou roupas. 

Eu não quero uma aula sobre Existencialismo francês quando eu consultar preços numa livraria, mas eu gostaria muito de ser orientado e informado sobre a obra, onde ela se encaixa no assunto, que outros títulos poderiam me ajudar na pesquisa. Eu gostaria que os vendedores de livros dialogassem comigo, assim como faz a mocinha da loja de roupas. As livrarias são formadas não por livreiros, mas por meros funcionários que consultam o sistema e buscam o livro na prateleira: operários de uma indústria em que pensar não é necessário e conhecer o produto que vende não é importante. 

Isso me lembra o filme Tempos modernos, de Charles Chaplin. O sujeito se resigna a ser um mero apertador de porcas e parafusos e não tem idéia do resultado final que sua fábrica produz, até ser literalmente engolido por uma das máquinas. O mercado das livrarias não exige de seus vendedores entendimento do assunto ou predileção pela literatura. Para trabalhar numa livraria basta saber acessar o sistema e buscar o livro na prateleira, sem criar vínculo com o cliente e sem estimulá-lo a leituras semelhantes. O conhecimento é um subproduto que se compra no escuro, ao contrário de roupas e automóveis. 

O mercado das "lojas de livros" seria mais esperto se percebesse que cliente bem orientado e bem atendido sempre volta e compra mais. As livrarias não passam de espaços bem iluminados, cheios de livros nas prateleiras, com vendedores desinteressados e computadores com acesso ao sistema. E isso é muito pior nas já comuns megastores, onde os vendedores foram trocados por terminais on-line em que você mesmo acessa o tal sistema numa tela sensível ao toque, sob um deslumbre tecnológico que não sacia carência alguma. Revolucionário mesmo é o livreiro que conhece os livros que vende, conversa com o cliente e participa de sua ânsia por conhecimento. Afinal, conhecimento não é sistema, é diálogo; não é máquina, é homem. 

Mas tudo bem, não é o fim do mundo. Para mim, o mundo acaba mesmo toda vez que eu vou numa livraria e admiro a prateleira dos mais vendidos. Ali está, diante de mim, o retrato da falência do indivíduo, uma fatia da ansiedade do Homem contemporâneo e um testemunho do desespero existencial que nos faz baratas tontas num mundo de ofertas coloridas e respostas ilusórias. Curiosamente, dessas respostas os vendedores de livros sabem me informar.

Acho que o buraco é mais embaixo, mesmo.



Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d'O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao "Correio da Manhã" e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.

A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d'O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de "Quarup". Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.

Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.

Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.

A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.

Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação. 

Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.
Vitor Diel (Texto extraído da revista "Diálogo médico", exemplar nº 1, 1989)

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