quarta-feira, fevereiro 10

Assim começa o livro...

O judeu da Babilônia, como era chamado o milagreiro, viajou a noite inteira na carruagem que o levava de Lublin ao vilarejo de Tarnigrod. O cocheiro, um sujeito baixinho e de ombros largos, permaneceu em silêncio durante toda a jornada. Cabeceava de sono e chicoteava o matungo, que andava devagar, passo a passo. A velha égua aprumava as orelhas e olhava para trás com seus olhos grandes, que exprimiam curiosidade humana e refletiam o brilho da lua cheia. Parecia indagar-se sobre aquele passageiro estranho, que trajava um casaco de veludo com forro de pele e tinha um chapéu também de pele na cabeça. Chegou mesmo a franzir o beiço escuro, forjando uma espécie de sorriso equino. O milagreiro estremeceu e murmurou uma fórmula mágica, levando o cocheiro a se dar conta de como seu passageiro era perigoso.

“Anda, égua preguiçosa!”

A carruagem passou por campos arados, montes de feno e um moinho de vento, o qual, girando lentamente, surgia, desaparecia e ressurgia. Seus braços abertos davam a impressão de apontar-lhes o caminho. Uma coruja piou e uma estrela cadente se desprendeu do céu, deixando um rastro ígneo atrás de si. O milagreiro se enrolou em seu xale de lã.

“Ai de mim!”, gemeu. “Já não sou páreo para eles.”

Referia-se aos seres infernais, os demônios aos quais dera combate a vida inteira. Agora que estava velho e fraco, começavam a vingar-se dele.

Chegara à Polônia cerca de quarenta anos antes — um homem alto, magro como um palito, envergando uma túnica comprida, listrada de amarelo e branco, e calçando as sandálias e as meias brancas usadas pelos judeus do Iêmen e de outros países árabes. Dizia chamar-se Kaddish ben Mazliach — um nome estranho — e ter aprendido a arte da clarividência e da cura na Babilônia. Curava a insônia e a demência, exorcizava dibukim e sabia como ajudar os homens recém-casados que sofriam de impotência ou que eram alvos de feitiços lançados pelo Mau-Olhado. Possuía também um espelho negro, no qual podiam ser vistos os desaparecidos e os mortos. Vivia como judeu devoto — nem nas noites frias de inverno se esquivava de frequentar as gélidas casas de banhos rituais e jejuava às segundas e quintas-feiras —, porém os rabinos e demais líderes comunitários o evitavam, acusando-o de ser um feiticeiro, um mensageiro do Exército Impuro. Corriam rumores de que tinha uma esposa mal-afamada em Roma, exatamente como tivera em seus dias o Falso Messias, o amaldiçoado Sabatai Tzvi. Em toda e qualquer cidade a que chegava, escondiam-se as mulheres grávidas, a fim de que seus olhos não pousassem nelas; e às moças se prescrevia o uso de aventais duplos, um na frente e outro atrás, como forma de proteção. Os pais não deixavam que seus filhos olhassem para ele. Em Lublin, onde após muitos anos de errância Kaddish se instalou na velhice, não o aceitaram no bairro judeu e vetaram sua entrada nas sinagogas e nas casas de estudos, obrigando-o a ir morar na periferia da cidade, num casebre caindo aos pedaços. Sua aparência era deplorável.

Tinha um rosto comprido, muito vermelho, e a pele escamosa. A barba desgrenhada voltava-se para todos os lados, como se sob o efeito de um vento incessante. Não abria o olho direito; dizia-se que tinha sido cegado pelo medo. Suas mãos tremiam e, tal qual um bebê recém-nascido,ele não conseguia sustentar a cabeça com firmeza. Eruditos e cabalistas havia muito o advertiam de que estava brincando com fogo e que os poderes do mal não o deixariam escapar facilmente.

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