Yvan Favre |
Mas as coisas e as pessoas alteraram-se. Eu próprio me modifiquei e ao modo de avaliar os outros. Volto à secretária, batuco nas teclas, acabei de escrever acerca de Jorge Amado, vou ser avô pela segunda vez, e dentro de poucos dias. Estou contente e atento. Não digo que estou feliz porque tudo o que me rodeia incita-me ao desgosto e ao desamparo. Penso no miúdo que vai nascer e no mundo que vai encontrar. Falo para ele e digo-lhe que, apesar de tudo, vale a pena tocar no batente e entrar aqui. Estamos à tua espera, meu rapaz. Parece que o ouço, ouvi-o mesmo, sussurrar qualquer som com o significado de uma aleluia.
Já tem nome: é o Manuel e vai juntar-se ao mano, o Francisco, numa família grande e calorosa: uns lavram a terra; outros lavram as palavras; outros tratam e curam os outros; e há os que cuidam de todos. Já aí vem. Um escasso espaço de tempo e cá estará. Viram-lhe o rosto, na ecografia, e é um rosto muito belo, como o do Francisco, e qualquer dos dois tem nome de rei. Uma emoção estremecida cola-se-me ao coração e aos olhos. Só os avós sabem o que este avô quer dizer.
Estou rodeado de noite e de silêncio. A noite é um outro mundo, e mais de metade da minha vida foi passada na noite. Máquinas de escrever, retinir dos telefones, remíntones, azucrinar manso dos telexes, há quanto tempo!, e o grito em forma de resignada indignação: a Censura cortou tudo! Um sudário de papel. Perpassam as faces daqueles que se cruzaram comigo. Os gestos inacabados e irresolutos; a tristeza e a melancolia dos que já nada tinham a perder ou a ganhar; e o tempo a roer o tempo e a roer-nos os sonhos, os desígnios acalentados, o amor que renasce na própria dissolução dos sentimentos. O amor.
Não me gastei nos jornais nem nos livros. Uma vez decorei esta frase de Sá de Miranda: "C'o que li, c'o que escrevi inda me não enfadei." Formosa ideia! Desculpem-me: é madrugada e a madrugada convida-nos a estas avulsas lembranças. Como sempre estive com pessoas e com palavras, penso amiúde nestas insignificâncias e destas formas. Não vale a pena desalentar.
Um miúdo vai nascer!
Baptista Bastos
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