Karl Lagerfeld em sua biblioteca |
Quem sofre da doença da acumulação tem lá seus momentos inefáveis. Basta uma tarde de coragem a revirar uma das muitas caixas, gavetas, pilhas de papeis ou sacolas atulhadas para descobrir o que os anos fizeram acumular, quantas e quais notícias em recortes de jornal, quantas cartas e de quais amigos, quantas fotos e em que companhia, cartões postais, estampas coloridas, folders, mapas, ingressos de exposições, teatro, cinema, bilhetes de trem, extratos bancários, fotocópias, recibos, como se essa montanha de minúsculos vestígios fosse a realização da fábula das pedrinhas deitadas pelo caminho, sinalizando o trajeto de volta para casa, exceto pela diferença fundamental entre vida e fábula, que é ficarem as pedrinhas depois de desaparecida a casa, isso sem contar que a nossa memória dos fatos, por mais profunda e precisa, nunca chega à altura das provas acumuladas, que mesmo havendo registros de data, hora e lugar, será sempre impossível remontar às emoções de cada circunstância. E ainda há as nossas próprias cartas, que às vezes nos voltam pelas mãos diligentes e invisíveis de seus destinatários mortos, como se agora expedidas a outros de nós mesmos, e aí está um dos momentos inefáveis do acumulador de tralhas. E quando a onda de souvenirs e papéis carcomidos se levanta, frustrando todas as tentativas de inventário, o que se acumulam são convites a mínimos lutos, um deixar que afinal se desmaterializem as pontas soltas de histórias já perdidas, afinidades caducadas, paixões tornadas cinzas, num ato radical de higiene e redenção que abra espaço a novas acumulações. Da gigantesca pilha de destroços, hão-de salvar-se, talvez numa só gaveta, umas poucas relíquias que ainda fazem estremecer um coração, e este será o pontinho túmido e fogoso de concentração da matéria que, um dia, lá na frente, explodirá numa nova reviravolta dos tempos como no álbum de um íntimo Big Bang.
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