sábado, janeiro 4
Estão aqui
Aqui não andam só os vivos - andam também os mortos. A humanidade é povoada pelos que se agitam numa existência transitória e baça, e pelos outros que se impõem como se estivessem vivos. Tudo está ligado e confundido. Sobre as casas há outra edificação, e uma trave ideal que o caruncho rói une todas as construções vulgares. Debalde todos os dias repelimos os mortos - todos os dias os mortos se misturam à nossa vida. E não nos largam.
Raul Brandão
Os Dragões
Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes. Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.
A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático Você também pode
Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.
Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.
A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já se alastrara e o velho gramático Você também pode
Um leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos. O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas.
Murilo Rubião, Obras completas
O.P.Q.R.S.T.U.V.X.Y.Z.
Segunda e definitiva carta ao Times
(Com vista ao Sr. redator da Seção Necrológica)
Escrevo-lhe esta em prantos, não para comunicar-lhe a morte de um ente querido, mas a minha própria morte. Como tudo que parece estranho, isto que acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples: é que resolvi suicidar-me e o senhor foi (à falta de um parente ou amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de antemão, a dolorosa notícia. Ao chegar esta à sua mesa repleta de avisos fúnebres e convites de missa de 7.° dia, já meu corpo, se foi encontrado, estará repousando no lugar que lhe compete dentro da imensidão da terra, ao lado de outros corpos de indigentes anônimos e esquecidos do mundo, com os quais possivelmente me comunicarei nas noites de tédio infinito.
Ainda uma hora atrás eu não sabia que hoje iria dormir em companhia dos mortos — hoje ou amanhã, conforme o tempo que levem para descobrir meu corpo franzino entres estes enormes eucaliptos e sob este cipreste que espero venha a cobrir um dia minha sepultura rasa. Como tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar muito tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte não é tão importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a nossa perfeita insignificância dentro do universo. A morte de um mosquito é tão importante quanto a minha própria morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar sabendo do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal. A comunhão dos mortos ainda pode ser uma realidade, pelo menos para os que nela creem piamente, à sombra da necrofilia católica ou que outro nome tenha; a comunhão dos vivos, porém, ainda está por existir e com toda certeza não existirá nunca, dada a pouca cordialidade existente entre os homens, como de resto entre todas as feras de uma mesma espécie.
Sei que é de praxe o suicida invocar grandes razões, e se possível belas, para justificar seu gesto tresloucado, como dizem — e sinto ter que decepcioná-lo não invocando nenhuma razão maior para explicar esta minha fuga prematura de um mundo que afinal é o único mundo com o qual podemos contar honestamente. Se eu quisesse, certamente poderia encontrar uma dúzia ou mesmo duas de belas razões (metafísicas, econômicas, políticas etc. etc.) capazes de justificar não apenas o meu suicídio como o suicídio de toda a humanidade, nos dias que correm como em todos os tempos. Prefiro, porém, ser honesto e dizer que me mato pelo prazer único de matar-me, como existem casos de sujeitos que matam um desconhecido qualquer (não falando da guerra) pelo simples prazer de vê-lo cair morto ou para experimentar uma arma nova. Sei que é raro isto acontecer, mas acontece; e o meu caso é exatamente um desses. Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida — e como não sou obrigado a viver de enjoo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista. É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios de dinheiro eu não pensasse em eliminar-me com tanta facilidade, mesmo porque o homem é suficientemente tolo para contentar-se com pouca coisa, eterna criança que é; acontece que hoje não é primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil francos, de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio, como o estaria para o homicídio também. O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.
E já que falo em simpatia, devo deixar claro que morro tão antipático como sempre vivi, tomando-se por base naturalmente a opinião dos outros a meu respeito, não a minha própria. A náusea que venho de sentir pelo meu corpo cheio de esperma, lágrimas e outros humores trágicos, é uma náusea que, bem ou mal, eu poderia superar com ajuda de alguma filosofia, desde que me dispusesse a praticar a necessária ginástica mental diante do espelho; ao passo que a antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes, entre o meu EU e o que se convencionou chamar o homem comum. Todas as normas de educação que me tentaram impingir no cérebro tinham por objetivo convencer-me de que eu e o meu vizinho éramos feitos da mesma massa e consequentemente da mesma qualidade de alma, havendo mesmo alguns exagerados que chegavam a proclamar que ambos éramos filhos do mesmo pai celestial, a cuja imagem e semelhança havíamos sido feitos em nove meses; a experiência, porém, convenceu-me exatamente do contrário, e não foi preciso muito tempo para eu descobrir que não passava de um pequeno monstro dentro da minha espécie, de alguém que não se parecia nem sequer consigo mesmo nos diversos momentos e que já nascera fatalmente marcado para a solidão. E como eu não podia andar metido num escafandro todas as horas do dia, embora já tenha exercido a profissão de escafandrista na penúltima guerra, deu-se o entrechoque fatal entre a minha multidão de almas e a alminha dos meus pseudossemelhantes, com consequentes ódios e ressentimentos de parte a parte, como ficou provado nas páginas de meu Diário íntimo e que um dia ainda serão publicadas. Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa — o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha espera.
Mas, Sr. redator de assuntos fúnebres, nada mais tenho a dizer, por ora, neste in extremis que já se vai fazendo longo e sem graça, e que certamente será tido por V. S. na devida consideração, atirando-o simplesmente à cesta de papéis velhos. Desconhecendo-me como o Sr. me desconhece, é justo que não queira levar-me a sério e nem sequer se dê ao trabalho de procurar no mapa onde fica San Juan de Ia Sierra, onde dentro em pouco entregarei a alma ao Criador ou a quem lhe faça as vezes, como quem restitui um guarda-chuva que apenas lhe foi dado em empréstimo. E para que o Sr. me acredite em parte, e bem assim não se sinta de todo roubado em seu precioso tempo, deixo-lhe de presente o meu relógio de estimação, que pertenceu a um enforcado das minhas relações e que marca todos os minutos da vida com uma precisão realmente cronométrica, apesar de também já ter sido enforcado com o seu dono.
Funereamente seu,
...................................................................…
FIM
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"
(Com vista ao Sr. redator da Seção Necrológica)
Escrevo-lhe esta em prantos, não para comunicar-lhe a morte de um ente querido, mas a minha própria morte. Como tudo que parece estranho, isto que acabo de anunciar tem na realidade uma explicação muito simples: é que resolvi suicidar-me e o senhor foi (à falta de um parente ou amigo, que não tenho) a única pessoa a quem me ocorreu dar, de antemão, a dolorosa notícia. Ao chegar esta à sua mesa repleta de avisos fúnebres e convites de missa de 7.° dia, já meu corpo, se foi encontrado, estará repousando no lugar que lhe compete dentro da imensidão da terra, ao lado de outros corpos de indigentes anônimos e esquecidos do mundo, com os quais possivelmente me comunicarei nas noites de tédio infinito.
Ainda uma hora atrás eu não sabia que hoje iria dormir em companhia dos mortos — hoje ou amanhã, conforme o tempo que levem para descobrir meu corpo franzino entres estes enormes eucaliptos e sob este cipreste que espero venha a cobrir um dia minha sepultura rasa. Como tudo que tenho feito na vida, decidi realizar minha morte sem pensar muito tempo no assunto, mesmo porque sempre me pareceu que a morte não é tão importante quanto querem fazer crer os vivos, dada a nossa perfeita insignificância dentro do universo. A morte de um mosquito é tão importante quanto a minha própria morte, digo-o sem falsa modéstia, e disso o senhor mesmo terá prova ao ficar sabendo do meu suicídio, que o afetará tanto quanto a morte de um dos milhões de perus sacrificados à véspera do Natal. A comunhão dos mortos ainda pode ser uma realidade, pelo menos para os que nela creem piamente, à sombra da necrofilia católica ou que outro nome tenha; a comunhão dos vivos, porém, ainda está por existir e com toda certeza não existirá nunca, dada a pouca cordialidade existente entre os homens, como de resto entre todas as feras de uma mesma espécie.
Sei que é de praxe o suicida invocar grandes razões, e se possível belas, para justificar seu gesto tresloucado, como dizem — e sinto ter que decepcioná-lo não invocando nenhuma razão maior para explicar esta minha fuga prematura de um mundo que afinal é o único mundo com o qual podemos contar honestamente. Se eu quisesse, certamente poderia encontrar uma dúzia ou mesmo duas de belas razões (metafísicas, econômicas, políticas etc. etc.) capazes de justificar não apenas o meu suicídio como o suicídio de toda a humanidade, nos dias que correm como em todos os tempos. Prefiro, porém, ser honesto e dizer que me mato pelo prazer único de matar-me, como existem casos de sujeitos que matam um desconhecido qualquer (não falando da guerra) pelo simples prazer de vê-lo cair morto ou para experimentar uma arma nova. Sei que é raro isto acontecer, mas acontece; e o meu caso é exatamente um desses. Enjoei de mim, como poderia ter enjoado da cara de um vizinho que nunca me tivesse feito mal em sua vida — e como não sou obrigado a viver de enjoo, cortei simplesmente o mal pela raiz, eliminando-me da minha vista. É possível que num dia de primavera e com os bolsos cheios de dinheiro eu não pensasse em eliminar-me com tanta facilidade, mesmo porque o homem é suficientemente tolo para contentar-se com pouca coisa, eterna criança que é; acontece que hoje não é primavera, nem tenho os bolsos abarrotados de notas de mil francos, de sorte que me sinto decididamente disposto ao suicídio, como o estaria para o homicídio também. O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.
E já que falo em simpatia, devo deixar claro que morro tão antipático como sempre vivi, tomando-se por base naturalmente a opinião dos outros a meu respeito, não a minha própria. A náusea que venho de sentir pelo meu corpo cheio de esperma, lágrimas e outros humores trágicos, é uma náusea que, bem ou mal, eu poderia superar com ajuda de alguma filosofia, desde que me dispusesse a praticar a necessária ginástica mental diante do espelho; ao passo que a antipatia que me inspiram os outros, e vice-versa, é algo que nasceu comigo e será hoje comigo assassinado, e que só pode ter explicação na perfeita dessemelhança existente entre mim e os meus semelhantes, entre o meu EU e o que se convencionou chamar o homem comum. Todas as normas de educação que me tentaram impingir no cérebro tinham por objetivo convencer-me de que eu e o meu vizinho éramos feitos da mesma massa e consequentemente da mesma qualidade de alma, havendo mesmo alguns exagerados que chegavam a proclamar que ambos éramos filhos do mesmo pai celestial, a cuja imagem e semelhança havíamos sido feitos em nove meses; a experiência, porém, convenceu-me exatamente do contrário, e não foi preciso muito tempo para eu descobrir que não passava de um pequeno monstro dentro da minha espécie, de alguém que não se parecia nem sequer consigo mesmo nos diversos momentos e que já nascera fatalmente marcado para a solidão. E como eu não podia andar metido num escafandro todas as horas do dia, embora já tenha exercido a profissão de escafandrista na penúltima guerra, deu-se o entrechoque fatal entre a minha multidão de almas e a alminha dos meus pseudossemelhantes, com consequentes ódios e ressentimentos de parte a parte, como ficou provado nas páginas de meu Diário íntimo e que um dia ainda serão publicadas. Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de casa — o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro antípoda à minha espera.
Mas, Sr. redator de assuntos fúnebres, nada mais tenho a dizer, por ora, neste in extremis que já se vai fazendo longo e sem graça, e que certamente será tido por V. S. na devida consideração, atirando-o simplesmente à cesta de papéis velhos. Desconhecendo-me como o Sr. me desconhece, é justo que não queira levar-me a sério e nem sequer se dê ao trabalho de procurar no mapa onde fica San Juan de Ia Sierra, onde dentro em pouco entregarei a alma ao Criador ou a quem lhe faça as vezes, como quem restitui um guarda-chuva que apenas lhe foi dado em empréstimo. E para que o Sr. me acredite em parte, e bem assim não se sinta de todo roubado em seu precioso tempo, deixo-lhe de presente o meu relógio de estimação, que pertenceu a um enforcado das minhas relações e que marca todos os minutos da vida com uma precisão realmente cronométrica, apesar de também já ter sido enforcado com o seu dono.
Funereamente seu,
...................................................................…
FIM
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"
Rapadura
Outro dia foi presa uma senhora porque numa banca de mercado, em pleno sábado de feira, agrediu a rival com uma rapadura, dando-lhe uma tijolada que exigiu doze pontos no couro cabeludo. Rapadura é arma perigosa, um paralelepípedo de doce bruto, pesado e com arestas. Batendo de quina pode até matar.
A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia".
Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"
- Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: "Recebi a medida e lhe mando a encomenda".
A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.
O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele".
A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.
O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
A banca de rapadura era o local de comércio do próprio marido da agressora. Vinha ela descuidosa, passando ali por acaso, e de repente depara com o quadro ofensivo: o marido em idílio público com a dalila, a messalina, a loba do seu lar! Ela debruçada ao balcão e ele, de dentro, segurava o queixo da sereia e lhe cochichava no ouvido. O monte de rapaduras estava ao lado. Foi só passar a mão na rapadura de cima e virá-la de quina, para castigar mesmo, no pé do ouvido da outra. A agredida se pôs a gritar, com a cara coberta de sangue, e o infiel asperamente ralhou: "Cala a boca, mulher, senão aparece a polícia".
Mas avisou tarde, porque a polícia já vinha na pessoa de um cabo a quem o idílio adúltero também repugnara, pois de há muito que ele, cabo, suspirava pelos favores da destruidora de lares. Debalde lhe fizera serenatas, com uma radiola cheia de discos do Roberto Carlos; e ela até lhe atirara um sapato pela janela, certa vez em que ele encostara a máquina cantante à rótula, tocando aquela música em que RC declara à amada : "Você vai aprender a ser gente!"
- Quem vai aprender é a mãe, gritara a julieta ofendida.
Mas o cabo apanhou o pé de sapato como se fosse o chapim da Borralheira, foi na loja do Geraldo e escolheu a sandalinha mais mimosa que tinha lá, com tiras prateadas e flor de contas no peito do pé. Entregou-a com um bilhete: "Recebi a medida e lhe mando a encomenda".
A bela pagou com um sorriso. Mas continuou com o homem das rapaduras, que tinha o que gastar com ela. Cabo arranchado mal ganha para o cigarro.
Agora porém tinha o cabo a sua oportunidade. Mandou a amada para o Samdu, num jipe, e bradou esteje preso para os mais.
Na delegacia a agressora já vinha muito unida ao marido (que a tratava até de meu bem) e declarou à autoridade que de nada se lembrava. Só sabia que vinha fazer umas compras, e passando pela banca de rapadura, viu aquela piranha com os dentes na cara do marido - marido de padre e juiz! - Sentira um escurecimento de vista - e aí não sabia mais de nada.
O delegado, naturalmente, punia pelos direitos de família legítima; e ia passando ao marido, para encerrar perfunctoriamente o caso, quando de súbito aparece a sogra, avisada às pressas. Da rua, a velha vinha gritando. Já sabia que aquilo ia acabar mal, minha filha está farta de sofrer, o sem vergonha do marido não tem rapariga na rua do Baturité que ele não gaste com ela, minha filha devia mesmo era ter lascado a cabeça da vagabunda. E ele ainda bate na pobrezinha, bate de correia, a vizinhança toda sabe!
Aí a mulher do marido interrompeu agastada: "Minha mãe cale sua boca, que o caso é outro. Ninguém está querendo saber se ele me bate. E se bate, bate no que é dele".
A sogra engasgou-se com a ingratidão. Desengasgando ia gritando "mal agradecida!", mas nesse ínterim o delegado se levantara e pedira silêncio. E explicou que o adultério é a peçonha dos lares; embora fosse errado apelar para a violência compreendia-se que a senhora no desvario da privação de sentidos e inteligência, agredisse a rival. Mas afinal não houvera morte, nem queixa registrada, o sangue era pouco, cada um fosse para casa e não pecasse mais. Falou, estava falado.
O cabo correu ao Samdu, onde lhe foi fácil fazer entender à pecadora que não há como a proteção das armas para uma frágil dama delicada.
O marido infiel levou a mulher para casa - conta a vizinhança que lhe deu uma surra para ela deixar de ser valente. E depois foram muito felizes.
Rachel de Queiroz
Rachel de Queiroz
sexta-feira, janeiro 3
Notícia de Jornal
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
Fernando Sabino, "A Mulher do Vizinho"
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome. Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é homem. E os outros homens cumprem deu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
Não é de alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome.
Morreu de fome.
Fernando Sabino, "A Mulher do Vizinho"
Os trovões de antigamente
Estou dormindo no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão para o terreiro onde fica o imenso pé de fruta-pão, à cuja sombra cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa imagem das folhas do fruta-pão recortadas contra o céu é das mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela da esquerda.
A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva batendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu — certamente também feito assim, de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória.
Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas de São Jorge que a gente chamava apenas de “talas”; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família, mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita?
Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundos para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.
E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do velho São Pedro.
Rubem Braga, "Ai de ti, Copacabana"
A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva batendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu — certamente também feito assim, de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória.
Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas de São Jorge que a gente chamava apenas de “talas”; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família, mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita?
Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundos para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.
Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo.´
Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso porão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo — aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes.
E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do velho São Pedro.
Rubem Braga, "Ai de ti, Copacabana"
O poder da escrita criativa
Há várias formas de escrita criativa. Eu prefiro todas.
Mas a mais útil e abrangente é escrever a própria vida.
O que interessa mesmo é a comunicação, é o que liga as pessoas ao mundo do trabalho, da família e dos relacionamentos. A palavra certa, a frase certa na hora certa, são o triunfo da comunicação, da escrita criativa da sua própria história.
Todo mundo sabe que se aprende a escrever bem lendo autores que escrevem bem. Você vai absorvendo aquelas construções de frases, aqueles ritmos, aquelas formas de juntar as palavras, de descrever a ação e os sentimentos, você aprende sem sentir, com prazer, não é um trabalho ou um dever, é um lazer. Um lazer de casa.
Antônio Maria era um grande jornalista e compositor dos anos 1950, um homem enorme, gordo e, como ele mesmo dizia, feio como um sapo. Só pedia cinco minutos de conversa criativa para se transformar em um príncipe para qualquer princesa. E tanto que ganhou a deusa Danusa Leão de Samuel Wainer, dono do jornal em que Maria escrevia. No poder da palavra.
Até na comunicação amorosa a escrita criativa pode poupar muito tempo e dissabores com brigas e mal-entendidos. É o caso da DR por e-mail. Ou Zap.
Todo mundo odeia e teme uma DR, que, no calor do momento, pode gerar brigas feias e provocar profundos desgastes na relação.
Já numa DR por escrito, há tempo para refletir, medir as palavras, modular o tom, ler e reler várias vezes, cortando excessos, acrescentando detalhes, para reler no dia seguinte, de cabeça fria, com outros olhos, com mais distanciamento e clareza. E só então mandar. Afinal, você quer mesmo resolver o problema e buscar a harmonia? Ou bater boca e armar barracos para disputar quem tem razão? O e-mail é o melhor meio. E, por ser escrito para o outro, acaba sendo escrito para você mesmo, e fica arquivado, você tem a responsabilidade pelo que escreveu. Como no jogo do bicho, vale o escrito! O bom é que pode ajudar a resolver a situação, o ruim é que pode ser usado contra você.
Um dos grandes mestres da escrita criativa, Gabriel García Màrquez, ensinava que no seu método o objetivo era, pelo ritmo das palavras e das frases, ir hipnotizando o leitor para levá-lo até o próximo parágrafo. E assim até o próximo, e o próximo, levado pelas cadências e sonoridades das palavras, como um rio.
Mas a mais útil e abrangente é escrever a própria vida.
O que interessa mesmo é a comunicação, é o que liga as pessoas ao mundo do trabalho, da família e dos relacionamentos. A palavra certa, a frase certa na hora certa, são o triunfo da comunicação, da escrita criativa da sua própria história.
Todo mundo sabe que se aprende a escrever bem lendo autores que escrevem bem. Você vai absorvendo aquelas construções de frases, aqueles ritmos, aquelas formas de juntar as palavras, de descrever a ação e os sentimentos, você aprende sem sentir, com prazer, não é um trabalho ou um dever, é um lazer. Um lazer de casa.
A escrita criativa pode ser muito útil na comunicação comercial, na síntese e clareza de negociações e de propostas de trabalho. Nesse caso, recomendam os mestres digitais, tudo deve ser dito em no máximo cinco linhas de um e-mail. Além de efetiva, a comunicação tem que ser rápida e direta. Economiza tempo, que é o nosso bem mais precioso e irrecuperável.Uma escrita criativa pode ampliar bastante a construção de uma relação amorosa. Pelo poder de sedução das palavras, pelo aprofundamento de convergências, pela visão pessoal do outro e os sentimentos que desperta. Como dizia Fernando Pessoa, todas as cartas de amor são ridículas, mas elas são a história de um amor. E um dos mais poderosos instrumentos de sedução.
Antônio Maria era um grande jornalista e compositor dos anos 1950, um homem enorme, gordo e, como ele mesmo dizia, feio como um sapo. Só pedia cinco minutos de conversa criativa para se transformar em um príncipe para qualquer princesa. E tanto que ganhou a deusa Danusa Leão de Samuel Wainer, dono do jornal em que Maria escrevia. No poder da palavra.
Até na comunicação amorosa a escrita criativa pode poupar muito tempo e dissabores com brigas e mal-entendidos. É o caso da DR por e-mail. Ou Zap.
Todo mundo odeia e teme uma DR, que, no calor do momento, pode gerar brigas feias e provocar profundos desgastes na relação.
Já numa DR por escrito, há tempo para refletir, medir as palavras, modular o tom, ler e reler várias vezes, cortando excessos, acrescentando detalhes, para reler no dia seguinte, de cabeça fria, com outros olhos, com mais distanciamento e clareza. E só então mandar. Afinal, você quer mesmo resolver o problema e buscar a harmonia? Ou bater boca e armar barracos para disputar quem tem razão? O e-mail é o melhor meio. E, por ser escrito para o outro, acaba sendo escrito para você mesmo, e fica arquivado, você tem a responsabilidade pelo que escreveu. Como no jogo do bicho, vale o escrito! O bom é que pode ajudar a resolver a situação, o ruim é que pode ser usado contra você.
Um dos grandes mestres da escrita criativa, Gabriel García Màrquez, ensinava que no seu método o objetivo era, pelo ritmo das palavras e das frases, ir hipnotizando o leitor para levá-lo até o próximo parágrafo. E assim até o próximo, e o próximo, levado pelas cadências e sonoridades das palavras, como um rio.
A miséria das palavras
Não: não me falem assim na miséria, nos pobres
na liberdade.
Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.
Assim apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.
E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.
Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.
Jorge de Sena, "Poesias III"
quinta-feira, janeiro 2
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
Viagem
Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias.
A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo do grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.
Ficamos num silencio tão ceremonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O avião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.
Dulce Maria Cardoso, "O Retorno"
A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo do grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.
Ficamos num silencio tão ceremonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O avião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.
Dulce Maria Cardoso, "O Retorno"
Caso de amor
Tocar o papel, sentir o cheiro de um livro novo, manusear as páginas do conhecimento… o livro impresso é mais do que mera circunstância de leitura.
Observar suas capas, escolher entre um e outro num jogo de encontros e desencontros são fatores diferenciais. Um caso de amo para a vida inteira.
Gabriel Bocorny Guidotti
Observar suas capas, escolher entre um e outro num jogo de encontros e desencontros são fatores diferenciais. Um caso de amo para a vida inteira.
Gabriel Bocorny Guidotti
O desafio brasileiro de levar a leitura às prisões
"A literatura é a irmã gêmea da liberdade". A frase estava em uma carta de remetente desconhecido endereçada a Marco Lucchesi, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
O autor era um detento fazendo um pedido: a doação de livros para a biblioteca de uma penitenciária de São Paulo . O remetente justificou a demanda dizendo que, "para tirar o homem do erro, é preciso dar, não subtrair".
No Brasil, cada livro lido por um preso pode contar na redução da pena. Por isso, em 2023, o país lançou um Plano Nacional de Fomento à Leitura em Ambientes de Privação de Liberdade. O objetivo era universalizar o acesso ao livro e à leitura nas prisões. Porém, um ano depois de lançado o documento, o plano ainda está em fase preliminar e o país está longe de atingir essa meta.
Os obstáculos para reduzir a pena pela leitura
Um levantamento realizado pela DW junto aos tribunais de Justiça dos estados e às secretarias que cuidam da assistência penitenciária mostra que ainda há poucas políticas implementadas para garantir o acesso à leitura em cárceres brasileiros. A escassez de medidas parece ser mais acentuada para pessoas com deficiência visual ou com baixo grau de escolaridade nas prisões.
Isso compromete diretamente o acesso à remição de pena pela leitura. Reduzir a pena em troca de estudo é um direito garantido às pessoas privadas de liberdade no país desde 2011, garantido na Lei de Execução Penal e regulamentado por uma resolução do CNJ de 2021.
O documento diz que cada obra lida significa a diminuição de quatro dias de pena. Mas cada preso só pode contabilizar até 12 livros no intervalo de um ano, o que garante a redução de até 48 dias por ano. Para validar os dias, o preso precisa fazer um relatório, que é legitimado por uma comissão nas Varas de Execução Penal.
A resolução do CNJ estabelece que deveriam ser aceitas formas alternativas de relatório, como leitura oral ou até mesmo desenhos e músicas. Também diz que se deve garantir a presos com baixo grau de escolaridade ou não alfabetizados alternativas como audiobooks e estratégias de leitura entre pares.
Mas isso não vem acontecendo.
Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) mostram que a remição de pena pela leitura representou 18% de todas as ações educacionais realizadas nos presídios no primeiro semestre de 2024. Mas, na prática, não existem dados unificados sobre como a política é implementada nas unidades federativas para pessoas não alfabetizadas ou com baixa escolaridade.
Ela depende de portarias locais e da ação conjunta dos poderes Judiciário e Executivo, o que não ocorre em todos os estados. São projetos voluntários que acabam implementando as iniciativas. E os relatórios terminam por ser validados com decisões individuais de juízes.
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o Tribunal de Justiça oferta apenas projetos de remição de pena pelo trabalho. São Paulo, o estado com a maior população prisional do país, não oferece iniciativas para remição de pena pela leitura para presos analfabetos ou com baixo letramento. O estado é também o que tem a maior população carcerária nessa condição, seguido por Pernambuco, Pará, Minas Gerais e Ceará.
Outro estado que não oferece programas inclusivos de leitura para analfabetos é o Espírito Santo, segundo o TJ do estado. Em Minas Gerais, tanto a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública quanto o TJ afirmaram que ofertam iniciativas para pessoas analfabetas, mas não especificaram de que forma isso ocorre. O Estado afirmou apenas que essas pessoas são inseridas no universo da leitura com apoio de professores e pedagogos.
Roraima e o Distrito Federal também afirmaram ter iniciativas que incluem presos analfabetos e com baixa escolaridade. Nenhum estado soube dizer quantos relatórios produzidos por essas pessoas foram enviados para ser avaliados pelas comissões.
O único estado que detalhou à DW como funciona a sua política para inclusão na remição de pena pela leitura foi Alagoas. De acordo com o Tribunal de Justiça do estado, cerca de 10% do total de 3,7 mil atendidos no programa de remição de pena pela leitura do estado são analfabetos.
O estado possui monitores de leitura, um grupo formado por outros presos com habilidade de escrita e leitura, que atuam como contadores da história do livro escolhido pelos não alfabetizados. Atualmente, 380 pessoas exercem essa função em seis presídios.
O Brasil tem atualmente 15 mil presos considerados não alfabetizados, de acordo com a Senappen, o que representa 2,2% da população prisional do país.
O número cresceu 6% entre o segundo semestre de 2023 e o primeiro de 2024, mas pode ser bem maior. É que, se somadas as pessoas com ensino fundamental incompleto, esse número sobe para 53%, de acordo com o Censo de Leitura no Sistema Socioeducativo.
Por isso, ampliar as ações de remição de pena pela leitura é considerada uma maneira alternativa de estimular o acesso à educação formal. "As prisões historicamente produzem mais delinquência do que ressocialização. Mas isso não justifica que a gente não tenha políticas. E o poder público tem essa responsabilidade", afirma a professora da Universidade Católica de Pelotas e coordenadora do censo, Christiane Russomano Freire.
Em Alagoas, estima-se que houve um aumento de 40% nas matrículas na Educação de Jovens e Adultos realizadas dentro do sistema prisional após o primeiro contato com a leitura por meio de projetos de remição.
O plano lançado no ano passado pelo governo federal e o CNJ tem como uma das metas ampliar em 50% o número de pessoas com remição de pena pela leitura concedida. Até o lançamento do documento, apenas três em cada dez presos do país conseguiam reduzir dias de pena por meio da leitura. O plano deve ser executado até 2027.
Em meados de dezembro, o STF homologou, com ressalvas, o Plano Pena Justa, que visa combater as violações de direitos no sistema prisional. Entre as medidas previstas, está a implantação de escolas em 100% das unidades prisionais e a remição de pena padronizada no país.
A remição de pena pela leitura, de acordo com Russomanno Freire, também deve ser incentivada porque promove o autoconhecimento, a autoestima e estimula processos de sociabilidade dos presos.
É o que também defende Marco Lucchesi. Para ele, ampliar a leitura nas prisões significa aumentar os índices democráticos do país. "A gente tem uma obrigação na democracia que é pedagógica. A sociedade precisa entender que essas práticas são necessárias. Essas pessoas presas vieram das nossas próprias contradições."
Doutora em linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro Leitura e cárcere - (entre) linhas e grades, o leitor preso e a remição de pena, Rossaly Beatriz Chioquetta viveu exemplos práticos disso durante pesquisa que realizou em Xanxerê, Santa Catarina.
"Na minha pesquisa, um dos presos comentou que, depois que passou a fazer as leituras, conseguia dormir melhor. Outro disse que os agentes penitenciários o acharam mais calmo", descreve.
Implementar e ampliar iniciativas de remição de pena pela leitura para todos os presos, independentemente do grau de escolaridade, ainda depende da criação de estruturas jurídicas, físicas e da sensibilização das instituições públicas para o tema.
Para ter a remição, a leitura deve ser registrada nas bibliotecas e durar de 21 a 30 dias. Contudo, 53% das prisões brasileiras com biblioteca não garantem acesso de pessoas sem alfabetização a elas, segundo o censo. Isso quando a unidade tem bibliotecas, o que não é realidade em 30,4% das prisões.
No dia a dia, também faltam livros nos acervos ou eles são compostos por obras antigas e desatualizadas. "A menos que a unidade vá atrás ou os projetos, não há material. A gente tem que ir atrás de doações", afirma Leia Santos, coordenadora do projeto de remição de pena por leitura Viajar sem sair do lugar, do CDP de Santo André, em São Paulo
Quando há projetos de remição pela leitura implementados, há ainda o desafio de ter os relatórios aceitos pelos juízes, para contabilizar os dias de redução de pena. "Nós temos juízes que aceitam e outros que não aceitam os relatórios. Tenho um caso de um preso que desde 2022 está no nosso projeto e não teve um relatório aceito. Todo ano, ele perde pelo menos uns 40 dias de remição de pena", afirma Santos.
Como em alguns estados sequer os relatórios mais formais são aceitos, explica Santos, isso freia os responsáveis pelos projetos a utilizar outras formas de expressão como prova da leitura. "Se um texto está sendo recusado, quem dirá um desenho? Então a gente opta em ficar com a produção escrita, mas dar todo o suporte que consegue", exemplifica.
Para Santos, mudar essa realidade requer investir em mediadores de leitura. "Precisamos permitir que a pessoa não só consiga remir a pena, mas que tenha ferramentas para conseguir tornar a leitura uma prática cotidiana", diz. "O Brasil não tem prisão perpétua nem pena de morte. O preso hoje está no sistema prisional, amanhã estará contigo, na sociedade", recorda Chioretta.
O autor era um detento fazendo um pedido: a doação de livros para a biblioteca de uma penitenciária de São Paulo . O remetente justificou a demanda dizendo que, "para tirar o homem do erro, é preciso dar, não subtrair".
No Brasil, cada livro lido por um preso pode contar na redução da pena. Por isso, em 2023, o país lançou um Plano Nacional de Fomento à Leitura em Ambientes de Privação de Liberdade. O objetivo era universalizar o acesso ao livro e à leitura nas prisões. Porém, um ano depois de lançado o documento, o plano ainda está em fase preliminar e o país está longe de atingir essa meta.
Os obstáculos para reduzir a pena pela leitura
Um levantamento realizado pela DW junto aos tribunais de Justiça dos estados e às secretarias que cuidam da assistência penitenciária mostra que ainda há poucas políticas implementadas para garantir o acesso à leitura em cárceres brasileiros. A escassez de medidas parece ser mais acentuada para pessoas com deficiência visual ou com baixo grau de escolaridade nas prisões.
Isso compromete diretamente o acesso à remição de pena pela leitura. Reduzir a pena em troca de estudo é um direito garantido às pessoas privadas de liberdade no país desde 2011, garantido na Lei de Execução Penal e regulamentado por uma resolução do CNJ de 2021.
O documento diz que cada obra lida significa a diminuição de quatro dias de pena. Mas cada preso só pode contabilizar até 12 livros no intervalo de um ano, o que garante a redução de até 48 dias por ano. Para validar os dias, o preso precisa fazer um relatório, que é legitimado por uma comissão nas Varas de Execução Penal.
A resolução do CNJ estabelece que deveriam ser aceitas formas alternativas de relatório, como leitura oral ou até mesmo desenhos e músicas. Também diz que se deve garantir a presos com baixo grau de escolaridade ou não alfabetizados alternativas como audiobooks e estratégias de leitura entre pares.
Mas isso não vem acontecendo.
Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) mostram que a remição de pena pela leitura representou 18% de todas as ações educacionais realizadas nos presídios no primeiro semestre de 2024. Mas, na prática, não existem dados unificados sobre como a política é implementada nas unidades federativas para pessoas não alfabetizadas ou com baixa escolaridade.
Ela depende de portarias locais e da ação conjunta dos poderes Judiciário e Executivo, o que não ocorre em todos os estados. São projetos voluntários que acabam implementando as iniciativas. E os relatórios terminam por ser validados com decisões individuais de juízes.
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o Tribunal de Justiça oferta apenas projetos de remição de pena pelo trabalho. São Paulo, o estado com a maior população prisional do país, não oferece iniciativas para remição de pena pela leitura para presos analfabetos ou com baixo letramento. O estado é também o que tem a maior população carcerária nessa condição, seguido por Pernambuco, Pará, Minas Gerais e Ceará.
Outro estado que não oferece programas inclusivos de leitura para analfabetos é o Espírito Santo, segundo o TJ do estado. Em Minas Gerais, tanto a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública quanto o TJ afirmaram que ofertam iniciativas para pessoas analfabetas, mas não especificaram de que forma isso ocorre. O Estado afirmou apenas que essas pessoas são inseridas no universo da leitura com apoio de professores e pedagogos.
Roraima e o Distrito Federal também afirmaram ter iniciativas que incluem presos analfabetos e com baixa escolaridade. Nenhum estado soube dizer quantos relatórios produzidos por essas pessoas foram enviados para ser avaliados pelas comissões.
O único estado que detalhou à DW como funciona a sua política para inclusão na remição de pena pela leitura foi Alagoas. De acordo com o Tribunal de Justiça do estado, cerca de 10% do total de 3,7 mil atendidos no programa de remição de pena pela leitura do estado são analfabetos.
O estado possui monitores de leitura, um grupo formado por outros presos com habilidade de escrita e leitura, que atuam como contadores da história do livro escolhido pelos não alfabetizados. Atualmente, 380 pessoas exercem essa função em seis presídios.
O Brasil tem atualmente 15 mil presos considerados não alfabetizados, de acordo com a Senappen, o que representa 2,2% da população prisional do país.
O número cresceu 6% entre o segundo semestre de 2023 e o primeiro de 2024, mas pode ser bem maior. É que, se somadas as pessoas com ensino fundamental incompleto, esse número sobe para 53%, de acordo com o Censo de Leitura no Sistema Socioeducativo.
Por isso, ampliar as ações de remição de pena pela leitura é considerada uma maneira alternativa de estimular o acesso à educação formal. "As prisões historicamente produzem mais delinquência do que ressocialização. Mas isso não justifica que a gente não tenha políticas. E o poder público tem essa responsabilidade", afirma a professora da Universidade Católica de Pelotas e coordenadora do censo, Christiane Russomano Freire.
Em Alagoas, estima-se que houve um aumento de 40% nas matrículas na Educação de Jovens e Adultos realizadas dentro do sistema prisional após o primeiro contato com a leitura por meio de projetos de remição.
O plano lançado no ano passado pelo governo federal e o CNJ tem como uma das metas ampliar em 50% o número de pessoas com remição de pena pela leitura concedida. Até o lançamento do documento, apenas três em cada dez presos do país conseguiam reduzir dias de pena por meio da leitura. O plano deve ser executado até 2027.
Em meados de dezembro, o STF homologou, com ressalvas, o Plano Pena Justa, que visa combater as violações de direitos no sistema prisional. Entre as medidas previstas, está a implantação de escolas em 100% das unidades prisionais e a remição de pena padronizada no país.
A remição de pena pela leitura, de acordo com Russomanno Freire, também deve ser incentivada porque promove o autoconhecimento, a autoestima e estimula processos de sociabilidade dos presos.
É o que também defende Marco Lucchesi. Para ele, ampliar a leitura nas prisões significa aumentar os índices democráticos do país. "A gente tem uma obrigação na democracia que é pedagógica. A sociedade precisa entender que essas práticas são necessárias. Essas pessoas presas vieram das nossas próprias contradições."
Doutora em linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro Leitura e cárcere - (entre) linhas e grades, o leitor preso e a remição de pena, Rossaly Beatriz Chioquetta viveu exemplos práticos disso durante pesquisa que realizou em Xanxerê, Santa Catarina.
"Na minha pesquisa, um dos presos comentou que, depois que passou a fazer as leituras, conseguia dormir melhor. Outro disse que os agentes penitenciários o acharam mais calmo", descreve.
Implementar e ampliar iniciativas de remição de pena pela leitura para todos os presos, independentemente do grau de escolaridade, ainda depende da criação de estruturas jurídicas, físicas e da sensibilização das instituições públicas para o tema.
Para ter a remição, a leitura deve ser registrada nas bibliotecas e durar de 21 a 30 dias. Contudo, 53% das prisões brasileiras com biblioteca não garantem acesso de pessoas sem alfabetização a elas, segundo o censo. Isso quando a unidade tem bibliotecas, o que não é realidade em 30,4% das prisões.
No dia a dia, também faltam livros nos acervos ou eles são compostos por obras antigas e desatualizadas. "A menos que a unidade vá atrás ou os projetos, não há material. A gente tem que ir atrás de doações", afirma Leia Santos, coordenadora do projeto de remição de pena por leitura Viajar sem sair do lugar, do CDP de Santo André, em São Paulo
Quando há projetos de remição pela leitura implementados, há ainda o desafio de ter os relatórios aceitos pelos juízes, para contabilizar os dias de redução de pena. "Nós temos juízes que aceitam e outros que não aceitam os relatórios. Tenho um caso de um preso que desde 2022 está no nosso projeto e não teve um relatório aceito. Todo ano, ele perde pelo menos uns 40 dias de remição de pena", afirma Santos.
Como em alguns estados sequer os relatórios mais formais são aceitos, explica Santos, isso freia os responsáveis pelos projetos a utilizar outras formas de expressão como prova da leitura. "Se um texto está sendo recusado, quem dirá um desenho? Então a gente opta em ficar com a produção escrita, mas dar todo o suporte que consegue", exemplifica.
Para Santos, mudar essa realidade requer investir em mediadores de leitura. "Precisamos permitir que a pessoa não só consiga remir a pena, mas que tenha ferramentas para conseguir tornar a leitura uma prática cotidiana", diz. "O Brasil não tem prisão perpétua nem pena de morte. O preso hoje está no sistema prisional, amanhã estará contigo, na sociedade", recorda Chioretta.
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