domingo, janeiro 5

As luzes do carrossel

É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França. Mas tem a sua beleza. Talvez esteja nas lâmpadas, ou na música da pianola (velhas valsas de perdido tempo) ou talvez nos ginetes de pau. Entre eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos. Tem a sua beleza, sim, porque a opinião unanime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso. Que importa que seja velho, roto e de cores apagadas se agrada ás crianças?

Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o Sem-Pernas chegou no trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel. Muitos não acreditaram, pensaram que fosse mais uma pilhéria do Sem-Pernas. Então iam perguntar a Volta Seca que, como sempre, estava metido no seu canto sem falar, examinando um revólver que furtara numa casa de armas. Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes dizia:

— Lampeão já rodou nele. Lampeão é meu padrim...

O Sem-Pernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite quando o acabariam de armar. E saiu para encontrar Nhozinho França. Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas. Até mesmo Pirulito que tinha quadros de santos na sua parede, até mesmo João Grande que nesta noite iria com o Querido de Deus ao candomblé de Procópio, no Matatú, até mesmo o Professor que lia livros, e quem sabe se também Pedro Bala. que nunca inveja nenhum porque era o chefe de todos? Todos o invejaram, sim. Como invejaram a Volta Seca que no seu canto, o cabelo mestiço e ralo despenteado, os olhos apertados e a boca rasgada naquele ríctus de raiva apontava o revolver ora para um dos meninos, ora para um rato que passava, ora para as estrelas que eram muitas no céu.

Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas e Volta Seca (estes tinham passado o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o carrossel) ver o carrossel armado. E estavam parados diante dele extasiados de beleza, as bocas abertas de admiração. O Sem-Pernas mostrava tudo. Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo que tinha sido cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião. Eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França que a estas horas estava encornado num pifão tremendo na "Porta do Mar".

O Sem-Pernas mostrou a máquina (um pequeno motor que falhava muito) com um orgulho de proprietário. Volta Seca não se desprendia do cavalo onde rodara Lampião. O Sem-Pernas estava muito cuidadoso do carrossel e não deixava que eles o tocassem, que bulissem em nada.

Foi quando o Professor perguntou:

— Tu já sabe mover com as maquinas?

— Amanhã é que vou saber..., — disse o Sem-Pernas com um certo desgosto. — Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar.

— Então amanhã quando acabar a função tu pode botar ele pra rodar só com a gente. Tu bota as coisas pra andar, a gente se aboleta.

Pedro Bala apoiou a ideia com entusiasmo. Os outros esperavam a resposta do Sem-Pernas ansiosos. O Sem Pernas disse que sim e então muitos bateram palmas, outros gritaram. Foi quando Volta Seca deixou o cavalo onde montara Lampião e veio para eles:

— Quer ver uma coisa bonita?

Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saia do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua vendo a aglomeração de meninos na praça veio para o lado deles. E ficou também parado escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar onde os sonhos são todos belos. Porque a música saia do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parará. E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade. 

Jorge Amado, "Capitães da areia"

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