quinta-feira, janeiro 16

O desfile dos chapéus

O comparecimento de todos os chapéus de minha vida – os que tive e usei-não posso precisar se começou no sonho e aí terminou, ou se no sonho teve início e prosseguiu no estado de vigília.

Apresentando-se em fila indiana ou em grupos, esses chapéus se deslocavam com movimentos próprios, o que tornava ainda mais bizarra sua aparição.

Os que vinham em grupo voavam baixo num céu de chumbo – céu que se explica na visão onírica pela leitura dos jornais da véspera, carregados mais que nunca de acontecimentos nefastos. E o sonho daquela noite deixara de ser um armistício “de repouso.

Eu sabia que das peças de indumentária o chapéu é a que mais transforma a figura do homem, a que mais de perto priva de sua intimidade-conseqüência da vizinhança próxima do cérebro, do qual absorve as irradiações. Enquanto novo, é um protetor, se não elemento decorativo; depois de usado, vira documento moral.

A recordação da lenda tibetana de um chapéu que o vento arrancara a alguém e projetara longe, numa campina, onde o deixaram ficar, aí se transformando num ser vivo e demoníaco-essa recordação de antiga leitura teria também influído como “conteúdo latente” do sonho que se vai referir.

Foi o caso que me senti levado, não sei como, a uma região severa onde entrei com a certeza de que “não era ali”.

Cheguei mesmo a repetir alto:-“não é aqui! não é aqui!” Não era ali, o quê? Pois não poderia ser ali?…

Eu vagava numa paisagem fora de uso, com massas de sombra e árvores despidas. Qualquer coisa de cemitério abandonado, com movimentos e rumores-assobios fininhos, cochichos, começos indistintos de vaia-em desacordo com a sua tranqüila grandeza. Havia mesmo em tudo uma malícia difusa, secreta intenção de fazer mal, zombar da gente…

Ao fundo, colunatas e uma estátua de mármore num espaço desolado como nos primeiros quadros de Chirico.

Ao lado, como sempre, uma piscina-piscina que se coloca freqüentemente no teatro dos meus sonhos, tal um túmulo aberto à minha espera. Várias crianças já mortas e esbranquiçadas retirei dela…

Passeava eu então distraído. A campina era florida. Não sei bem se campina, corredor de casarão colonial ou praça pública, pois o cenário mudava sempre, posto que sempre a mesma fosse a atmosfera.

Eu procurava informações debaixo das pedras, atrás das colunas, no alto das árvores. Queria saber onde se conspirava contra mim. E como ventasse de maneira esquisita, pareceume que qualquer resolução já havia sido tomada, tanto assim que um de meus antepassados vinha chegando, ouvindo-se bem os seus passos. Ao percebê-lo, reclamei que nada mais eu tinha com ele, que a vida agora era outra coisa; que até faria melhor se voltasse para o túmulo donde não devera nunca ter saído. Só passou a minha aflição quando o vi retirar-se resmungando … Devia ‘estar ressentido com as minhas palavras, mas que fazer?

A piscina me olhava sem parar. A luz baixou até mudar de substância e confundir-se com a do silêncio. Tudo estava preparado para alguma coisa.

Foi quando passou o primeiro chapéu, ligeiro como um ratinho. Estranhei-lhe a ligeireza, quando é sabido que os fantasmas caminham devagar e que as coisas do passado reaparecem lentamente como as cidades exumadas, e as velhas recordações.

O chapéu seguiu na direção não sei bem se das docas de um porto invisível, ou se de alguma igreja em ruínas. Mal desaparecera, lembrei-me de que o seu jeito era familiar, e o reconheci depois de ter passado.

Não foi com certeza o primeiro que ganhei, mas era dos mais antigos. Usei-o até o fim, na fase capital da adolescência, quando a cabeça que cobria abrigava idéias confusas, que me perturbavam. Lembra-me de que não o havia tirado para ninguém. Eu era então ousado e rebelde, e a vida parecia intacta ainda, pronta a me ser oferecida.

Atrás do primeiro, outros chapéus iam aparecendo e desmontando o meu passado. com um deles enterrado até às orelhas-aquele de feltro sovado que lá vai rolando atrás do veículo-andei pensando dias e noites numa solução que afinal não tomei, porque o barranco era alto e me faltou coragem. Certa vez, e ainda me ardia a juventude, não resisti à tentação de saber o fundo do mistério. Mas do barranco fatal que ia servir de passagem, recebi a advertência: “agora não, bobo! Nem há espaço para ti; experimenta primeiro a vida… ainda não tens direito à morte”.

Seria de fato um absurdo: se nasci foi mesmo para viver. Atirei apenas o palheta. E voltei para a vida.

Deram-me outro chapéu, e é esse que vem se aproximando com movimento de dança, enfunado como vela que impele os barcos.

Debaixo dele é que te pude apreciar melhor, sombra enorme do mundo. Sob as suas abas meus olhos se dilataram de espanto, minando uma água que era resina do íntimo fervor. A cabeça que ele então abrigava acendia-se como lâmpada que via sem ser vista. (Foi no tempo em que era fácil conversar com as pedras, ouvir as árvores, privar com os rios, os animais, o vento-tempo em que as imagens do mundo se descobriam pela primeira vez. Inauguração do universo!… Eu ainda nem sabia a linguagem dos homens!)

Esse chapéu presidira ao meu casamento com as coisas.

Mas outros estavam surgindo. Passavam perto, davam uma voltinha. Havia um vento de combinação com eles, que soprava sem direção certa, empurrando-os ou recolhendo-os. Cada qual tentava mostrar um trecho de biografia, um momento do que por mim fora pensado e vivido.

Não conseguia mesmo saber se era com espírito cordial que faziam essa exibição retrospectiva, ou se vinham com ar de sarcasmo ridicularizar um passado que afinal nem valeu a pena. Chapéus bem sujinhos e miseráveis, os desse tempo…

O que se passa no homem, debaixo de seu chapéu!…

Desde o começo, o ambiente era mais de vaia do que de apoteose.

Tu, por exemplo, cartola, que vieste fazer aqui? Caíste -da lua? Algum dia te botei?… Ah! botei sim, uma vez… Eras apenas um simples aparelho de produzir autoridade. Eu vivia então contra mim. O que te ofereci foi uma cabeça vazia. Então me sentia importante e, inefável imbecil, sorria para a multidão que aplaudia os grandes da arquibancada, dentre os quais eu era tomado como tal. Nem sei como foi aquilo…

Como havia excesso de grandes homens naquela tarde, mandaram-nos para o porão e o telhado, de onde ouvimos o hino cívico.

Nessa tarde, uma chusma de chapéus arruaceiros (chapéus ou crianças?) cercava a aparição da cartola. No meio, sobressaía um palheta impossível. O chapelinho magricela não deixava em paz a velha cartola. Depois, quando esta virou casca de inseto, as formigas a foram transportando para um cemitério de cartolas, que os urubus sobrevoavam no fundo da paisagem.

Surgiram em seguida os chapéus que andei tirando para todo mundo. Pareciam aborrecidos da vida. Reuniam-se em torno de. um velho guarda-chuva que era só pele e ossos. Esse grupo vinha em romaria ao seu antigo dono. Eu era então o falecido. E estava explicada, assim, a presença ali da piscina-sepultura, sobre a qual boiavam, como folhas secas, boinas, bonés e toucas da primeira idade.

Depois disso (será que já vivi tanto?) chapéus em profusão, todos os chapéus do passado apareceram em vagas sucessivas. O céu coalhara-se deles. Soltavam-se de cabides invisíveis, vinham planando dos horizontes. Nos que passavam perto e devagar eu me reconhecia.

“Olha aquele com que fiquei esperando a resposta; o que me ajudou a chocar a idéia maluca; o que fiz de travesseiro; o com que neguei o cumprimento a certos sujeitos; o com que matei a sede num córrego; o que fez sombra para um pensamento libertário; e este, ainda molhado de chuva, com que esperei a amada no portão; e este outro, que me deu um ar tão bestinha; o que enterrei com raiva na cabeça, o que me ajudou a fugir, de madrugada; o que durante a perseguição me serviu de barraca e esconderijo; o que amarrotei nas mãos trêmulas, ao fazer o pedido; o com que conspirei no fundo do bar; o que voou pela janela do trem; o que joguei como um coração arrancado aos pés da amazona, no circo. E esse outro que um dia tirei com alegria, para saudar a vida!”

Ah! chapéus… com as cicatrizes do vento, do suor, das chuvas, das lágrimas!… Aquele, furado, que vem oscilando como um bêbado, cheguei a estendê-lo a um rico, numa tarde de chuva. E, envergonhado, ele se recolheu a si mesmo antes de recolher a esmola.

“Chapéus dos maus e bons momentos, refazendo a história de uma vida revogada-a cabeça que um dia cobristes vira-se agora para o lado onde nascem as coisas, onde a vida recomeça. A gente aprende enfim a transformar a dor em alegria, e incorporando-se a tudo e tudo absorvendo, acaba confundindo-se, anonimamente, na substância
da criação.

É tempo, chapéus, de fechar-se o ciclo da estupidez, tempo também de o “eu”, cabina infecta, libertar-se das insignificâncias que tiranizam a criatura. Quem quiser salvar-se, destrua antes o seu inimigo privativo, esqueça-se de si mesmo. Chapéus, a vida começa enfim a valer a pena!”

Mal iniciava eu este discurso, certos movimentos me fizeram suspeitar que outra vez os velhos chapéus começavam a zombar de mim. Pelo menos, brincando estavam. Debaixo de cada um se colocava uma imagem de minha figura segundo as metamorfoses da idade. Diversos manequins risíveis, em farândula, puxavam a minha forma precária até o presente;-eu, alvoroçado, descendo a ladeira a caminho da cidade; subindo-a depois, de cara fechada; eu aflito, ridículo, querendo chorar, pondo de novo o chapéu para outras partidas; saudando os amigos; parado na esquina, como um basbaque; na praça; caminhando para o encontro proibido; querendo entrar nas festas; nos enterros; sonhando nos bancos; esperando a moça; eu, envaidecido a dizer e ouvir bobagens; com o chapéu do conflito; com o chapéu que enchi de frutas; com o chapéu com que fui vaiado… chapéus da adolescência e da maioridade, variações de meu ser moral e histórico, desdobramentos esquecidos de minha figura…

Cada um de nós se inscreve nos objetos que usa. Estou também nos meus chapéus. E os meus, antigos, estão compondo numa só imagem as diversas imagens do homem que ora assiste à passagem deles.

Uma cidade nublada. Entro numa rua sem nome.

– Madame, aqui 6 o 29? Esqueci o meu chapéu… não se assuste, minha senhora… é um simples chapéu… não é nenhuma bomba. Por favor… está sentindo alguma coisa? A senhora parece desgraçada, tão triste… E tão bonita… Meu Deus!… Não quererá fugir no meu chapéu? Seremos felizes…

– Olha o chapéu, cavalheiro, a procissão está passando…

– Não está ouvindo? É o Hino Nacional. Vem aí o Chefe. Tira o chapéu, seu idiota! Havia também chapéus no 71 e no 138. De que rua e cidade não sei dizer. E chapéus que foram esquecidos nos cafés, nos bondes, nos bancos de trem de ferro, nos consultórios, nas praias. Chapéus que vinham dos subúrbios e dos campos.

E esses que não tomaram parte no desfile e se deixaram ficar pelas pontes e à beira de viadutos, na mesma posição em que foram abandonados?

Chapéus de suicida, se eu estivesse perto agarraria o desesperado pelo braço: “Homem, não será preciso tanto; escureceu um pouco em ti, mas foi um minuto; é porque a claridade está se abrindo mais adiante; corre para lá, pega o teu chapéu. A vida continua.”

Outros eram moídos sob rodas de caminhão, ou fugiam pelo asfalto afora, os donos atrapalhados correndo atrás. O grosso deles, porém, fazia evoluções. Vi-os escorrendo por um watershoot, ondulando num vagão de montanha-russa, correndo pelas estradas:-chapéus da mocidade. Pode ser que me enganasse, mas nesse momento mais pareciam borboletas, só faltavam gritar de alegria. Quereriam dar-me nova lição de vida? Chapéus da era otimista, podeis chegar! Eu também mudei. Já disse que aprendi com a vida. Estou livre, não me escondo mais, tirei para sempre o chapéu…

Mas eles me evitam. Não precisam mais pousar na cabeça de ninguém. Brincam se atropelando uns aos outros. Livres, também!

Abandonado agora numa planície sem fim.

E os chapéus? pergunto. Sumiram-se. Sumiram-se também as piscinas e colunatas. Fiquei esperando.

Um mar, um mar escondido na neblina desde o princípio, começa a subir lentamente. E à superfície afloram detritos do passado, velhos sapatos, roupas usadas. Coisas sujas, vergonhosas coisas vêm chegando de mais longe na água de gosma e pútridos.

A neblina se dissipa. No fundo, coqueiros, índios construindo malocas, garimpeiros explorando rios.

Espaço da memória ancestral, mergulho os olhos em teu vazio.

E eis, no horizonte, todos os chapéus de outrora, em formação completa, despedindo-se de mim… pela última vez “tirando-me o chapéu”.
Aníbal Machado

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