Todavia, o calendário vazio é o calendário de todos. Cada ser humano quer torná-lo seu, e para isso tem de preenchê-lo. Os dias se dividem em bons e ruins, em livres e atribulados. Se ele os anota, em poucas palavras ou letras, o calendário se torna inconfundivelmente seu. Os acontecimentos mais importantes marcam efemérides. Na juventude, estas ainda são poucas, o ano conserva uma espécie de inocência, e a maioria dos dias é ainda livre e disponível para o futuro. Mas aos poucos os anos vão ficando repletos, mais e mais retornam as datas que foram decisivas e, por fim, o homem já não tem mais um dia disponível em seu calendário: ele tem sua própria história.
Conheço pessoas que se riem dos calendários dos outros, “porque neles há muito pouca coisa”. Mas só quem fez as anotações pode saber realmente o que ele contém. A parcimônia dos signos produz o seu valor. Eles existem através de sua concentração; o vivido que está presente neles é como que encerrado por um encantamento, permanece intacto e pode transformar-se repentinamente em algo gigantesco, em outras circunstâncias num outro ano.
Ora, não existe ninguém que não tenha direito a tais agendas. Cada indivíduo é o centro do universo, e é apenas porque o universo está repleto de tais centros que ele é precioso. Este é o sentido da palavra “homem”: cada indivíduo é um centro ao lado de incontáveis outros que são tão centros do universo quanto ele próprio.
As agendas foram e são o núcleo para os verdadeiros diários. Muitos escritores que desconfiam de diários, porque nestes muito de suas substâncias poderia dissipar-se, mantêm, no entanto, suas agendas. Normalmente, as duas coisas se confundem. Eu as diferencio rigorosamente. Nas agendas, que quase sempre são pequenos calendários, anoto com toda concisão aquilo que me toca ou satisfaz especialmente. Ali se encontram os nomes das poucas pessoas que nos possibilitaram respirar, e sem as quais jamais teríamos suportado todos os outros dias: os encontros com essas pessoas, o primeiro contato, suas viagens, seus regressos, seus adoecimentos graves, sua cura e, o mais terrível, sua morte. Há também os dias em que as ideias nos assaltam, lançam-se sobre nós como espadas, submergem, voltam a emergir, assim, metamorfoseando-se, consomem boa parte de nossa vida. Algumas vezes registramos os dias em que uma ou outra dessas ideias ganhou corpo, fazendo-nos contentes. A esses dias nos quais se expandem os nossos domínios, contrapõem-se aqueles em que nós próprios somos dominados pelos de outros — quando lemos algo que sentimos que nunca mais nos deixará: o Woyzeck, os Possuídos e o Ajax de Sófocles. Há também os momentos em que ouvimos falar de costumes inauditos, de uma religião desconhecida, de uma nova ciência, de uma nova extensão do universo, de mais uma ameaça à humanidade ou, com muito menos frequência, de uma esperança para ela. Além disso, existem os lugares que finalmente pudemos conhecer, depois de o termos desejado ardentemente. Registra-se tudo com apenas três ou quatro palavras. Os nomes são o principal, pois se trata do dia em que novas coisas ou novas pessoas entraram em nossas vidas; ou de alguém que, desaparecido, volta a dar notícia, e é como se fosse algo novo.
Uma coisa se pode dizer com segurança sobre essas agendas: ninguém se interessa por elas. Para os que estão de fora, são incompreensíveis, ou, se não chegam a sê-lo, tornam-se tediosas pela própria monotonia de sua linguagem constante.
Tão logo se tornem algo mais, tão logo haja um confronto com as coisas, as agendas deixam o âmbito dos calendários anotados para passar ao dos diários.
Elias Canetti, "A consciência das palavras"
Nenhum comentário:
Postar um comentário