sábado, maio 31

Água de beber

 


Escolhi um caminho

Embora eu tenha me tornado militante muito mais tarde no Chile, quando ingressei oficialmente no partido, creio ter-me definido como um comunista diante de mim mesmo durante a guerra da Espanha. Muitas coisas contribuíram para a minha profunda convicção.

Meu contraditório companheiro, o poeta nietzschiano León Felipe, era um homem encantador. O melhor entre seus atrativos era um anárquico senso de indisciplina e de rebeldia zombeteira. Em plena guerra civil adaptou-se facilmente à chamativa propaganda da FAI (Federación Anarquista Ibérica). Percorria frequentemente as frentes anarquistas onde expunha seus pensamentos e lia seus poemas iconoclastas. Estes refletiam uma ideologia vagamente acrata, anticlerical, com invocações e blasfêmias. Suas palavras cativavam os grupos que se multiplicavam pitorescamente em Madri enquanto a população ia para a frente de batalha cada vez mais próxima. Os anarquistas pintavam bondes e ônibus, metade vermelha e outra amarela. Com seus cabelos compridos e barbas, colares e pulseiras de balas, protagonizavam o carnaval agônico da Espanha. Vi vários deles calçando sapatos emblemáticos, a metade de couro vermelho e a outra de couro negro, cuja confecção devia ter custado muitíssimo trabalho aos sapateiros. E não pensem que era uma festa inofensiva. Cada um levava punhais, pistolas descomunais, rifles e carabinas. Em geral ficavam nas portas principais dos edifícios em grupos que fumavam e cuspiam, fazendo ostentação de seu armamento. Sua principal preocupação era cobrar os rendimentos aos aterrorizados inquilinos, assim como fazer-lhes renunciar voluntariamente a seus adornos de valor, anéis e relógios.

Voltava León Felipe de uma de suas conferências anarquistas, já de noite, quando nos encontramos no café da esquina de minha casa. O poeta levava uma capa espanhola que ia muito bem com sua barba nazarena. Ao sair, roçou com as elegantes pregas de sua ostentação romântica em um de seus melindrosos correligionários. Não sei se o aspecto de antigo fidalgo de León Felipe aborreceu aquele “herói” da retaguarda mas o certo é que fomos detidos a poucos passos por um grupo de anarquistas, encabeçados pelo ofendido do café. Queriam examinar nossos papéis e, depois de dar-lhes uma vistoria, levaram o poeta lionês entre dois homens armados.

Enquanto o conduziam para o fuzilamento próximo à minha casa, cujos tiros noturnos muitas vezes não me deixavam dormir, vi passar dois milicianos armados que voltavam do front. Expliquei-lhes quem era León Felipe, qual era a falta em que havia incorrido e graças a eles pude obter a liberação de meu amigo.

Esta atmosfera de perturbação ideológica e de destruição gratuita me deu muito que pensar. Soube das façanhas de um anarquista austríaco, velho e míope, de longas melenas louras, que tinha se especializado em dar “passeios”. Tinha formado uma brigada que batizou “Amanecer” porque atuava à saída do sol.

– Você não sentiu uma dor de cabeça? - perguntava à vítima.

– Sim, claro, uma ou outra vez.– Pois vou dar-lhe um bom analgésico – dizia o anarquista austríaco, encostando-lhe na fronte o revólver e disparando uma bala.

Enquanto esses bandos pululavam pela noite cega de Madri, os comunistas eram a única força organizada que criava um exército para enfrentar os italianos, os alemães, os mouros e os falangistas. E eram, ao mesmo tempo, a força moral que mantinha a resistência e a luta antifascista.

Simplesmente tinha que escolher um caminho. Foi o que fiz naqueles dias e nunca me arrependi da decisão tomada entre as trevas e a esperança daquela época trágica.
Pablo Neruda, "Confesso que Vivi"

Dois e dois: quatro

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.
Ferreira Gullar

Uma mentira

Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo.

Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro até ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa é uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. 


Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é. Essa poluição vai turvar-lhes a lógica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serão calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serão multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo não lhe dá cobertura. Para alcançar coerência, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte. 

É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro, como uma toupeira cega a abrir túneis e câmaras no interior da terra. Quando se abre a boca para libertar uma mentira, a primeira, filha de nada que a justifique, nunca se consegue ter noção completa de onde chegará. Nesse momento, na inocência aparente, com voz de gatinho acabado de nascer, está a soltar-se um predador voraz, não há fronteiras marcadas para a sua fome. Uma mentira pode construir edifícios imensos, levantar cidades; uma mentira pode colocar em movimento milhares de pessoas, pode dar propósito a multidões incalculáveis, cada pontinho a ser uma cabeça com história; uma só mentira pode manter em cativeiro gerações inteiras de pessoas que ainda não nasceram, netos que os avós não são capazes de imaginar, ignorantes da mentira original que os domina.
José Luís Peixoto, 'Em Teu Ventre'

Gaita de foles e “Maringá”

Uma vez fiz uma viagem do Havre ao Rio de Janeiro em um navio do Lóide já bastante velho, que, não sei por que, vinha todo o tempo adernando para bombordo. Em Portugal, encheu-se de imigrantes e de ex-emigrantes: “patrícios” que tinham prosperado no Brasil e agora retornavam com toda a família de uma viagem de passeio à terrinha. Tudo muito boa gente, mas não muito divertida. Lembro-me da alegria com que saudamos, na noite do segundo dia, um rapaz de boina que apareceu tocando uma gaita de fole... Fez um sucesso tão grande que o comandante o convidou a vir para a primeira classe, dizendo, inclusive, que ele podia fazer as refeições ali.


Nunca me esquecerei daquele vasto refeitório do navio, cheio de pesadas famílias portuguesas a comerem com afinco e a pautarem os dentes com distinção, as mãos em concha a taparem a boca... O médico de bordo sempre com seu vago ar de exilado ou asilado. O comandante, honrando as pessoas com o convite para sua mesa, muito formal; eu sempre o imaginava com um ar nobre, entre os vagalhões, no naufrágio, a declarar que seria o último homem a deixar o navio. Isso devia ser bonito, mas não houve. O mar era implacavelmente liso, dia após dia, a tal ponto que, embora o navio assim tombado sobre o ombro esquerdo não merecesse muita confiança, a gente torcia para haver alguma turbulência no ar e no mar para fazer mal àquelas simpáticas e imensas famílias e prendê-las em suas cabines, destroçadas pelo enjoo. Nada. Bom tempo; sete, oito nós de velocidade... E o tocador de gaita de fole? Cada dia ele parecia mais alegre e tocava com mais afã. O primeiro sinal de que a plateia estava cansada foi o desaparecimento de sua gaita, uma noite. Ele ficou na maior aflição e andava de popa a proa vasculhando e indagando. Houve um passageiro com cara de pateta que sugeriu. “Vai ver, ela caiu n'água...” A resposta continha um palavrão, que deu motivo a protestos em nome das famílias presentes.

Só no dia seguinte, pela manhã, a gaita foi encontrada em um escaler, metida debaixo de uma lona. O homem e sua gaita sumiram, e só de muito longe a gente ouvia o seu som, vindo das profunduras da terceira classe. Respiramos com alívio.

Lembrei-me disso há pouco tempo, quando fui à Escócia em um grupo de brasileiros, e fomos recebidos em um restaurante por grandes e vermelhos homens de saia (kilt) a tocar suas gaitas de fole (bagpipes). Ficamos encantados, mas depois de algum tempo de ouvir gaita e beber, alguns do grupo encetaram uma reação com sambas e marchinhas, e pastorinhas e teu cabelo não nega, mulher rendeira, prenda minha, luar do sertão... Foi pior. Brasileiro que aqui dentro não canta jamais, dana-se a batucar cantando aurora e amélia mulher de verdade, essas coisas.

Razão tinha o Vinicius de Moraes. Ele dizia que não há bar no mundo melhor do que bar de navio; bebida boa, barata, o mar, o embalo do mar... Mas navio sem brasileiro: por algum misterioso motivo, a partir do segundo dia de viagem, quando o barco deixa as águas territoriais, os brasileiros começam a cantar maringá, maringá, né? — dizia ele, contristado.

Rubem Braga, "Recado de primavera"

O diabo e o relojoeiro

Vivia na paróquia de S. Bennet Fynk, perto da Bolsa Real, uma viúva pobre e honesta, a qual, tendo perdido o marido, aceitou inquilinos em sua casa, isto é, alugou algumas peças desta a fim de reduzir a despesa do aluguel. Entre outras, cedeu a água-furtada a um fabricante de maquinarias de relógio, ou que fazia peças do gênero, e, segundo o hábito da época, trabalhava para as relojoarias.

Certo dia, um homem e uma mulher subiram para falar com o relojoeiro sobre alguma coisa relacionada a sua profissão. Chegando perto da escada, e vendo a porta inteiramente aberta, conseguiram enxergar o pobre infeliz (o fazedor de relógios ou de seus mecanismos) enforcado numa viga que saía da parede, um pouco abaixo do teto. Surpreendida com o espetáculo, a mulher parou e gritou para o homem que a seguia pela escada para que corresse e cortasse a corda do infeliz.

Naquele momento, de um canto do quarto, que da escada não era possível ver, corre outro homem, trazendo na mão um banco dobradiço, como quem vinha com muita pressa, e coloca-o no chão debaixo do pobre enforcado, e, apressado sempre, sobe ao banco, tira do bolso uma faca e, segurando a corda com uma das mãos, acena com a cabeça para o casal que se achava na porta, como para dizer-lhes que parassem, que não subissem, e mostra-lhes a faca na outra mão, como se estivesse a ponto de cortar a corda do enforcado.

Nisso a mulher estacou, mas o homem que estava no banco dobradiço continuava a remexer na corda com a mão e com a faca, como procurando o nó, mas sem dar o corte. Então a mulher gritou outra vez, e o homem que vinha atrás dela falou:

— Vamos subir – disse ele – supondo que havia algum obstáculo – e ajudar o homem que está no banco.

Mas o homem que estava no banco fez-lhe de novo sinais para ficarem quietos e não subirem, como a dizer: — Faço isso num instante. Deu dois cortes com a faca como se cortasse a corda e parou outra vez. Entretanto, o pobre continuava enforcado e, consequentemente, morrendo. Nisso a mulher pergunta:

— Que há? Por que não corta a corda duma vez?

E o homem que estava atrás dela, esgotada a paciência, empurrou-a para o lado e disse-lhe:

— Deixe que resolvo isso!

E sobe correndo e invade o quarto.

Mas, quando ali chegou, vejam, o mísero lá estava enforcado, porem não se via nenhum homem com faca, nem banco dobradiço, nem outra coisa qualquer. Tudo isso não passara de espectro e ilusão, destinados, sem dúvida, a deixar perecer e expirar o pobre infeliz que se tinha enforcado.

O homem ficou tão surpreso e aterrado que, não obstante a coragem de que dera mostra, caiu no chão como morto. E a mulher viu-se na obrigação de cortar a corda ao enforcado com uma tesoura, só o conseguindo com grande esforço.

Como não tenho motivo para duvidar da veracidade desta história, que soube por pessoas em cuja honestidade posso confiar, penso que não nos será nada difícil saber quem podia ser o homem do banco: era o Diabo, que lá se pusera a fim de acabar o assassínio do homem, a quem, na sua condição de Diabo, havia tentado e levado a ser o carrasco de si mesmo. O fato, aliás, corresponde tão bem a natureza do Diabo e ao seu ofício, o de assassino, que nunca o pus em dúvida. Nem me parece injustiça com o Diabo acusá-lo desse crime.
Daniel Defoe

sexta-feira, maio 30

Amanhecer


 

Cão

um cão apenas
caminhando sozinho
numa calçada quente
em pleno verão
parece ter mais poder
do que dez mil deuses.

por que isso?

Charles Bukowski

Mistério em São Cristóvão

Numa noite de maio – os jacintos rígidos perto da vidraça – a sala de jantar de uma casa estava iluminada e tranquila.

Ao redor da mesa, por um instante imobilizados, achavam-se o pai, a mãe, a avó, três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos. O sereno perfumado de São Cristóvão não era perigoso, mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior da casa tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite fresca de maio. Nada havia de especial na reunião: acabara-se de jantar e conversava-se ao redor da mesa, os mosquitos em torno da luz. O que tornava particularmente abastada a cena, e tão desabrochado o rosto de cada pessoa, é que depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso nessa família: pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou durante anos nos partos e na casa, a mocinha está se equilibrando na delicadeza de sua idade, e a avó atingiu um estado. Sem se dar conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância.

Depois cada um foi para o seu quarto. A velha estendeu-se gemendo com benevolência. O pai e a mãe, fechadas todas as portas, deitaram-se pensativos e adormeceram. As três crianças, escolhendo as posições mais difíceis, adormeceram em três camas como em três trapézios. A mocinha, na sua camisola de algodão, abriu a janela do quarto e respirou todo o jardim com insatisfação e felicidade. Perturbada pela umidade cheirosa, deitou-se prometendo-se para o dia seguinte uma atitude inteiramente nova que abalasse os jacintos e fizesse as frutas estremecerem nos ramos – no meio de sua meditação adormeceu.
Passaram-se horas. E quando o silêncio piscava nos vaga-lumes – as crianças penduradas no sono, a avó ruminando um sonho difícil, os pais cansados, a mocinha adormecida no meio de sua meditação – abriu-se a casa de uma esquina e dela saíram três mascarados.

Um era alto e tinha a cabeça de um galo. Outro era gordo e vestira-se de touro. E o terceiro, mais novo, por falta de ideias, disfarçara-se em cavalheiro antigo e pusera máscara de demônio, através da qual surgiam seus olhos cândidos. Os três mascarados atravessaram a rua em silêncio.

Quando passaram pela casa escura da família, aquele que era um galo e tinha quase todas as ideias do grupo parou e disse:

– Olha só.

Os companheiros, tornados pacientes pela tortura da máscara, olharam e viram uma casa e um jardim. Sentindo-se elegantes e miseráveis, esperaram resignados que o outro completasse o pensamento. Afinal o galo acrescentou:

– Podemos colher jacintos.

Os outros dois não responderam. Aproveitaram a parada para se examinar desolados e procurar um meio de respirar melhor dentro da máscara.

– Um jacinto para cada um pregar na fantasia, concluiu o galo.

O touro agitou-se inquieto à ideia de mais um enfeite a ter que proteger na festa. Mas, passado um instante em que os três pareciam pensar profundamente para resolver, sem que na verdade pensassem em coisa alguma – o galo adiantou-se, subiu ágil pela grade e pisou na terra proibida do jardim. O touro seguiu-o com dificuldade. O terceiro, apesar de hesitante, num só pulo achou-se no próprio centro dos jacintos, com um baque amortecido que fez os três aguardarem assustados: sem respirar, o galo, o touro e o cavalheiro do diabo perscrutaram o escuro. Mas a casa continuava entre trevas e sapos. E, no jardim sufocado de perfume, os jacintos estremeciam imunes.

Então, o galo avançou. Poderia colher o jacinto que estava à sua mão. Os maiores, porém, que se erguiam perto de uma janela – altos, duros, frágeis – cintilavam chamando-o. Para lá o galo se dirigiu na ponta dos pés, e o touro e o cavalheiro acompanharam-no. O silêncio os vigiava.

Mal porém quebrara a haste do jacinto maior, o galo interrompeu-se gelado. Os dois outros pararam num suspiro que os mergulhou em sono.

Atrás do vidro escuro da janela estava um rosto branco olhando-os.

O galo imobilizara-se no gesto de quebrar o jacinto. O touro quedara-se de mãos ainda erguidas. O cavalheiro, exangue sob a máscara, rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror. O rosto atrás da janela olhava.

Nenhum dos quatro saberia quem era o castigo do outro. Os jacintos cada vez mais brancos na escuridão. Paralisados, eles se espiavam.

A simples aproximação de quatro máscaras na noite de maio parecia ter percutido ocos recintos, e mais outros, e mais outros que, sem o instante no jardim, ficariam para sempre nesse perfume que há no ar e na imanência de quatro naturezas que o acaso indicara, assinalando hora e lugar – o mesmo acaso preciso de uma estrela cadente. Os quatro, vindos da realidade, haviam caído nas possibilidades que tem uma noite de maio em São Cristóvão. Cada planta úmida, cada seixo, os sapos roucos aproveitavam a silenciosa confusão para se disporem em melhor lugar – tudo no escuro era muda aproximação. Caídos na cilada, eles se olhavam aterrorizados: fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se espiavam de asas abertas. Um galo, um touro, o demônio e um rosto de moça haviam desatado a maravilha do jardim... Foi quando a grande lua de maio apareceu.

Era um toque perigoso para as quatro imagens. Tão arriscado que, sem um som, quatro mudas visões recuaram sem se desfitarem, temendo que no momento em que não se prendessem pelo olhar novos territórios distantes fossem feridos, e que, depois da silenciosa derrocada, restassem apenas os jacintos – donos do tesouro do jardim. Nenhum espectro viu o outro desaparecer porque todos se retiraram ao mesmo tempo, vagarosos, na ponta dos pés. Mal, porém, se quebrara o círculo mágico de quatro, livres da vigilância mútua, a constelação se desfez com terror: três vultos pularam como gatos as grades do jardim, e um outro, arrepiado e engrandecido, afastou-se de costas até o limiar de uma porta, de onde, num grito, se pôs a correr.

Os três cavalheiros mascarados que, por ideia funesta do galo, pretendiam fazer uma surpresa num baile tão longe do carnaval, foram um triunfo no meio da festa já começada. A música interrompeu-se e os dançarinos ainda enlaçados, entre risos, viram três mascarados ofegantes parar como indigentes à porta. Afinal, depois de várias tentativas, os convidados tiveram que abandonar o desejo de torná-los os reis da festa porque, assustados, os três não se separavam: um alto, um gordo e um jovem, um gordo, um jovem e um alto, desequilíbrio e união, os rostos sem palavras embaixo de três máscaras que vacilavam independentes.

Enquanto isso, a casa dos jacintos iluminara-se toda. A mocinha estava sentada na sala. A avó, com os cabelos brancos entrançados, segurava o copo d’água, a mãe alisava os cabelos escuros da filha, enquanto o pai percorria a casa. A mocinha nada sabia explicar: parecia ter dito tudo no grito. Seu rosto apequenara-se claro – toda a construção laboriosa de sua idade se desfizera, ela era de novo uma menina. Mas na imagem rejuvenescida de mais de uma época, para o horror da família, um fio branco aparecera entre os cabelos da fronte. Como persistisse em olhar em direção da janela, deixaram-na sentada a repousar, e, com castiçais na mão, estremecendo de frio nas camisolas, saíram em expedição pelo jardim.

Em breve as velas se espalhavam dançando na escuridão. Heras aclaradas se encolhiam, os sapos saltavam iluminados entre os pés, frutos se douravam por um instante entre as folhas. O jardim, despertado no sonho, ora se engrandecia ora se extinguia; borboletas voavam sonâmbulas. Finalmente a velha, boa conhecedora dos canteiros, apontou o único sinal visível no jardim que se esquivava: o jacinto ainda vivo quebrado no talo... Então era verdade: alguma coisa sucedera. Voltaram, iluminaram a casa toda e passaram o resto da noite a esperar.

Só as três crianças dormiam ainda mais profundamente.

A mocinha aos poucos recuperou sua verdadeira idade. Somente ela não vivia a perscrutar. Mas os outros, que nada tinham visto, tornaram-se atentos e inquietos. E como o progresso naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve que se refazer quase do princípio: a avó, de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança soprasse depois de um jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio.
Clarice Lispector, "Todos os contos"

O triunfo do escritor


O mais atraente triunfo do escritor é fazer pensar aqueles que podem pensar.

Eugène Delacroix

O gigante egoísta

Todas as tardes, ao regressar da escola, costumavam as crianças ir brincar no jardim do Gigante.

Era um jardim amplo e belo, com um macio e verde gramado. Aqui e ali, por sobre a relva erguiam-se lindas flores como estrelas e havia doze pessegueiros que na primavera floresciam em delicados botões cor-de-rosa e pérola, e no outono davam saborosos frutos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão suavemente que as crianças costumavam parar seus brinquedos, a fim de ouvi-los. “Como somos felizes aqui!”, gritavam uns para os outros.


Um dia o Gigante voltou. Tinha ido visitar seu amigo o Ogre de Cornualha e ali vivera com ele durante sete anos. Passados os sete anos, dissera tudo quanto tinha a dizer, pois sua conversa era limitada, e decidiu voltar para seu castelo. Ao chegar, viu as crianças brincando no jardim.

Que estão vocês fazendo aqui? — gritou ele, com voz bastante ríspida e as crianças puseram-se em fuga.

Meu jardim é meu jardim — disse o Gigante — Todos devem entender isto e não consentirei que nenhuma outra pessoa, senão eu, brinque nele.

Construiu um alto muro cercando-o e pôs nele um cartaz:

É PROIBIDA A ENTRADA
OS TRANSGRESSORES SERÃO PROCESSADOS

Era um Gigante muito egoísta.

As pobres crianças não tinham agora lugar onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas a estrada tinha muita poeira e estava cheia de pedras duras, e isto não lhes agradou. Tomaram o costume de vaguear, terminadas as lições, em redor dos altos muros, conversando a respeito do belo jardim por eles cercados. “Como éramos felizes ali!” diziam uns aos outros.

Depois chegou a primavera e por todo o país havia passarinhos e florinhas. Somente no jardim do Gigante Egoísta reinava ainda o inverno. Os pássaros, uma vez que não havia meninos, não cuidavam de cantar nele e as árvores esqueciam-se de florescer. Somente uma bela flor apontou a cabeça dentre a relva, mas quando viu o cartaz, ficou tão triste por causa das crianças que se deixou cair de novo no chão, voltando a dormir. Os únicos que se alegraram foram a Neve e a Geada.

A primavera esqueceu-se deste jardim — exclamaram — de modo que viveremos aqui durante o ano inteiro.

A Neve cobriu a relva com seu grande manto branco e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Então convidaram o Vento Norte para ficar com eles e o vento veio. Estava envolto em peles e bramava o dia inteiro no jardim, derrubando chaminés.

Este lugar é delicioso — dizia ele — Devemos convidar o Granizo a fazer-nos uma visita.

De modo que o Granizo veio. Todos os dias, durante três horas, rufava no telhado do castelo, até que quebrou a maior parte das ardósias, e depois punha-se a dar voltas loucas no jardim, o mais depressa que podia. Trajava de cinzento e seu hálito era frio como gelo.

Não posso compreender por que a Primavera está demorando tanto a chegar — disse o Gigante Egoísta, ao sentar-se à janela e olhar para fora, para seu jardim frio e branco — Espero que haja uma mudança de tempo.

Mas a Primavera nunca chegou, nem tampouco o Verão. O Outono deu frutos áureos a todos os jardins, mas ao jardim do Gigante não deu nenhum.

É demasiado egoísta — disse ele.

De modo que havia sempre Inverno ali e o Vento Norte, e o Granizo, e a Geada e a Neve dançavam por entre as árvores.

Uma manhã jazia o Gigante acordado em sua casa, quando ouviu uma música deliciosa. Soava tão docemente a seus ouvidos que pensou que deviam ser os músicos do Rei que iam passando. Era na realidade apenas um pequeno pintarroxo que cantava do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que não ouvia ele um pássaro cantar em seu jardim que lhe pareceu aquela a mais bela música do mundo. Então o Granizo parou de bailar por cima da cabeça dele, o Vento Norte cessou seu rugido e delicioso perfume chegou até ele pela janela aberta.

Creio que chegou por fim a Primavera — disse o Gigante, saltando da cama e olhando para fora.

Que viu ele?

Viu um espetáculo maravilhoso. Por um buraco feito no muro, as crianças tinham-se introduzido no jardim, encarapitando-se nas árvores. Em todas as árvores que conseguia ver achava-se uma criancinha. E as árvores sentiam-se tão contentes por ver as crianças de volta que se haviam coberto de botões e agitavam seus galhos gentilmente por cima das cabeças das crianças. Os pássaros revoluteavam e chilreavam, com deleite, e as flores riam, apontando as cabeças por entre a relva. Era um belo quadro. Apenas em um canto ainda havia inverno. Era o canto mais afastado do jardim e nele se encontrava um menininho. Era tão pequeno que não podia alcançar os galhos da árvore e vagava em redor, chorando amargamente. A pobre árvore estava ainda coberta de geada e neve e o Vento Norte soprava e rugia por cima dela.

Sobe, menino! — dizia a Árvore, inclinando seus ramos o mais baixo que podia. Mas o menino era demasiado pequenino.

E ao contemplar o Gigante aquela cena seu coração enterneceu-se.

Como tenho sido egoísta — disse — Agora estou sabendo porquê a Primavera não vinha cá. Vou colocar aquele pobre menininho no alto da árvore e depois derrubarei o muro e meu jardim será para todo o sempre o lugar de brinquedo para es meninos.

Sentia-se deveras muito triste pelo que tinha feito.

De modo que desceu as escadas e abriu a porta de entrada bem devagarinho, saindo para o jardim. Mas quando as crianças o viram, ficaram tão atemorizadas que saíram todas a correr e o jardim voltou a ser como no inverno. Somente o menininho não correu, pois seus olhos estavam tão cheios de lágrimas que não viram o Gigante chegar. E o Gigante deslizou por trás dele, apanhou-o delicadamente com a mão e colocou-o no alto da árvore. E a árvore imediatamente abriu-se em flor e os pássaros chegaram e cantaram nela pousados e o menininho estendeu seus dois braços, cercou com eles o pescoço do Gigante e beijou-o. E as outras crianças, quando viram que o Gigante já não era mau, voltaram correndo e com eles veio também a Primavera.

O jardim agora é de vocês, criancinhas — disse o Gigante, que pegou um grande machado e derrubou o muro. E quando as pessoas iam passando para a feira ao meio-dia, encontraram o Gigante a brincar com as crianças no mais belo jardim que jamais haviam visto.

Brincaram o dia inteiro e à noitinha dirigiram-se ao Gigante para despedir-se.

Mas onde está o companheirinho de vocês? — perguntou — O menino que eu pus na árvore?

O Gigante gostava mais dele porque o havia beijado.

Não sabemos — responderam as crianças — Foi-se embora.

Devem dizer-lhe que não deixe de vir amanhã — disse o Gigante. Mas as crianças responderam-lhe que não sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes. E o Gigante sentiu-se muito triste.

Todas as tardes, quando as aulas terminavam, as crianças chegavam para brincar com o Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais foi visto de novo. O Gigante mostrava-se muito bondoso para com todas as crianças, contudo tinha saudades do seu primeiro amiguinho e muitas vezes a ele se referia.

Como gostaria de vê-lo! — costumava dizer.

Os anos se passaram e o Gigante foi ficando muito velho e fraco. Não podia mais tomar parte nos brinquedos, de modo que se sentava numa grande cadeira de braços e contemplava o brinquedo das crianças e admirava seu jardim.

Tenho belas flores em quantidade — dizia ele, mas as crianças são as mais belas flores de todas.

Numa manhã de inverno, olhou de sua janela, enquanto se vestia. Não odiava o Inverno agora, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.

De repente, esfregou os olhos, maravilhado, e olhou e tornou a olhar. Era realmente uma visão maravilhosa. No canto mais afastado do jardim via-se uma arvore toda coberta de alvas e belas flores. Seus ramos eram cor de ouro e frutos prateados pendiam deles e por baixo estava o menininho que ele amara.

O Gigante desceu as escadas a correr, com grande alegria, e saiu para o jardim. Atravessou correndo o gramado e aproximou-se da criança. E quando chegou bem perto dela, seu rosto ficou vermelho de cólera e perguntou.

Quem ousou ferir-te?

Pois nas palmas das mãos da criança viam-se as marcas de dois cravos e as marcas de dois cravos nos pequeninos pés.

Quem ousou ferir-te? — gritou o Gigante — Dize-me, para que eu possa tirar minha grande espada e matá-lo.

Não — respondeu o menino — São estas as feridas do Amor.

Quem és? — perguntou o Gigante, sentindo-se tomado dum grande respeito e ajoelhando-se diante do menininho.

E o menino sorriu para o Gigante e disse:

Tu me deixaste brincar uma vez em teu jardim, hoje virás comigo para o meu jardim, que é o Paraíso.

E quando as crianças chegaram correndo naquela tarde, encontraram o Gigante morto sob a árvore toda coberta de alvas flores.

Oscar Wilde

O fantasma parnasiano e outros

Ontem num sonho meu eu vi aparecer um fantasma que enfiado num vistoso fraque falava com as estrelas e dizia ser Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.

***

O mais intolerável fantasma que abriguei foi um que garantia ter sido tenor em Milão.

***

Um fantasma que me fez rir muito foi um que uma noite, tendo bebido toda minha cerveja, acabou dormindo na casinha de cachorro, em comovente fraternidade.

***

O fantasma francês de bigode apresentou-se como madame Bovary.

***

Seria um fantasma silencioso, se não tropeçasse em cada degrau.

***

E houve aquele fantasma, Xavier ou Javert, nome assim, que certas noites resolvia me acordar e submeter a interrogatório.

***

Era um fantasma incomum. Na farra, em vez de uísque ou de rum, o maganão bebericava conhaque de alcatrão de São João da Barra.
Raul Drewnick

quinta-feira, maio 29

Amanhecer no camping

 


Jane Gallagher

De repente, no caminho para o vestíbulo, comecei a pensar novamente na Jane Gallagher. Aí não houve mais jeito de tirá-la da cabeça. Quando cheguei lá, me sentei numa poltrona caindo aos pedaços e fiquei pensando na Jane e no Stradlater, metidos na porcaria do carro do Ed Banky. Por mais certeza que tivesse de que o Stradlater não tinha conseguido nada com ela – conheço a Jane como a palma da minha mão – mesmo assim não conseguia tirar o troço da cabeça. Conhecia a Jane como a palma da minha mão, no duro. Além de jogar damas, ela gostava de esportes e, depois que ficamos amigos, passamos o verão todo juntos, jogando tênis de manhã e golfe de tarde. Chegamos mesmo a ter bastante intimidade. Não que tenha havido qualquer coisa de físico nem nada – porque não houve mesmo – mas nós passávamos o dia todo juntos. A gente não precisa entrar sempre nesse negócio de sexo para conhecer direito uma garota.

Nós nos conhecemos por causa do cachorro dela, um Dobermann, que vinha se aliviar todo dia no nosso gramado. Minha mão ficava danada da vida, e um dia telefonou para a mãe de Jane e fez um escândalo daqueles por causa do cachorro. Minha mãe é capaz de fazer um bruto escândalo por causa de uma besteira dessas. Aí, alguns dias depois, vi a Jane deitada de bruços na beira da piscina do clube. Cheguei e dei um olá para ela. Sabia que era nossa vizinha, mas nunca tínhamos conversado nem nada. Ela me deu um gelo tremendo no começo, e depois tive um trabalhão para convencê-la de que pouco me importava onde o cachorro dela ia se aliviar. Por mim, podia ser até na sala de visitas. De qualquer maneira, depois disso acabamos amigos e naquela mesma tarde jogamos golfe juntos. Me lembro que ela isolou oito bolas. Oito. Minha maior dificuldade foi convencê-la a pelo menos abrir os olhos na hora de dar a tacada, mas, no fim, consegui que ela fizesse progressos fabulosos. Jogo golfe muito bem. Tem gente que nem acredita quando digo qual é o meu escore normal. Uma vez, quase entrei num curta metragem sobre golfe, mas mudei de ideia no último minuto. Pensei cá comigo que uma pessoa que odeia o cinema tanto quanto eu seria um cretino se aceitasse aparecer num filme.

A Jane era uma garota muito engraçada. Não se podia dizer que fosse propriamente bonita. Para mim era um estouro. Quando ela começava a falar sobre um troço qualquer e ficava excitada, costumava mover a boca em cinquenta direções ao mesmo tempo, lábios e tudo. Era o máximo. E ela nunca fechava a boca completamente. Estava sempre entreaberta, principalmente quando ela se preparava para dar uma tacada ou estava lendo um livro. Lia sem parar, e bons livros. Costumava ler um bocado de poesia e tudo. Foi a única pessoa, fora de minha família, a quem mostrei a luva de beisebol do Allie, com os poemas escritos por todo o lado. Ela não chegou a conhecer o Allie nem nada, porque aquele era o primeiro verão que passava no Maine – antes disso ela costumava ir para Cape Cod – mas contei a ela uma porção de coisas sobre o Allie. Ela se interessava por esse tipo de coisa.

Minha mãe não gostava muito dela. Achava que a Jane e a mãe dela eram metidas a besta, porque não a cumprimentavam quando se encontravam na cidadezinha. E isso acontecia a toda hora, porque a Jane também ia lá com a mãe dela num La Salle conversível, fazer compras no mercado. Minha mãe nem achava a Jane bonita. Mas eu achava. O caso é que eu gostava do jeitinho dela, só isso.

Me lembro de uma tarde. Foi a única vez em que quase nos beijamos. Era um sábado. Eu estava na varanda da casa dela e lá fora chovia que não acabava mais. Estávamos jogando damas. De vez em quando eu gostava de mexer com ela por causa da mania de não tirar nunca as damas da última fila. Mas eu nunca tinha vontade de mexer muito com ela. Bem que eu gosto de gozar uma guria quando tenho uma chance, mas acontece um troço engraçado comigo. As garotas de quem mais gosto são aquelas que nunca me dão muita vontade de mexer com elas. De vez em quando, acho até que elas gostariam duma bobagem dessas – pra dizer a verdade, tenho certeza de que gostariam – mas é difícil começar, depois de se conhecer uma garota por algum tempo sem nunca ter dado um gozo nela. Seja lá como for, eu estava falando sobre aquela tarde quando a Jane e eu quase nos beijamos. Chovia pra diabo. Nós estávamos na varanda quando, de repente, apareceu na porta o beberrão que era casado com a mãe dela e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu mal conhecia o sujeito, mas parecia o tipo do cara que só fala com a gente se estiver precisando de alguma coisa.

Era um péssimo caráter. De qualquer maneira, a Jane nem respondeu quando ele perguntou se ela sabia onde estavam os cigarros. O cara perguntou de novo, mas ela continuou calada. Nem tirou os olhos do tabuleiro. Finalmente, o sujeito voltou para dentro. Aí perguntei a ela o que é que estava havendo. Nem a mim ela respondeu. Fingiu que estava se concentrando no lance seguinte e tudo. Aí, de repente, estalou uma lágrima no tabuleiro. Foi num dos quadrados vermelhos – me lembro como se fosse agora. E ela esfregou a lágrima no tabuleiro com o dedinho. Não sei por que, mas o negócio me chateou pra caralho. Aí me levantei e me sentei ao lado dela no sofá – para falar a verdade, quase me sentei no colo dela. Aí ela começou a chorar mesmo, e só me lembro que comecei a beijá-la toda – em qualquer lugar - olhos, nariz, testa, sobrancelhas e tudo, as orelhas – o rosto todo menos a boca. Não sei como, mas ela sempre arranjava um jeitinho de não me dar a boca. De qualquer maneira, nunca mais estivemos tão perto um do outro. Pouco depois ela se levantou, entrou e voltou com um suéter vermelho e branco que eu achava o máximo. Aí fomos à porcaria dum cinema. No caminho, perguntei a ela se o tal de Cudahy – era assim que se chamava o porrista – tinha alguma vez se metido a engraçadinho com ela. Jane era muito garota, mas tinha um corpo infernal, e eu esperava qualquer coisa dum filho da mãe como aquele cara. Mas ela disse que não, e nunca pude descobrir qual era o problema. Tem garotas que a gente não consegue nunca saber qual é o problema delas.

Também não quero dar a impressão de que ela era uma porcaria dum iceberg ou coisa parecida, só porque nunca ficamos de agarramento. Não é isso. Vivíamos o tempo todo de mãos dadas, por exemplo. Não parece grande coisa, reconheço, mas era fabuloso ficar de mãos dadas com ela. Quando estão de mãos dadas com a gente, a maioria das garotas deixam a mão morrer dentro da mão da gente, ou então acham que têm de ficar mexendo os dedos o tempo todo, como se estivessem com medo de estar chateando a gente ou coisa que o valha. Com a Jane era diferente. Nós entrávamos numa droga dum cinema e imediatamente ficávamos de mãos dadas até o filme acabar. E isso sem ficar mudando de posição, sem fazer nenhuma complicação. Com a Jane a gente nem se preocupava se a mão estava suada ou não. Só sabia uma coisa, estava feliz, no duro.

Tem outra coisa que me lembrei agora. Quando estávamos no cinema, aquele dia, a Jane fez um troço que me deixou maluco. Estava ainda no jornal ou coisa parecida, quando, de repente, senti a mão dela no meu pescoço. Foi um gesto engraçado, esse dela. Jane era muito garota e tudo, e as moças que a gente vê pondo a mão no pescoço de alguém têm, quase todas, uns vinte e cinco ou trinta anos, e geralmente fazem isso com o marido ou um filho pequeno. Eu, por exemplo, de vez em quando faço isso com minha irmã menor, a Phoebe. Mas se uma garota é um bocado moça e faz um troço desses, é tão bonito que a gente nem sabe o que fazer.

De qualquer jeito, era nisso que eu estava pensando, sentado naquela poltrona caindo aos pedaços, no vestíbulo do hotel. Pensando na Jane. Por pouco não ficava doido toda vez que chegava na estória dela com o Stradlater na porcaria do carro do Ed Banky. Eu sabia que ela não ia deixar o Stradlater chutar em gol, mas mesmo assim ficava furioso. Pra ser sincero, nem gosto de falar nisso.

Não havia mais ninguém no vestíbulo. Até as louras com pinta de vigaristas já tinham sumido e, de repente, me deu uma bruta vontade de ir embora. O lugar era meio deprimente, e eu não estava cansado nem nada. Por isso, subi até o quarto e vesti o casaco. Aproveitei para dar uma olhada pela janela e ver se todos os tarados continuavam em ação, mas as luzes já estavam apagadas. Peguei o elevador outra vez, desci, chamei um táxi e disse ao chofer para me levar ao Ernie's. O Ernie's é uma boate em Greenwich Village onde meu irmão D. B. ia muito antes de ir se prostituir em Hollywood. De vez em quando me levava com ele. O Ernie é um pretão gordo que toca piano. É metidíssimo a besta e mal cumprimenta as pessoas, a não ser que seja um figurão, um cara famoso ou coisa que o valha, mas toca piano de verdade. É sério, ele é tão bom que chega quase a ser chato. É difícil de explicar, mas é isso mesmo. É claro que gosto de ouvi-lo tocar, mas, de vez em quando, dá vontade de arrebentar a porcaria do piano dele. Acho que é porque, quando está tocando, ele dá a impressão de ser o tipo do camarada que só fala com uma pessoa quando sabe que ela é um figurão.

J. D. Salinger, "O Apanhador no Campo de Centeio"

História de uma guariba

– Um domingo destes, contou Alexandre aos amigos, vesti o guarda-peito e o gibão, cobri-me com o chapéu de couro, acendi o cachimbo, pus o aió a tiracolo, peguei a espingarda, resolvido a desenferrujá-la, se aparecesse caça graúda. Saí pelo terreiro, dei umas voltas nos arredores, andei, virei, mexi, afinal entrei numa vereda, subi a ladeira dos preás e, sem encontrar bicho que merecesse uma carga de chumbo e um dedal de pólvora, cheguei à imburana, perto da cerca de ramos. Aí, como o calor apertasse, tirei o aió, o chapéu, o gibão e o guarda-peito, estirei- me no chão e passei uma hora de papo para cima, fumando e pensando nos aperreios deste mundo velho. Sentia-me bem triste, meus amigos, bem desanimado. Eu, homem de família, nascido na grandeza, criado na fartura, tendo o que precisava, do bom e do melhor, estava por baixo, muito por baixo: deitado em garranchos e folhas secas, a cabeça num travesseiro de couros dobrados. Fui- me amadornando, o cachimbo me caiu dos dentes, fiquei assim meio leso, nem adormecido nem acordado, vendo e ouvindo as coisas em redor e misturando tudo a casos antigos. De repente uns gritinhos finos me chamaram a atenção.

Esfreguei os olhos, sentei-me, espalhei aquelas embrulhadas que se juntavam no meu interior. E enxerguei uma espécie de velho barbudo saltando, fazendo caretas, guinchando e assobiando, como se mangasse de mim. Atentando na visagem esquisita, reconheci uma guariba. Levei mais que depressa a lazarina ao rosto, mas não pude atirar: o animal sacudia-se danadamente, sem oferecer alvo.

Depois saltou por cima de uma touceira de macambira e virou fumaça. Larguei- me atrás dele, andei meia hora examinando marcas de pés no chão, ramos quebrados, cabelos nas cascas dos paus. Na verdade eu estava com pouca sorte naquele dia: os sinais diminuíram, tomaram diversas direções, sumiram-se completamente. Aí os gritinhos e os assobios voltaram. Pareciam vir de todos os lados, e eu não conseguia adivinhar onde se escondia a peste do bicho. Disse comigo, arreliado: — “Aqui há mandinga, na certa. Das coisas deste mundo nunca tive medo, com os poderes de Deus, mas em negócios de feitiçaria não entro. Fujo e entrego os pontos. Deve andar na vadiação pelo menos meia dúzia de guaribas.” Uns risinhos safados me responderam pela direita e pela esquerda, por diante e por detrás. Fiz o pelo-sinal, rezei o credo, agarrei-me à Virgem Maria e dispus-me a entrar em casa. Aquela história começava a azucrinar-me. Ora sim senhores. Acreditam vossemecês que não acertei o caminho? É exato, achei-me numa atrapalhação, areado pela primeira vez na vida, completamente desorientado. Incrível, meus amigos, a coisa mais espantosa que até hoje me aconteceu. Ali pertinho de casa, com o sol nas alturas, as árvores iluminadas, tudo muito claro, perdido no mato, eu, um sujeito costumado a varar capueira no lombo de bicho brabo. Não podia haver disparate maior. Tenho vergonha de contar isto. Nunca me vi, antes ou depois, em situação igual. Se pudesse fumar, descansar, espairecer uns minutos, talvez conseguisse livrar-me do embaraço, arrumar as ideias que me fervilhavam no espírito. Infelizmente o cachimbo tinha ficado debaixo da imburana. E, sem chapéu, aguentando a quentura do meio-dia num verão puxado, sentia o miolo derreter-se e a vista escurecer. Decidi acompanhar os rastos da guariba, na esperança de que eles me levassem a alguma estrada. Não levaram. Tomei outro rumo. Trabalho perdido: uma confusão dos pecados. E, à toa, joguei-me para a frente, embirando-me nos cipós, furando-me os espinhos, falando assim cá por dentro: — “Agora nem volto nem torço. Nesta marcha vou até o fim do mundo. Todo o caminho dá na venda.” Andei uma légua, pouco mais ou menos. Os assobios e os gritos desapareceram. Ri-me de mim mesmo, achando graça naquela trapalhada: — “Isto não tem pé nem cabeça. Sonhei, provavelmente, estive sonhando e variando. Peguei no sono, levantei-me sem acordar direito e corri de um lado para outro, vendo e ouvindo coisas que não existem.” Pensando assim, entrei num carreiro que me pareceu conhecido. 

Encontrei uma cerca de ramos e um formigueiro de formiga branca, subi uma ladeira, alcancei o alto de um monte, onde topei a imburana. Bem. Respirei aliviado: era ali que eu tinha adormecido pela manhã. Estava perto de casa, a umas quinhentas braças ou menos. Procurei os couros que havia largado no chão e não percebi nem sombra deles. — “Que diabo é isto?” perguntei cá comigo. E comecei a arear-me de novo, julguei que talvez a imburana não fosse o pé de pau visto poucas horas antes. No meio da desordem enxerguei na terra folhas secas e gravetos espalhados. Tinha-me deitado ali, de papo para o ar, sem dúvida. Mas onde estavam meus arreios? Era o que eu não podia saber. Tudo naquele dia me andava pelo avesso. Disse baixinho: — “Valha-me Nossa Senhora do Amparo. 

Com certeza desci hoje da cama com o pé esquerdo e não fiz as minhas orações em regra! Foi por isso que o demônio se soltou e buliu comigo.” Deitei-me, resolvido a descansar um instante, porque o calor não era deste mundo e a cabeça me ardia desesperadamente. Fechei os olhos, tornei a abri-los, chateado: aquele desconchavo todo e por fim o desaparecimento dos picuás não me deixavam sossegar. Nessa altura, descobri lá em cima, quase escondida na folhagem da imburana, a guariba escanchada num galho, vestida no guarda-peito e no gibão, com o chapéu na cabeça. Trazia o aió a tiracolo. Meteu a mão nele, tirou o corrimboque, bateu a pedra de fogo, acendeu o cachimbo, e pôs-se a fumar regalada, balançando-se. Os senhores já viram bicho fumar? Era cada baforada que ninguém imagina. Pafo! pafo! pafo! Perdi os estribos com semelhante desaforo, gritei: — “Seiscentos diabos!” E levantei a espingarda: queria botar as coisas em pratos limpos, saber se aquela infeliz era vivente de fôlego ou alma penada. Aí se deu um caso extraordinário. A guariba conheceu as minhas intenções, pregou-me o olho e falou desse jeito: — “Seu Alexandre, vamos fazer um negócio? Vá criar seus filhos, que eu vou criar os meus.” Atirou-me lá de cima o cachimbo, o aió, o gibão, o guarda-peito e o chapéu. Fiquei assombrado, de queixo caído, nem tive coragem de atirar. Aceitei a proposta e deixei que a desgraçada fosse embora em paz.
Graciliano Ramos, "Histórias de Alexandre"

Vicente

Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. Em semelhante balbúrdia - lobos e cordeiros irmanados pelo mesmo destino - , apenas a sua figura negra e seca se mantinha inconformada com o procedimento de Deus. Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa. E, quanto mais inexorável se mostrava a prepotência, mais crescia a revolta de Vicente.

Quarenta dias, porém, a carne fraca o prendeu ali. Nem mesmo ele poderia dizer como descera do Líbano para o cais de embarque e, depois, na Arca, por tanto tempo recebera das mãos servis de Noé a ração quotidiana. Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar.

A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em leitos e condenados.

Mas ainda no íntimo de todos aquele sabor de resgate, e já do alto, larga como um trovão, penetrante como um raio, terrível, a voz de Deus:

-Noé, onde está meu servo Vicente?

Bípedes e quadrúpedes ficaram petrificados. Sobre o tombadilho varrido de ilusões, desceu, pesada, uma mortalha de silêncio.

Novamente o Senhor paralisara as consciências e o instinto, e reduzia a uma pura passividade vegetativa o resíduo da matéria palpitante.

Noé, porém, era homem. E, como tal, aprestou as armas de defesa.

-Deve andar por aí... Vicente! Vicente! Que é do Vicente?!...

Nada.

-Vicente!... Ninguém o viu? Procurem-no!

Nem uma resposta. A criação inteira parecia muda.

-Vicente! Vicente! Em que sítio é que ele se meteu?

-Até que alguém, compadecido da mísera pequenez daquela natureza, pôs fim à comédia.

-Vicente fugiu...

-Fugiu?! Fugiu como?

-Fugiu... Voou...

Bagadas de suor frio alagaram as têmporas do desgraçado. De repente, bambearam-lhe as pernas e caiu redondo no chão.

Na luz pardacenta do céu houve um eclipse momentâneo. Pelas mãos invisíveis de quem comandava as fúrias, como que passou, rápido, um estremecimento de hesitação.

Mas a divina autoridade não podia continuar assim, indecisa, titubeante, à mercê da primeira subversão. O instante de perplexidade durou apenas um instante. Porque logo a voz de Deus ribombou de novo pelo céu imenso, numa severidade tonitruante.

-Noé, onde está o meu servo Vicente?

Acordado do desmaio poltrão, trêmulo e confuso, Noé tentou justificar-se.

-Senhor, o teu servo Vicente evadiu-se. A mim não me pesa a consciência de o ter ofendido, ou de lhe haver negado a ração devida. Ninguém o maltratou aqui. Foi a sua pura insubmissão que o levou... Mas perdoa-lhe, e perdoa-me também a mim... E salva-o, que, como tu mandaste, só o guardei a ele...

-Noé!...Noé!...

E a palavra de Deus, medonha, toou de novo pelo deserto infinito do firmamento. Depois, seguiu-se um silêncio mais terrível ainda. E, no vácuo em que tudo parecia mergulhado, ouvia-se, infantil, o choro desesperado do Patriarca, que tinha então seiscentos anos de idade.

Entretanto, suavemente, a Arca ia virando de rumo. E a seguir, como que guiada por um piloto encoberto, como que movida por uma força misteriosa, apressada e firme - ela que até ali vogara indecisa e morosa ao sabor das ondas - , dirigiu-se para o sítio onde quarenta dias antes eram os montes da Arménia.

Na consciência de todos a mesma angústia e a mesma interrogação. A que represálias recorreria agora o Senhor? Qual seria o fim daquela rebelião?

Horas e horas a Arca navegou assim, carregada de incertezas e terror. Iria Deus obrigar o corvo a regressar à barca? Iria sacrificá-lo, pura e simplesmente, para exemplo? Ou que iria fazer? E teria Vicente resistido à fúria do vendaval, à escuridão da noite e ao dilúvio sem fim? E, se vencera tudo, a que paragens arribara? Em que sítio do universo havia ainda um retalho de esperança?

Ninguém dava resposta às próprias perguntas. Os olhos cravaram-se na distância, os corações apertavam-se num sentimento de revolta impotente, e o tempo passava.

Subitamente, um lince de visão mais penetrante viu terra. A palavra, gritada a medo, por parecer ou miragem ou blasfémia, correu a Arca de lés a lés como um perfume. E toda aquela fauna desiludida e humilhada subiu acima, ao convés, no alvoroço grato e alentador de haver ainda chão firme neste pobre universo.

Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um travor. Terra... Sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho? Mas Vicente, o legítimo fruto daquele seio?

Vicente, porém, vivia. À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.

Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada. Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino. Ah, mas estavam "rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu" ! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania. Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as conseqüências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco - a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. A significação da vida ligara-se indissoluvelmente ao acto de insubordinação. Porque ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte.

Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra àquela vontade inabalável de ser livre.

Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.
Miguel Torga

Árvores

As árvores sempre foram para mim os oradores mais convincentes. Eu as venero entre suas famílias e povos, as florestas e os bosques, mas, ainda mais as adoro quando estão a sós. Então são como os seres solitários, mas não como eremitas que por causa de alguma fraqueza se isolaram, mas como os grandes homens solitários: como Beethoven e Nietzsche. Em suas copas cicia o mundo, suas raízes jazem no infinito. Solitárias, elas não se perdem, senão com toda a força de seu ser procurar a única meta, preencher a sua própria lei desenvolvendo suas formas e se auto-representando. Não existe nada mais santo, mais exemplar do que uma bela e forte árvore. Quando uma árvore é cortada e seu ferimento mortal fica exposta ao sol, então é possível ler-se em seu toco, que ao mesmo tempo servirá como lápide, toda a sua história. No cerne e nas ramificações encontra-se fielmente descrito toda a luta, todo o sofrimento, todas as doenças, toda a felicidade e todo seu desenvolvimento nos anos ruínas e nos anos fortes, nas agressões e nas tempestades sobrevividas. Todo jovem camponês conhece a madeira mais forte e nobre pelos seus anéis de vida mais unidos, e que está lá no alto das montanhas, desafiando os mais constantes perigos, que crescem os troncos mais exemplares, mais fortes e resistentes. Árvores são relíquias. Quem sabe como falar-lhes, ouvi-las, esse conhece a verdade. Elas não pregam ensinamentos e receitas, pregam isoladamente a lei primária da vida.


Uma árvore diz: eu trago em mim uma luz, um pensamento, um âmago, pois eu sou a vida da vida eterna. Soberba e única foi a jogada que a eterna mãe ousou comigo em minhas formas, na constituição da minha pele, na mais leve cicatriz em minha casca ou no mais leve movimento de minhas folhas. Nada sei sobre meus pais, nem dos milhares de filhos que ano a ano brotam de mim. Vivo o segredo da minha semente até o fim, além disso nada mais me preocupa. Eu tenho a certeza de ter Deus em mim e que a minha missão é santa e dessa confiança vivo.

Quando estamos tristes, sem mais nenhuma vontade de aturar a vida, então uma árvore pode falar conosco. Ela dirá: Calma, calma! Olhe-me! Viver não é fácil, mas nem tão difícil, pensamentos assim são criancice, cale, deixe que Deus fale em você. Você treme porque seu caminho lhe afasta da mãe e da pátria, mas cada passo e cada dia o levará novamente ao seu reencontro. A pátria não está lá, nem cá, está em você ou em lugar algum.

A nostalgia de um viajante corta o meu coração quando à noite ouço as árvores sussurrarem. Escutando longamente e, quieto, descobri a essência dessa saudade, que como poderia parecer não é uma fuga do sofrimento, senão a nostalgia por uma pátria, a saudade de uma mãe ou a procura de novos símbolos para a vida. É a saudade que nos guia para casa. Todo caminho leva para casa, qualquer passo é um nascer, um morrer, qualquer sepultura uma mãe.

É assim, quando à noite sentimos medo de nossos pensamentos infantis, que a árvore cicia. As árvores têm pensamentos extensos, calmos e de fôlego comprido, da mesma forma que sua vida é muito mais longa que a nossa.

Enquanto não aprendemos a ouvi-las, são mais sábias que nós, mas quando conseguimos, então, especialmente essa pressa e rapidez infantil em nossos pensamentos se enchem de uma alegria sem igual. Quem já aprendeu a ouvir uma árvore não deseja mais ser uma, não desejará ser nada mais do que é e isso é a pátria, a felicidade.

Hermann Hesse, “Caminhada”

quarta-feira, maio 28

Exploradores

 


Os olhos dos póbres

Ah! Então você quer saber por que a odeio hoje... Sem dúvida lhe será menos fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois você é, acredito, o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Havíamos passado juntos um longo dia, que me parecera curto. Tínhamos jurado um ao outro que todos os nossos pensamentos nos seriam comuns, e nossas duas almas, daquele dia em diante, não seriam mais do que uma só; sonho que, além de tudo, nada tem de original, a não ser que, sonhando por todos os homens, ainda não foi realizado por nenhum.

Ao anoitecer, um pouco fatigada, você desejou sentar-se diante de um novo café, na esquina de um novo bulevar que, ainda cheio de entulho, já ostentava gloriosamente os seus esplendores inacabados. O café resplandecia.

Na calçada, diante de nós, víamos plantado um pobre homem dos seus quarenta anos, de ar fatigado, barba meio grisalha, que segurava por uma das mãos um menino e trazia no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil, incapaz de caminhar. Servindo de ama, fazia os filhos respirarem o ar da noite. Todos em trapos. Eram três fisionomias extraordinariamente sérios, e seis olhos que contemplavam o novo café com admiração igual, mas diversamente colorida pela idade.

Os olhos do pai diziam: – “Como é belo! Como é belo! Dir-se-ia que todo o ouro do pobre mundo foi transportado para estas paredes.” – Os olhos do menino: “Como é belo! como é belo! Mas é uma casa onde só podem entrar as pessoas que não é como nós.” – Os olhos do menorzinho, esses, de tão fascinados, revelavam apenas uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e abranda o coração. Em relação a mim, tinham razão as canções, naquela noite. Eu não só me sentia enternecido com essa família de olhos, senão também um pouco envergonhado de nossos copos e nossas garrafas, maiores que nossa sede. Voltava os meus olhores para os seus, querido amor, neles procurando ler o meu pensamento; mergulhava nos seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes, habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse:

– Que gente insuportável aquela, com uns olhos escancarados como portas-cocheiras! Você não poderia pedir ao dono do café que os afastasse daqui?

Tanto é difícil entenderem-se as criaturas, meu anjo querido, e tão incomunicável é o pensamento, mesmo entre aqueles que se amam!

Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"

Livraria de antigamente

Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d’O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao “Correio da Manhã” e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.

A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d’O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de “Quarup”. Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.


Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.

Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.

A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.

Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação.

Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.

Otto Lara Resende