terça-feira, outubro 15

leitura a qualquer tempo

 


A vida

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida...

Quando se vê, passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado..
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava
o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca
dourada e inútil das horas...
Seguraria o meu amor, que está a muito à minha frente, e diria
EU TE AMO...
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido
à falta de tempo.

Não deixe de ter alguém ao seu lado
por puro medo de ser feliz.

A única falta que terás será desse tempo que infelizmente...
não voltará mais.
Mario Quintana

Com ferro será ferido

Todo provérbio se apresenta como uma espécie de amostra grátis da verdade.

***

Toda vez que você é vítima de um desses acidentes do dia a dia, como cair da escada ou escorregar no sabonete, ouve aquela voz triunfalmente punitiva: eu não falei? É um provérbio.

***

Todo provérbio, se ainda não é, tende a ser irremediavelmente chato.

***

A sorte do cágado é ser proparoxítono.

***

Se você de repente for atormentado por uma dessas dúvidas crudelíssimas, como saber se é melhor ir trabalhar de carro, de ônibus ou de metrô, siga aquele velho conselho: procure o provérbio mais próximo.

***

Os cachorros do meu bairro não se parecem com aqueles do provérbio. São cachorros só, não cães, e, mesmo que por aqui viesse a passar uma caravana, não acredito que chegassem a ladrar. No máximo latiriam.

***

Cão que ladra não morde. O que se dizer de um poeta choramingas? O homem é o único animal capaz de criar lágrimas postiças.

***

Um provérbio que se preze só sai à chuva se quiser se molhar.

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Provérbio velho não mete a mão em cumbuca.

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Mentiras têm as pernas curtas e mau hálito.

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O provérbio lê a bula e sentencia: há males que não têm remédio.

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Tão cética anda a humanidade que um dia desses um provérbio de cavanhaque branco e bengala, com um pássaro na mão e dois voando, foi obrigado a mostrar o crachá.

***

É um provérbio histórico, durão, que sobreviveu à gripe espanhola e à Grande Depressão.

***

Quem mente só o suficiente, mente suficientemente.

A última entrevista de Jorge Luis Borges


“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção.”


Na entrevista, que foi concedida em julho de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila, Jorge Luis Borges fala sobre a infância, a cegueira, a morte. Afirma que o fracasso e o sucesso são impostores. E traduz o seu amor pela literatura em uma frase: “Se recuperasse a visão eu não sairia de casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim”. Borges morreria menos de um ano depois de ter concedido a entrevista.

Fale-me de sua infância, de suas memórias…

Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e pelos expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados.

Das leituras da infância, o que mais lhe impressionou?

“As Mil e Uma Noites”. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler quando criança. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosa­mente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por que quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava, dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.

E as lembranças dos amores?

Agora estão menos vivas. Lem­bro-me de uma frase muito triste de Emerson: “Life itself becomes a quotation”. “A própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia de versos em tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando. Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia.

Como é a cegueira?

Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.

Nunca ficou desesperado por causa da cegueira?

Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.

O sr. já pensou em suicídio?

Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.

Pode recitar?

Não me lembro. Tenho um poema que se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois rapazes, um argentino e um inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma superioridade numérica grande.

Quais foram as grandes sensações de sua vida?

São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.

Por que?

Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives in me”. “O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou também o primeiro homem”.

O sr. leu muitos de livros?

Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.

Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito?

Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.

O sr. leu pouco, mas sua vida é a literatura. A realidade para o sr. não importa muito. O que importa são as sensações?

Se eu tivesse interesse na realidade europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.

Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?

Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.

Não o conhece?

Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.

Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o sr. falasse do amor.

Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.

Quer dizer que o sr. acha que o casamento mata mais que o amor?
Três anos de casamento foram um pouco onerosos.

Fale-me de seu sentimento por Buenos Aires.

Mudou tanto a cidade… Já não a conheço… Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com terraços, pátios, campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha mãe se lembrava des­ta rua sem calçamento.

Mas o sr. é um homem universal, tem todos os sangues…
Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Mon­corvo, uma cidadezinha de Trás-os-Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo. Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.

A sua genialidade vem de que lado?
Não tenho genialidade de ne­nhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino.

Faz a diferença


Os livros mudam o destino das pessoas
Carlos Maria Dominguez

A caminho de Assunção

Meu dólmã azul-ferrete de alamares brancos estava puído nos punhos e na gola. Minhas botas não tinham saltos, e estavam furadas nas solas. O punho da minha espada partira-se. Os soldados tinham os pés descalços e os uniformes remendados pelas mãos das chinas que seguiam voluntariamente nosso exército ou eram arrebatadas nos povoados que atravessávamos a caminho de Assunção.
O coronel Procópio, comandante do 2º Regimento de Cavalaria, recusava-se a nos deixar vestir roupas civis.

Sabemos que o próprio General-Comandante veste sobre o seu uniforme um poncho azul de forro vermelho. E que oficiais e praças gaúchos do 5º Regimento se vestem de bombachas, ponchos e chapéus de vaqueiro, disse Procópio, na reunião do Estado-Maior.

Procópio era um homem magro, de testa pontuda e queixo fino. Passava as noites lendo na barraca. Diziam que ele não andava bom da cabeça.

Não somos um bando de peões de estância. Somos os Dragões Reais de Minas. Nosso regimento foi criado por Carta Régia.

Quando Procópio gritava, sua voz ficava áspera e rouca.

Estávamos em dezembro. Havíamos acabado de atravessar o Chaco e metade do nosso regimento fora dizimado pelo cólera, o beribéri e o tifo. Em meio à marcha rápida para o sul, bivacamos perto das coxilhas de Vileta. O acampamento fervilhava de homens e material de guerra. Íamos atacar Avaí.

Ouvia-se, ao longe, uma paródia obscena do hino da Cavalaria, cantada pelos gaúchos do 5º.

Partimos de madrugada. Raiou um dia de céu azul e nuvens muito brancas. Ao cruzar um desfiladeiro sombrio ouvimos o troar das bocas de fogo inimigas. O alferes Rezende, que crescera comigo em Santo Antônio do Paraibuna, caiu com o pé preso no estribo, a cabeça uma polpa sangrenta, e foi arrastado pelo seu cavalo em disparada até desaparecer num capinzal alto. De entre a macega, os mosquetões inimigos atiravam sem parar. O céu começou a escurecer e logo uma chuva grossa desabou sobre o campo de batalha.

Procópio ordenou uma carga sobre as baterias do flanco esquerdo. Atravessamos um capoeirão, um chão coberto de mata rala. Com as lanças em riste, investimos sobre a artilharia inimiga.

Carreguem, carreguem!, bradava Procópio.

O ruído das patas dos cavalos em galope acelerado e dos nossos gritos era tão forte quanto o estrondo dos canhões.

O primeiro que matei estava sem a barretina, os cabelos lisos, de índio, molhados pela chuva.

Muitos dos nossos, os cavalos mortos, combatiam a pé. A lâmina da minha espada brilhava lavada de sangue e chuva. Um artilheiro inimigo, um menino, agarrou meu estribo e me atacou com um facão. Decepei-lhe a mão direita, num golpe seco e hábil.

Aos poucos a luta foi cessando, apenas pequenas escaramuças ocorriam esporadicamente. O exército inimigo havia sido desbaratado.

Não se ouvia mais o estrondo dos seus canhões. Dezessete deles haviam sido capturados.

Nas ribanceiras e montes, nas macegas e capoeiras estavam caídos corpos mortos de muitos milhares de homens e animais. Saía do chão um cheiro de terra molhada e sangue e pólvora misturado com a fragrância doce da bosta dos cavalos.

O coronel Procópio e o tenente-coronel Rubião estavam mortos.

O major José Rias assumiu o comando do regimento. Os oficiais e sargentos se reuniram em torno de sua cabeça pelada pelo tifo. A pele do rosto de Rias era pálida como cera de vela de santo e seus olhos, encravados fundo no crânio, brilhavam de febre e loucura. O espírito de Procópio parecia ter entrado no seu corpo. Vamos até Assunção! Viva a Cavalaria!

Um estafeta surgiu para avisar que o General-Comandante estava passando em revista as tropas. José Rias percorreu o acampamento berrando com os homens que estavam deitados, dormindo ou apenas olhando exaustos para o céu.
A cavalo! de pé! Rias dava pontapés no rosto dos que não respondiam às suas ordens, enfiava a espada nas costelas dos recalcitrantes.

Em pouco tempo os homens montaram nos seus cavalos. Aqueles que haviam perdido as montarias perfilavam-se a pé, alguns com os arreios ao lado, a lança na mão direita usada como apoio, para não caírem ao chão de cansaço.
No meio da neblina, ao lado norte do campo, surgiu o General-Comandante cavalgando um tordilho, acompanhado de um ajudante de ordens. Vestia o poncho azul com forro vermelho, segurava as rédeas na mão esquerda e com a direita mantinha um lenço negro contra o rosto. Um tiro arrebentara seu maxilar e alguns dentes da frente. Havia manchas de sangue no seu poncho. Ele estava enganchado na sela como alguém que tivesse passado a vida inteira naquela posição. Os soldados, obedecendo ao comando de Rias, ficaram em posição de sentido.

O General imobilizou sua montaria e sem soltar as rédeas levantou a mão esquerda pedindo silêncio. Mas ouvia-se apenas o ranger do couro das selas e dos loros, o retinir das esporas e barbelas, o resfolegar dos cavalos contidos pelos freios. O General tirou o lenço do rosto e começou a falar.

Camaradas do 2º Regimento, Dragões Reais de Minas...

O ferimento da boca não permitia que ele pronunciasse as palavras corretamente. Eu dormitava sobre a minha sela e mal entendia o que ele dizia.

O velho sargento Andrade, dado como morto, esticado ao lado de uma carreta de munição, as esporas gastas de ferro enfiadas na terra estrangeira, o uniforme roto e sujo de lama, levantou-se, fez uma continência e caiu ao chão. Alguns soldados riram à socapa.

Osório parou de falar. Respondeu a continência olhando o corpo imóvel de Andrade, seu rosto meio escondido pelo lenço negro. Fez um gesto para o ajudante de ordens, esporeou o cavalo e partiu num trote curto em direção ao acampamento do 5°.
Rubem Fonseca, "O Cobrador"

segunda-feira, outubro 14

Tempos modernos

 


Perseguição da beleza

Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza. Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço. É um trabalho difícil, muitas vezes doloroso, cheio de revezes. Já passei dias e dias com as mãos na garganta apavorado que ela não volte a visitar-me. É difícil dizer o que é aquela poderosa presente ausência que nos oprime e agarra. Nunca está onde está, mas sempre um pouco mais longe, noutro sítio. Não são cores, imagens, sons, nem sequer a suave pele de uma mulher que me encantam. É o que está para além disso e que isso chama. A beleza corre o permanente perigo de a qualquer momento se desfazer em nada. É, na verdade, por completo insustentável. Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta. É impossível provar que existe. Daí a urgência, o coração a bater na boca. A perseguição da beleza é uma corrida de obstáculos sem meta de chegada. Basta o som de uma voz para rasgar futuros. Basta uma fotografia de uma mala fechada sobre uma cama para abrir horizontes. Todos os cuidados são insuficientes. É um trabalho longo preenchido de mistérios. Se se procura controlar, escapa. Se se procura guardar, esvai-se entre os dedos. Tem de ser roubada com toda a rapidez e mantida no movimento que é só dela. Se se tenta parar, fixar, já não vale a pena. O dinheiro tem certamente as suas vantagens. Uma das poucas coisas que serve para várias. E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escândalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe. Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. E depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. A tomar duche à minha frente. A irromper do nada. A primeira coisa que um qualquer fanatismo sabe que tem a fazer é demolir com a beleza. Com todo o direito, de todas as maneiras. A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima. A beleza alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta. É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.

Pedro Paixão, "O mundo é tudo o que acontece"

A criada

Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida. Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.


Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.

Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar. Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza. Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta. Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.

Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.

Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.

A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.
Clarice Lispector, "Felicidade Clandestina"

Aldebaran

Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham - como numa paragem de autocarro.
Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara ao limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentiamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatias sanduiches de realidade.

Egito Gonçalves

Dedicatória

Querido Pat:

Você me viu entalhando uma pequena figura na madeira e disse:

'– Por que não faz alguma coisa para mim?’

Perguntei o que você queria e você me disse:

– Uma caixa.

– Para quê?

– Para guardar coisas.

– Que coisas?

– O que você tiver, você me disse.

Bem, aqui está a sua caixa. Quase tudo o que eu tenho está nela, e não está cheia. Dor e emoção estão dentro dela, sentimentos bons ou ruins, e maus pensamentos e bons pensamentos – o prazer da obra, algum desespero e a alegria indescritível da criação.

E por cima de tudo estão toda a gratidão e o amor que sinto por você.

Mesmo assim, a caixa não está cheia.
John

(Dedicatória de John Steinbeck na obra A Leste do Éden, para seu editor, Pascal Covici, Pat.)

domingo, outubro 13

Leitura não tem lugar

 


Fragmentos disso que chamamos de 'minha vida'

Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa.

Essa pequena epifania.
Caio Fernando Abreu

O vento assobiava à tarde

E era assim o longo vale do Salinas. Sua história era como a do resto do estado. Primeiro houve os índios, uma raça inferior sem energia, criatividade ou cultura, um povo que vivia de larvas, gafanhotos e moluscos, preguiçoso demais para caçar ou pescar. Comiam o que estava à mão e nada plantavam. Moíam bolotas de carvalho para fazer sua farinha amarga. Até suas guerras não passavam de uma pantomima cansada.

Depois os espanhóis duros e secos chegaram para explorar, cobiçosos e realistas, e sua cobiça era de ouro ou de Deus. Colecionavam almas como colecionavam joias. Conquistaram montanhas e vales, rios e horizontes inteiros, como um homem nos dias de hoje conquistaria a concessão de terrenos para construir prédios. Estes homens valentes e ásperos moviam-se inquietamente pela costa, de cima a baixo. Alguns deles permaneciam, com feudos vastos como principados, doados a eles pelos reis de Espanha que não tinham a menor ideia da dádiva. Estes primeiros proprietários viviam em pobres povoamentos feudais e seu gado pastava livremente e se multiplicava. Periodicamente, os proprietários matavam seu gado pelo couro e sebo e deixavam a carne para os abutres e coiotes.
Quando os espanhóis chegaram tiveram de dar a tudo o que viam um nome. Este é o primeiro dever de qualquer explorador — um dever e um privilégio. Você precisa nomear uma coisa antes de anotá-la no seu mapa desenhado à mão. Naturalmente, eles eram religiosos, e os homens que sabiam ler e escrever, que faziam as anotações e desenhavam os mapas, eram os incansáveis padres que viajavam com os soldados. Assim os primeiros nomes dos lugares eram nomes de santos ou de festas religiosas celebradas nos pontos de parada. Existem muitos santos, mas eles não são inexauríveis e por isso encontramos repetições nos primeiros locais batizados. Temos San Miguel, St. Michael, San Ardo, San Bernardo, San Benito, San Lorenzo, San Carlos, San Francisquito. E também os feriados — Natividad, o Natal; Nacimiento, o Nascimento; Soledad, a Solidão. Mas os lugares também eram nomeados em função do estado de espírito da expedição na ocasião: Buena Esperanza, boa esperança; Buena Vista, porque a vista era agradável; e Chualar, porque era bonita. Os nomes descritivos vieram depois: Paso de los Robles, por causa dos carvalhos; Los Laureles, por causa dos loureiros; Tularcitos, por causa dos juncos do pântano; e Salinas, porque o álcali era branco como o sal.

Depois os locais receberam os nomes dos animais e dos pássaros avistados — Gabilanes, por causa dos gaviões que voavam naquelas montanhas; Topo, por causa da toupeira; Los Gatos, por causa dos gatos selvagens. As sugestões às vezes vinham da natureza do próprio local: Tassajara, uma xícara e pires; Laguna Seca, um lago seco; Corral de Tierra, por causa de um cercado de terra; Paraiso, porque era como o Céu.

E então vieram os americanos — mais cobiçosos porque eram em maior número. Tomaram as terras, refizeram as leis para garantir seus títulos de posse. E fazendas se espalharam pela terra, primeiro nos vales e depois subindo pelas encostas, pequenas casas de madeira com telhados de aparas de sequoia, currais de pau a pique. Onde quer que um filete de água escorresse do chão, uma casa se erguia e uma família começava a crescer e se multiplicar. Mudas de gerânios vermelhos e roseiras eram plantadas nos jardins. Estradas de carroças substituíam as trilhas e campos de milho, cevada e trigo expulsaram a mostarda amarela. A cada quinze quilômetros ao longo das estradas, um armazém de secos e molhados e uma ferraria brotavam e tornaram-se o núcleo de pequenos povoados, Bradley, King City, Greenfield.

Os americanos tinham uma tendência maior para dar nomes de pessoas aos locais do que os espanhóis. Depois que os vales foram habitados, os nomes dos lugares se referem mais a coisas que aconteceram ali, e estes para mim são os mais fascinantes de todos os nomes porque cada nome sugere uma história que foi esquecida. Penso em Bolsa Nueva, uma bolsa nova; Morocojo, um mouro manco (quem era ele e como chegou ali?); Wild Horse Canyon, Mustang Grade e Shirt Tail Canyon. Os nomes dos lugares levam a marca das pessoas que os batizaram, reverentes ou irreverentes, descritivos, poéticos ou depreciativos. Você pode chamar qualquer lugar de San Lorenzo, mas nomear desfiladeiros como fralda de camisa ou mouro manco é algo bem diferente.

O vento assobiava sobre os povoados à tarde e os fazendeiros começaram a erguer quebra-ventos de eucaliptos para impedir que a terra arada fosse soprada para longe. E assim era o vale do Salinas quando meu avô trouxe sua mulher e instalou-se nos contrafortes a leste de King City.
John Steinbeck, "A leste do Éden"

A canoa furada

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

– Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

– Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.


– Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

– “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados.

— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.”

— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado.

— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo.

— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem:

— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

Graciliano Ramos

O beijo da palavrinha

Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.

Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.

Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.


Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.

Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas profundas.

A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.

- Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!

Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.

Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.

- Mas o mar cura assim tão de verdade?

- Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar. Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.

- Vou-lhe mostrar o mar, maninha.

Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra

MAR

Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.

O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera. Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:

-Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.

-Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.

Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.

-Vês esta letra, Poeirinha?

-Estou tocando sombras, só sombras, só.

Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.

-Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?

-Sim. O meu dedo já está a espreitar.

-E que letra é?

E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes. Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. Pois a letra m é feita de quê?

É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.

E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.

-É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.

-E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?

Essa a seguir é um a.

É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.

Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.

-E a seguinte letrinha?

E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.

O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:

- Calem-se todos: já se escuta o marulhar!

Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca?

Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?

Mia Couto

sexta-feira, outubro 11

Descanso da bruxa

 


As Marias

Maria, filha de Maria, a filha de Maria, tem trinta e um desgostos. Lava a roupa, lava a louça, varre que varre, e a patroa – Jesus Maria José? – a patroa ralhando.

Aos sete anos, foi esquecida pela mãe na primeira esquina. Mulher cheia de filhos, não podia com mais um: deu a pobre da Maria.

Sempre em casa estranha, dormindo em cama-de-vento, comendo em pé ao lado do fogão. Trabalhadeira, era de confiança e não tinha boca para pedir. Pálida, vivia debaixo de chá de ervas. Sonhando, rilhava os dentes, com as bichas alvoraçadas. Maria, ai dela, nunca soube qual o gosto de uma pêra-d’água! O guarda-comida trancado a chave, ela roía com fome um naco de rapadura, escondida sob o travesseiro.

Lenço amarrado na bochecha, usava cera milagrosa para dor de dente – até que perdia o dente. Vagarosa por culpa de unha encravada. De lidar na potassa, partiam-se os dedos e sofria de panarício. Nunca se despedia, era despachada pela patroa, aborrecida de suas aflições e sua cara de pamonha.

Ao rolar de uma para outra casa, engordava com os anos, gemia de dor nas cadeiras e enleava-se no serviço. Sua alegria era lavar o cueiro do bebê. Ah, mas beijar a criancinha...

- Está proibida, ouviu, Maria?

Criada não conhece o seu lugar, podia ter alguma doença.

Menina séria, não ia ao baile com as outras. No carão anêmico esfregava papel de seda escarlate molhado na língua e, mal surgia à janela, a espiar um soldadinho verde, a patroa ralhava.

- Maria, já escolheu o arroz?

- Maria, já passou a roupa?

- Já encerou a casa, ó Maria?

Areada a chapa do fogão, guardava a louça, varrida a cozinha, chegava-se medrosa à porta. O soldado rondava, parava, batia continência. Tinha pressa como soldado era de guerra: queria pegar na mão e cobrir de beijos.

- Deus me livre, podia ter algumas doenças!

Maria faz o sinal-da-cruz: a boca só o marido é que iria beijar.

Onde estão os praças de cavalaria, o tinir das esporas na calçada? Trinta e um anos de Maria! Até proibida de passear com a Maria.

- Pois vá chorar no quarto – ordena-lhe a patroa. – Não suporto cena de gentinha!

Essa Maria, um objeto de casa, o capacho da porta, a vassoura no prego.

Maria não vai ao circo, o palhaço é tão gozado.

Maria não vai ao Passeio Público ver o macaquinho comer banana.

Maria não vai ao cineminha na sexta-feira assistir à Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Maria, a filha de Maria, distraída no domingo com a Marta, viu seu coração rolar do peito e, prato que lhe escapou dos dedos gordurosos ( a patroa vai ralhar?), partir-se em sete pedaços de sangue pelo chão.

Era um cabo? Maria nunca soube de que arma. Falava lindo e tão difícil, puxando no xis – vixto, mocinha? – que ela saltitar ora numa perna ora noutra, esganada roía as unhas.

- Tem gente, cabo. Você me respeite, ó cabo?

Ele a levou ao circo e Maria entrou soberba como uma patroa entre a gentinha que fazia cena: no pescoço a velha pele de coelho mordendo a cauda. A charanga, o peludo de cara pintada, o cabo das grandes botas de general. Um palhaço xinga o outro de “Gigolô”!, o circo vem abaixo de tanta gargalhada. Maria sorri, o cabo lhe tira sangue do peito.

- Ocê me deixa louco, Maria.

Sob o espanto do baleiro, anunciando “Oia a bala oi...”, ela beijou a mão do cabo.

Em nove meses Maria, filha de Maria, vai ser mãe de Maria.

Dalton Trevisan

Coisas incuráveis

Nestes anos mais recentes tenho ido à farmácia quase na mesma frequência que à padaria. Não é de agora. Mas só agora, sem muita estrada à vista, essa preocupação começa a tecer sombras e puxar lembranças a ponto de empanar-me os passos mais rotineiros.

Uma das lembranças trazidas a cada crise de rinite: a do velho Joca Leite, que tanto me repugnava a assoar-se a cada palavra das conversas com meu pai - a coriza expelida no estalo dos dedos. Coisa de nada, mas que não passou ilesa na composição que tanto exigiu do ofício de meus sonhos, o “Retrato de memória”. Não podia nunca imaginar que o defluxo crônico de uma criatura tão passageira viesse castigar o nojo, sem pecado, de criança tão remota no tempo. Ainda bem que entre as vantagens inumeráveis da modernidade posso contar com a discrição higiênica do lencinho descartável.

Saí para a farmácia em busca de um antialérgico do qual não me ache ainda viciado, e, mesmo com os olhos no chão na noite sofrivelmente iluminada, tropeço numa cabeça com todo o corpo enrolado em lona escura, arrimado, do lado de fora, à parede de vidro do estabelecimento. Um embrulho dos muitos ou milhões que o clichê de hoje identifica como gente “em situação de rua.”

O embrulho mexeu-se, assustei-me, e apurando as vistas, tentei desvendar seu rosto e pedir desculpa. Esperei o bastante para me convencer que a peitada fora bem menos pesada que aquele seu sono solto, a forte corrente de ar da minha rua a passar a mão naquela mísera cabeça devolvida às leis da natureza.

Pois bem, mal me retiro, alguns passos depois, quase na mesma calçada, estaco fuzilado por dois olhos da cor de brasa, entre assustados e furiosos, que se arrancam do fundo de uma sacola do tonel de lixo aturdidos pela minha chegada ou pelo meu espanto.

Mastigava, parou de mastigar e, pilhado nesse rebaixe, lançou fora o que tinha na boca numa reação que me assustou. Parado estava, parado fiquei, um diante do outro, ele reclinado com os dois braços apoiados nas beiradas do tonel, eu sentindo o gatilho dos seus olhos a me reter a voz e qualquer atitude. Não senti medo, tenho certeza. Senti pior, coisa como um desengano forte, súbito, sempre súbito, apesar de manchetes como a desta semana: “33 milhões de brasileiros não têm o que comer” (Rede Globo)

Preparei-me mudo para entregar o que restasse no bolso, o relógio do pulso, a carteira. Ainda passei a sacola da farmácia para a mão direita resolvido a puxar a carteira com a esquerda. Nada me ajudava, o estacionamento deserto, nenhum carro que chegasse, nenhum freguês.

Desci os olhos até seus pés, a calça rota e sem cor mal chegando aos tornozelos, tão magros quanto os meus. E consegui ver, então, que podia respirar, ter voz, podendo falar qualquer coisa que não fosse o que tanto me repugnara, aquele bocado sujo lançado e cuspido fora.

Ele retorna o olhar para dentro do tonel, faz lá sua reavaliação, e de repente desembesta em demanda do deserto escuro que é o trecho entre lojas fechadas de um lado e o alto paredão da Igreja Universal da Epitácio Pessoa. Sem olhar para trás, sem me dar chance de ter feito a entrega a que estava resolvido. Mas já sem me lembrar do que me levara à farmácia.

As Naus

O homem de nome Luís misturou-se com os ressuscitados que povoam as trevas de Lixboa, amanuenses sem plumas de falcão na boina, espadachins em desgraça a engolirem a sua sopa de mendigos a um canto, rabis de barbicha sebosa, a malta dos veleiros contrabandeando pelas mesas relógios e canetas a cinquentonas que tronavam diante do chá de tília da reforma, engraxadores moiros de vão de escada, de algibeiras cheias de escovas e de panos. Xarangas de bailes de bombeiros desafinavam no jogo do galo das travessas, eriçadas de carteiristas e polícias. Os homens-mulheres discutiam preços com os choferes dos carros, introduziam as cabeças enormes no intervalo dos vidros, trotavam a passo manso no sentido de uma pensão vizinha, três pisos de bacias com uma luz vermelha no cimo da escada, a ajudar as órbitas de toupeira vesga de quem chega. E discotecas semelhantes a caldeiras de barco e o suor do Tejo, por revoadas, de acordo com as manias das correntes, trazendo consigo vestígios de esgoto e de lugares perdidos.




Levado por um cardume de safios que desfolhavam sardinheiras de varanda com os dentes, flutuou pelos ministérios do Terreiro do Paço, frente ao rio, onde os aleijados tocavam nas arcadas sambas de rabeca e a amplidão da água se abria a seguir aos degraus que descem para o mar e aos retroseiros e cavernas de ginjinha da Rua Augusta. Os travestis ficaram definitivamente para trás com os seus colares de missanga e as suas écharpes de cocote, dado que esta praça, à hora de dormir, pertence a um silêncio de redoma antiga e aos acordeões dos cegos. Um deles, de instrumento às costas, marchou à minha frente, a agitar a bengalinha apressada, para Santa Apolónia, estação de carruagens de Franças, de Alemanhas e de Bélgicas com uma fila de táxis, à espera de viajantes e de malas, contornando o edifício enorme, mais monstruoso que uma caserna ou uma prisão, onde os sons se quebravam no cimento. Lá dentro, junto aos esguichos a ferver das locomotivas de partida, havia uma lâmpada de capitel de circo, uma esplanada em sossego, emigrantes que cabeceavam sobre embrulhos gordurosos e um funcionário idoso a varrer as beatas do chão para uma pá de alumínio. Por um momento o homem de nome Luís perdeu o cego das músicas, que trauteava a antena da ponteira pela gare adiante, de forma que acabou por sentar-se a uma mesa da esplanada com o pai amolgado num assento próximo, a olhar uma vendedeira de jornais e revistas que contava as notas do avental. Se chegasse a uma das portas topava com certeza o Tejo, isto é, torpedeiros e golfinhos e estivadores de blusa estampada e fervores de desembarque, as fábricas do Barreiro que principiavam a distinguir-se à medida que a linha do horizonte se definia, além do lombo da encosta.

Um empregado de casaco branco de que a cirrose do flúor acentuava as nódoas e os rasgões debruçou-se para mim como uma Pietà aborrecida, e pedi um quarto de água das pedras cujas bolhinhas saltavam do fundo como ovos de insecto: talvez que houvesse um cemitério complacente num intervalo da desordem de pombais e de telhados de Lixboa, com antenas de televisão cravadas nas lápides dos defuntos, e nisto cuidou distinguir o cego dos sambas, guiado pela vivacidade da bengala, a trotar ao longo da plataforma do foguete do Porto, mas atentando melhor não era ele e sim um agulheiro qualquer, de boné na cabeça, armado de uma espécie de pé de cabra comprido destinado a alterar o norte dos comboios. O empregado, sem clientes na esplanada vazia, veio sentar-se numa mesa a dois metros, a puxar cigarros do bolso, e o homem de nome Luís surpreendeu-se com o seu rosto de flibusteiro e o corpo mole, abatido em pregas redondas, à espera do colega da manhã.

Os dois, lado a lado, separados pelo morto, assistiram à chegada do pelotão das mulheres da limpeza, que se sumiu a arrastar os chinelos numa espécie de guarda-vento de hotel. Um casal de pedintes de botas sem atacadores, com sacos de plástico nos dedos, estendeu-se num banco de ripas a fim de descansar de infinitas peregrinações de mão estendida. Uma composição avançou a uivar para os longes de um túnel, e eu pensei Daqui a nada apagam as luzes e fico a mirar a lividez da aurora nos caixilhos do átrio, os prédios feios, de escritórios, lá de fora, encimados por clarabóias de estufa e habitados por traças funerárias. Ficamos, o empregado e eu, neste ilimitado espaço de carruagens, num silêncio de sótão que a bengala do cego percorre para trás e para a frente a tilintar sem repouso. As lâmpadas desmaiaram um pouco e o rio inchou para além das entradas laterais, sem barcos nem pássaros, crestado e rugoso como o fundo dos tachos. Uma voz anunciou aos microfones o rápido de Paris, e uma desordem de emigrantes em férias, embrutecidos pelo torpor da viagem, coxeou na direcção dos táxis arrumados em minguante junto aos edifícios de escritórios. O homem de nome Luís percebeu o cego no roldão dos passageiros, logo adiante de um senhor de gabardina que sacudia uma criança pelo braço, escutou o morse da ponteira no cimento, mas o da gabardina esfumou-se ao passar perto dele, dissolvido num grupo de malas às costas, cambaleando de sono. O empregado da esplanada, esquecido da esferográfica e do bloco das somas, levantou-se como um harmónio se desdobra e enfiou-se de viés numa espécie de arrecadação ou de cozinha: Aposto que vai apagar as luzes, pensei eu, aposto que vai trancar tudo agora que os franceses chegaram, correr as aldrabas, verificar os fechos, partir, abandonar-me a mim e ao cego nesta garagem de ecos e vapores. Então afastei a garrafa de água das pedras para um canto da mesa, agarrei na caneta e no caderno do criado sem ossos, sacudi-me melhor na cadeira, apoiei o cotovelo esquerdo no tampo, e de ponta da língua de fora e sobrancelhas unidas de esforço, comecei a primeira oitava heróica do poema.

António Lobo Antunes