Canto do Livro
Entre o pó e as traças de uma gaveta de livreiro
sexta-feira, julho 25
O pai
Dizia que a vida só é dura para quem é mole. Na sua idade, filho, diversão em demasia é desperdício de tempo, não é bom, tudo na vida tem a sua medida exata, até na quantidade de brincadeiras. Vejo que você exagera até em tempo de regime escolar, se houver na semana um dia de feriado, lá se vai com o bando de amigos tomar banho no rio, jogar futebol nos terrenos baldios, caçar passarinho, esquecido de que o mundo tem mais dias difíceis do que fáceis para se obter as conquistas.
O pai era trabalho, acordar cedo, gastar o necessário, economizar sempre. A mãe era leite e mel. Falava para ele não ser tão rigoroso com o filho, tinha direito a se divertir no dia de feriado, o tempo que quisesse nas férias. Era um bom estudante, tirava boas notas nas provas. Tudo tem seu tempo na vida, o menino vai aprender isso um dia.
Não mudava seu método de compreender a vida e como fazer para enfrentar o seu lado áspero. Sério e disposto no trabalho, acordava cedo, fazia a refeição matinal, saía rumo ao bairro da Conceição, que ficava no outro lado do rio. O pai estava construindo uma avenida de casinhas para alugar às gentes populares, de pouca renda. O filho levava o almoço para o pai na marmita. No local do trabalho, às vezes o pai fazia o papel de pedreiro, servente, carpinteiro, armador de ferragem para ser batida a laje. Era hábil e caprichoso nas tarefas que aprendia com facilidade. Tornou-se um exímio mestre de obra em pouco tempo.
Levava consigo para o trabalho diário sua maneira de ser regrada com preceito, simplicidade, paciência, concentração, objetividade e a fé ferrenha de que um dia seria um homem abastado. Tempos depois o filho viu que o pai estava formando um patrimônio razoável constituído de casas e prédios. Dera para emprestar dinheiro a juros altos, com isso seus rendimentos aumentavam e o patrimônio se expandia.
A mãe falou que a vida do pai sempre foi difícil desde o começo até se tornar um homem rico. Cedo suas mãos ficaram com calos, de tanto pegar no pesado. O pai chegara na pequena cidade quando o aglomerado de pessoas parecia ainda com uma vila. Veio só com a roupa do corpo, calçava uma sandália de couro grosso. Foi balconista em um armazém de portas largas na rua do comércio. Dormia embaixo do balcão. Lavava a sua roupa no rio quando entardecia, mas com o sol ainda quente no verão abafado. Ficava atrás das pedras vendo a roupa secar. Economizava o salário pequeno que ganhava no serviço de balconista. Com o dinheiro que ganhou comprou um quiosque de madeira. Vendia no quiosque cachaça, charuto, cigarro, caramelos e pastel. Vendeu o quiosque e comprou uma bodega onde vendia agora carne charqueada, farinha, feijão, arroz e milho. Tempo depois vendeu o quiosque e foi construir as primeiras casinhas populares. Daí em diante com aluguel das casas foi economizando e crescendo na vida.
Era rigoroso com o filho porque queria que ele estudasse com afinco para ser gente, não passar na vida as dificuldades que ele teve de enfrentar. O pai gostava de aquecer os pensamentos na espreguiçadeira quando o domingo amanhecia com o ar morno. Tinha o sestro de torcer os dedos quando as ideias que chegavam no íntimo falavam das benesses do dinheiro. Cada vez mais se convencia de que o homem nesta vida só valia alguma coisa, era respeitado pelos outros, quando tinha muito dinheiro.
Assim, quando estava recolhido aos pensamentos, que lhe afirmavam como era bom ser rico, certas frases, tiradas da vida diária, gostava de dizer para ele mesmo. Uma delas informava que quem disser que tem amigo tem de si pouca ciência, amigo só existe aquele, o da própria conveniência. Outra, que, no final, fazia com que mordesse o lábio inferior, surgia como um apelo dirigido a alguém que estava oculto, mas que somente ele via. “Dinheiro você diz que me quer bem, no meu bolso faz mais bem quando vem.”
Menino desobediente, atrevido, não ouviu os conselhos do pai, gastou a nota de dez cruzeiros com besteira no parque. O prêmio que tinha ganho por ter sido aprovado no exame de admissão foi jogado fora com as besteiras que achou de comprar para comer e para se divertir nos brinquedos do parque, que se instalara na semana para ganhar o dinheiro dos tolos.
Tudo que o pai aprendera foi na escola da vida. Já homem amadurecido, o filho soube o quanto ele estava certo quando dizia que o dinheiro era uma coisa difícil de conseguir, cedo se devia saber como gastá-lo.
O pai era trabalho, acordar cedo, gastar o necessário, economizar sempre. A mãe era leite e mel. Falava para ele não ser tão rigoroso com o filho, tinha direito a se divertir no dia de feriado, o tempo que quisesse nas férias. Era um bom estudante, tirava boas notas nas provas. Tudo tem seu tempo na vida, o menino vai aprender isso um dia.
Não mudava seu método de compreender a vida e como fazer para enfrentar o seu lado áspero. Sério e disposto no trabalho, acordava cedo, fazia a refeição matinal, saía rumo ao bairro da Conceição, que ficava no outro lado do rio. O pai estava construindo uma avenida de casinhas para alugar às gentes populares, de pouca renda. O filho levava o almoço para o pai na marmita. No local do trabalho, às vezes o pai fazia o papel de pedreiro, servente, carpinteiro, armador de ferragem para ser batida a laje. Era hábil e caprichoso nas tarefas que aprendia com facilidade. Tornou-se um exímio mestre de obra em pouco tempo.
Levava consigo para o trabalho diário sua maneira de ser regrada com preceito, simplicidade, paciência, concentração, objetividade e a fé ferrenha de que um dia seria um homem abastado. Tempos depois o filho viu que o pai estava formando um patrimônio razoável constituído de casas e prédios. Dera para emprestar dinheiro a juros altos, com isso seus rendimentos aumentavam e o patrimônio se expandia.
A mãe falou que a vida do pai sempre foi difícil desde o começo até se tornar um homem rico. Cedo suas mãos ficaram com calos, de tanto pegar no pesado. O pai chegara na pequena cidade quando o aglomerado de pessoas parecia ainda com uma vila. Veio só com a roupa do corpo, calçava uma sandália de couro grosso. Foi balconista em um armazém de portas largas na rua do comércio. Dormia embaixo do balcão. Lavava a sua roupa no rio quando entardecia, mas com o sol ainda quente no verão abafado. Ficava atrás das pedras vendo a roupa secar. Economizava o salário pequeno que ganhava no serviço de balconista. Com o dinheiro que ganhou comprou um quiosque de madeira. Vendia no quiosque cachaça, charuto, cigarro, caramelos e pastel. Vendeu o quiosque e comprou uma bodega onde vendia agora carne charqueada, farinha, feijão, arroz e milho. Tempo depois vendeu o quiosque e foi construir as primeiras casinhas populares. Daí em diante com aluguel das casas foi economizando e crescendo na vida.
Era rigoroso com o filho porque queria que ele estudasse com afinco para ser gente, não passar na vida as dificuldades que ele teve de enfrentar. O pai gostava de aquecer os pensamentos na espreguiçadeira quando o domingo amanhecia com o ar morno. Tinha o sestro de torcer os dedos quando as ideias que chegavam no íntimo falavam das benesses do dinheiro. Cada vez mais se convencia de que o homem nesta vida só valia alguma coisa, era respeitado pelos outros, quando tinha muito dinheiro.
Assim, quando estava recolhido aos pensamentos, que lhe afirmavam como era bom ser rico, certas frases, tiradas da vida diária, gostava de dizer para ele mesmo. Uma delas informava que quem disser que tem amigo tem de si pouca ciência, amigo só existe aquele, o da própria conveniência. Outra, que, no final, fazia com que mordesse o lábio inferior, surgia como um apelo dirigido a alguém que estava oculto, mas que somente ele via. “Dinheiro você diz que me quer bem, no meu bolso faz mais bem quando vem.”
Menino desobediente, atrevido, não ouviu os conselhos do pai, gastou a nota de dez cruzeiros com besteira no parque. O prêmio que tinha ganho por ter sido aprovado no exame de admissão foi jogado fora com as besteiras que achou de comprar para comer e para se divertir nos brinquedos do parque, que se instalara na semana para ganhar o dinheiro dos tolos.
Tudo que o pai aprendera foi na escola da vida. Já homem amadurecido, o filho soube o quanto ele estava certo quando dizia que o dinheiro era uma coisa difícil de conseguir, cedo se devia saber como gastá-lo.
‘Roubaram tudo o que já criei’
Graças à inteligência artificial, qualquer pessoa pode gerar um texto reproduzindo as características estilísticas e temáticas dos mais célebres autores brasileiros — dos clássicos Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade aos contemporâneos Carla Madeira, Itamar Vieira Junior ou Raphael Montes. Basta dar o comando a um modelo de linguagem avançada (como ChatGPT, Gemini, Copilot e Deepseek, por exemplo), para que a máquina crie, em poucos segundos, uma escrita mais ou menos parecida com a dos nomes citados acima.
Esse recurso, porém, só se tornou possível porque tais ferramentas foram treinadas com trechos de obras literárias coletadas da internet, entre outras fontes. Como esses textos foram usados sem qualquer consulta prévia ou compensação financeira, cresce entre escritores e editoras a percepção de que suas criações artísticas estão sendo exploradas de maneira indevida por empresas de tecnologia.
Nos Estados Unidos, a insatisfação se converteu em movimento político e judicial. Na semana passada, o autor best-seller David Baldacci prestou depoimento no Congresso americano durante uma audiência sobre direitos autorais e inteligência artificial. Ele relatou que viu seu próprio filho pedir ao ChatGPT para criar uma trama “no estilo de David Baldacci”.
“Foi como se tivessem encostado um caminhão na minha imaginação e roubado tudo o que eu já criei”, comparou Baldacci, que está entre os 17 escritores que processam a OpenAI e a Microsoft por uso indevido de suas obras. “Tudo em que trabalhei a vida toda agora pode estar em posse de outra pessoa que sequer conheço e pode ser usado para escrever os livros errados que são, na verdade, meus livros.”
A discussão tende a ganhar um caráter global, chegando inclusive ao Brasil. Para o romancista e jornalista Sérgio Rodrigues, autor do recém-lançado “Escrever é humano — Como dar vida à sua escrita em tempos de robôs”, um guia de escrita para humanos em tempos de domínio tecnológico, não há dúvida de que o uso não autorizado de textos por IA representa uma violação criativa.
— Para mim é roubo, ainda que possa ser difícil de enquadrar assim no ordenamento jurídico atual, uma vez que nossas leis de propriedade intelectual foram elaboradas num tempo em que esse tipo de ameaça não estava no horizonte — diz Sérgio Rodrigues.
Segundo ele, não se trata de ser “contra” a inteligência artificial, uma tecnologia que já não tem mais volta. O problema está na ausência de leis mais claras e adaptadas ao novo cenário:
— Se a espécie humana não fizer isso, será atropelada pelo maior trator de todos os tempos. Como já vem sendo, aliás, neste momento de faroeste desregulado que as big techs estão aproveitando ao máximo. A parte fraca na negociação somos nós, convém não esquecer.
Além de escritores, outros grupos da chamada indústria criativa já entraram na Justiça contra empresas de tecnologia por usarem seu trabalho sem permissão. Entre os profissionais que se manifestaram, estão músicos, fotógrafos, artistas visuais e jornalistas, entre outros.
Em abril deste ano, o debate esquentou após um movimento viral levar milhões de usuários do ChatGPT a transformarem imagens em reproduções feitas no traço dos desenhos animados do Studio Ghibli. Hayao Miyazaki, criador do Ghibli, não havia autorizado o uso de suas criações (o lendário artista japonês, por sinal, já manifestou mais de uma vez todo o seu desprezo pela inteligência artificial). Enquanto as redes sociais se enchiam de imagens imitando filmes como “Meu amigo Totoro”, críticos acusavam a OpenAI, criadora do ChatGPT, de se apropriar do trabalho alheio.
Como mostrou uma recente reportagem do Washington Post, as empresas de tecnologia têm levado a melhor nos processos judiciais até agora. Muitos casos terminam com autores se mostrando incapazes de mostrar que foram lesados, de acordo com os juízes. Por outro lado, processos judiciais revelaram que algumas empresas de IA coletaram os textos de autores baixando milhões de cópias digitais piratas de livros. Ou seja, sequer pagaram por exemplares.
— Por um lado, acho um pouco exagero dizer que usar um livro para treinar uma máquina junto com milhões de outros exemplos equivale a roubar o trabalho intelectual da pessoa — diz Vinicius Portella, autor do livro de ficção científica “O inconsciente corporativo e outros contos”, sobre uma rede neural capaz de reproduzir a escrita de Jorge Luis Borges. — É muito diferente de copiar uma melodia, uma trama etc. O mais grave pra mim são empresas que visam ao lucro se utilizarem de pirataria em massa para produzirem mais lucro para elas próprias.
O imbróglio é complexo e está longe de uma solução, afirmam especialistas em propriedade intelectual. Advogada especializada em Direito Autoral e Propriedade Intelectual, Liana Machado define a atual situação jurídica como um “jogo de empurra” de responsabilidade.
— É difícil categorizar o que as empresas de tecnologia fazem como “roubo” porque teria de envolver todo o tipo penal, incluindo obrigatoriamente a obtenção de lucros — diz ela. — No caso da literatura, por exemplo, as empresas dizem que apenas usam estes textos para treinar seus programas, não para editar livros.
As acusações de plágio também não tiveram sucesso nos tribunais. Após sua empresa vencer um processo contra escritores, a start up americana de inteligência artificial Anthropic (responsável pelo modelo de linguagem Claude) afirmou que os modelos da empresa não coletavam obras literárias para replicá-las, mas para “fazer uma curva radical e criar algo diferente”.
Mas, independentemente dos fins, uma empresa tem o direito de usar a obra de um autor sem sua autorização? É uma questão que dificilmente terá resposta sem uma nova legislação.
— Ainda estamos no meio do furacão, em busca de soluções — diz a advogada Deborah Sztajnberg, autora da primeira obra sobre Direito do Entretenimento no Brasil. — Se não encontrarmos uma forma de desenvolver esta nova tecnologia sem quebrar o sistema de propriedade intelectual, vamos entrar na barbárie.
Liana Machado aposta em um possível “pacto” em que artistas poderão determinar se seus escritos podem ou não ser coletados.
— É o que queremos, que o artista possa ter voz nessa coleta. A fundamentação é a proteção dos seus direitos autorais — diz ela. — Mas há muitos entraves. Por exemplo, se um autor deixou trechos de sua obra disponíveis gratuitamente (em sites, redes sociais, plataformas de leitura), isso dá direito às empresas de IA de “minerar” esses dados sem pedir permissão? Ao fim, o debate é sempre a difusão cultural para melhora social versus direito do autor.
Fundador do Espaço Tatuí, dedicado a publicações independentes em São Paulo, João Varella acredita que o meio digital “sagrou a falta de transparência” e que o mercado editorial brasileiro não está preocupado como deveria. Sua editora, a Lote 42, evita publicar versões digitais de seus livros, justamente para fugir da “mineração” das empresas de IA. Mas a editora também não ignora o mundo à sua volta, já que acaba de publicar “Computer love”, de Ian Uviedo, um livro físico escrito com uso explícito de IA.
— O Brasil, mais uma vez, está atrasado nessa área — lamenta o autor e editor. — A gente não consegue nem aprovar uma lei de proteção ao livro, que dirá assumir a vanguarda de um debate quente como esse da IA. Nos resta agora esperar as decisões de EUA e Europa, torcer para depois, com sorte, imitar.
Para Varella, os autores só estarão protegidos quando houver mais transparência das empresas de tecnologia.
— Os algoritmos devem ser explícitos, até para ajudar o usuário a entender o que está consumindo — diz ele. — Parte dessa volúpia das empresas de tecnologia em torno da IA se dá por ser uma terra de ninguém, chegam antes da legislação, do regramento. Exigir transparência para esse e qualquer outro novo desdobramento tecnológico vai nos fazer ter algum tipo de defesa.
Esse recurso, porém, só se tornou possível porque tais ferramentas foram treinadas com trechos de obras literárias coletadas da internet, entre outras fontes. Como esses textos foram usados sem qualquer consulta prévia ou compensação financeira, cresce entre escritores e editoras a percepção de que suas criações artísticas estão sendo exploradas de maneira indevida por empresas de tecnologia.
“Foi como se tivessem encostado um caminhão na minha imaginação e roubado tudo o que eu já criei”, comparou Baldacci, que está entre os 17 escritores que processam a OpenAI e a Microsoft por uso indevido de suas obras. “Tudo em que trabalhei a vida toda agora pode estar em posse de outra pessoa que sequer conheço e pode ser usado para escrever os livros errados que são, na verdade, meus livros.”
A discussão tende a ganhar um caráter global, chegando inclusive ao Brasil. Para o romancista e jornalista Sérgio Rodrigues, autor do recém-lançado “Escrever é humano — Como dar vida à sua escrita em tempos de robôs”, um guia de escrita para humanos em tempos de domínio tecnológico, não há dúvida de que o uso não autorizado de textos por IA representa uma violação criativa.
— Para mim é roubo, ainda que possa ser difícil de enquadrar assim no ordenamento jurídico atual, uma vez que nossas leis de propriedade intelectual foram elaboradas num tempo em que esse tipo de ameaça não estava no horizonte — diz Sérgio Rodrigues.
Segundo ele, não se trata de ser “contra” a inteligência artificial, uma tecnologia que já não tem mais volta. O problema está na ausência de leis mais claras e adaptadas ao novo cenário:
— Se a espécie humana não fizer isso, será atropelada pelo maior trator de todos os tempos. Como já vem sendo, aliás, neste momento de faroeste desregulado que as big techs estão aproveitando ao máximo. A parte fraca na negociação somos nós, convém não esquecer.
Além de escritores, outros grupos da chamada indústria criativa já entraram na Justiça contra empresas de tecnologia por usarem seu trabalho sem permissão. Entre os profissionais que se manifestaram, estão músicos, fotógrafos, artistas visuais e jornalistas, entre outros.
Em abril deste ano, o debate esquentou após um movimento viral levar milhões de usuários do ChatGPT a transformarem imagens em reproduções feitas no traço dos desenhos animados do Studio Ghibli. Hayao Miyazaki, criador do Ghibli, não havia autorizado o uso de suas criações (o lendário artista japonês, por sinal, já manifestou mais de uma vez todo o seu desprezo pela inteligência artificial). Enquanto as redes sociais se enchiam de imagens imitando filmes como “Meu amigo Totoro”, críticos acusavam a OpenAI, criadora do ChatGPT, de se apropriar do trabalho alheio.
Como mostrou uma recente reportagem do Washington Post, as empresas de tecnologia têm levado a melhor nos processos judiciais até agora. Muitos casos terminam com autores se mostrando incapazes de mostrar que foram lesados, de acordo com os juízes. Por outro lado, processos judiciais revelaram que algumas empresas de IA coletaram os textos de autores baixando milhões de cópias digitais piratas de livros. Ou seja, sequer pagaram por exemplares.
— Por um lado, acho um pouco exagero dizer que usar um livro para treinar uma máquina junto com milhões de outros exemplos equivale a roubar o trabalho intelectual da pessoa — diz Vinicius Portella, autor do livro de ficção científica “O inconsciente corporativo e outros contos”, sobre uma rede neural capaz de reproduzir a escrita de Jorge Luis Borges. — É muito diferente de copiar uma melodia, uma trama etc. O mais grave pra mim são empresas que visam ao lucro se utilizarem de pirataria em massa para produzirem mais lucro para elas próprias.
O imbróglio é complexo e está longe de uma solução, afirmam especialistas em propriedade intelectual. Advogada especializada em Direito Autoral e Propriedade Intelectual, Liana Machado define a atual situação jurídica como um “jogo de empurra” de responsabilidade.
— É difícil categorizar o que as empresas de tecnologia fazem como “roubo” porque teria de envolver todo o tipo penal, incluindo obrigatoriamente a obtenção de lucros — diz ela. — No caso da literatura, por exemplo, as empresas dizem que apenas usam estes textos para treinar seus programas, não para editar livros.
As acusações de plágio também não tiveram sucesso nos tribunais. Após sua empresa vencer um processo contra escritores, a start up americana de inteligência artificial Anthropic (responsável pelo modelo de linguagem Claude) afirmou que os modelos da empresa não coletavam obras literárias para replicá-las, mas para “fazer uma curva radical e criar algo diferente”.
Mas, independentemente dos fins, uma empresa tem o direito de usar a obra de um autor sem sua autorização? É uma questão que dificilmente terá resposta sem uma nova legislação.
— Ainda estamos no meio do furacão, em busca de soluções — diz a advogada Deborah Sztajnberg, autora da primeira obra sobre Direito do Entretenimento no Brasil. — Se não encontrarmos uma forma de desenvolver esta nova tecnologia sem quebrar o sistema de propriedade intelectual, vamos entrar na barbárie.
Liana Machado aposta em um possível “pacto” em que artistas poderão determinar se seus escritos podem ou não ser coletados.
— É o que queremos, que o artista possa ter voz nessa coleta. A fundamentação é a proteção dos seus direitos autorais — diz ela. — Mas há muitos entraves. Por exemplo, se um autor deixou trechos de sua obra disponíveis gratuitamente (em sites, redes sociais, plataformas de leitura), isso dá direito às empresas de IA de “minerar” esses dados sem pedir permissão? Ao fim, o debate é sempre a difusão cultural para melhora social versus direito do autor.
Fundador do Espaço Tatuí, dedicado a publicações independentes em São Paulo, João Varella acredita que o meio digital “sagrou a falta de transparência” e que o mercado editorial brasileiro não está preocupado como deveria. Sua editora, a Lote 42, evita publicar versões digitais de seus livros, justamente para fugir da “mineração” das empresas de IA. Mas a editora também não ignora o mundo à sua volta, já que acaba de publicar “Computer love”, de Ian Uviedo, um livro físico escrito com uso explícito de IA.
— O Brasil, mais uma vez, está atrasado nessa área — lamenta o autor e editor. — A gente não consegue nem aprovar uma lei de proteção ao livro, que dirá assumir a vanguarda de um debate quente como esse da IA. Nos resta agora esperar as decisões de EUA e Europa, torcer para depois, com sorte, imitar.
Para Varella, os autores só estarão protegidos quando houver mais transparência das empresas de tecnologia.
— Os algoritmos devem ser explícitos, até para ajudar o usuário a entender o que está consumindo — diz ele. — Parte dessa volúpia das empresas de tecnologia em torno da IA se dá por ser uma terra de ninguém, chegam antes da legislação, do regramento. Exigir transparência para esse e qualquer outro novo desdobramento tecnológico vai nos fazer ter algum tipo de defesa.
Oh as casas as casas as casas
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala para sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o seu mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
Ruy Belo, "Homem de Palavra[s]"
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala para sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o seu mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
Ruy Belo, "Homem de Palavra[s]"
Cavalos selvagens
O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e tom o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na quinta-feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças – todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na terça e, na quarta, macarronada, que a feijoada fica para sábado, comemoração prévia do futebol de domingo, vitória certa, ora sei!... As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquelas lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque taque-taque… Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável.
Às vezes, por motivos obscuros ou claros, uma rodinha da engrenagem salta fora e fica desvairada além do tempo, do espaço – onde? A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma condenação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem. “É um desajustado” – diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar esses parafusos docemente frouxos. Se o desajustado é um adolescente, mais fácil reconduzi-lo com a ajuda psicólogos, analistas, padres, orientadores, educadores – mas por que ele ainda não está nos eixos? Por que tem que haver certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo, mas neutralizá-lo, taque-taque taque-taque.
Pronto, passou a crise? Todos concordam, ele está ótimo ou quase. Mas às vezes o olhar tem aquela expressão que ninguém alcança e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que recusa o asfalto, o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir sem olhar para trás, desatino e alegria de um cavalo selvagem, os fogosos cavalos de crina e narinas frementes, escapando do laço do caçador. Na história de Arthur Miller, eram os pobres cavalos selvagens destinados a uma fábrica que os transformaria num precioso produto enlatado. O instinto, só o instinto os advertia das armadilhas nas madrugadas. E fugiam galopando por montes, rios, vales – até quando?
Inexperiência ou cansaço? Cavalos e homens acabam por voltar à engrenagem. Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade. De paixão. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso o apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE! Inútil. Ei-los de novo desembestados: “Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho”.
Lygia Fagundes Telles, "A disciplina do amor"
Às vezes, por motivos obscuros ou claros, uma rodinha da engrenagem salta fora e fica desvairada além do tempo, do espaço – onde? A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma condenação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem. “É um desajustado” – diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar esses parafusos docemente frouxos. Se o desajustado é um adolescente, mais fácil reconduzi-lo com a ajuda psicólogos, analistas, padres, orientadores, educadores – mas por que ele ainda não está nos eixos? Por que tem que haver certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo, mas neutralizá-lo, taque-taque taque-taque.
Pronto, passou a crise? Todos concordam, ele está ótimo ou quase. Mas às vezes o olhar tem aquela expressão que ninguém alcança e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que recusa o asfalto, o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir sem olhar para trás, desatino e alegria de um cavalo selvagem, os fogosos cavalos de crina e narinas frementes, escapando do laço do caçador. Na história de Arthur Miller, eram os pobres cavalos selvagens destinados a uma fábrica que os transformaria num precioso produto enlatado. O instinto, só o instinto os advertia das armadilhas nas madrugadas. E fugiam galopando por montes, rios, vales – até quando?
Inexperiência ou cansaço? Cavalos e homens acabam por voltar à engrenagem. Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade. De paixão. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso o apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE! Inútil. Ei-los de novo desembestados: “Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho”.
Lygia Fagundes Telles, "A disciplina do amor"
quinta-feira, julho 24
O primeiro dia
O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia. Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.
Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.
Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.
Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.
Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre oliving, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.
“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.
Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”
Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.
Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, unslegos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.
Miguel Sousa Tavares, “Não te deixarei morrer, David Crockett”
Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a primeira manhã da sua separação — o primeiro de quantos dias? — em que acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.
Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema liberdade — posso fumar à noite na cama.
Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem, ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: “Divorciado, 40 anos, bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar livre, terno e com sentido de humor”. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas delas! Sou um partidão — concluiu para o espelho.
Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é próprio de gente civilizada. Por alto, entre oliving, o hall, o escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas costumavam estar.
“Até agora vou-me aguentando”, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.
Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só, passou à fase seguinte do que chamara o “plano de sobrevivência”: desfolhar a agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer “programas de homens” ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de “anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora”. Quanto às mulheres que julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e onde ela poderia caber. “Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia. Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar”. Ele teria desligado quase em êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente abalado. “Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém, não é?”
Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que interessa se for um flop — achas que ias encontrar uma mulher super logo ao virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto, fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.
Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro carrinhos semi-partidos, unslegos e um quadro para fazer desenhos, com os respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia. Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão, entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.
Miguel Sousa Tavares, “Não te deixarei morrer, David Crockett”
Reflexão em tempo de guerra
E se o homem tivesse aprendido,
Ao longo dos anos que passaram,
Que todo o esforço dispendido,
Em guerras e lutas que massacraram
Os campos, populações e riquezas,
E, com tudo isso, nada ganharam,
A não ser fome, pestilência e pobreza,
As quais, por todo o lado, devastaram
Os ganhos que antes tinham valido
Uma vida de paz e bem murada
- não seria bom tê-lo aprendido?
Será que uma vida ordenada
E calma é difícil de haver?
Estará além do nosso poder?
Eugénio Lisboa, "Poemas em Tempo de Guerra"
Ao longo dos anos que passaram,
Que todo o esforço dispendido,
Em guerras e lutas que massacraram
Os campos, populações e riquezas,
E, com tudo isso, nada ganharam,
A não ser fome, pestilência e pobreza,
As quais, por todo o lado, devastaram
Os ganhos que antes tinham valido
Uma vida de paz e bem murada
- não seria bom tê-lo aprendido?
Será que uma vida ordenada
E calma é difícil de haver?
Estará além do nosso poder?
Eugénio Lisboa, "Poemas em Tempo de Guerra"
O gato preto
Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas consequências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e instruíram.
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo – e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse – detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos, muito gradativamente, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo apresso-me a confessá-lo , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso –, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável, um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso , encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros, os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia, e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.
– Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada –, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? – , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!
Edgar Allan Poe, "Histórias Extraordinárias"
No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror – mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum – uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.
Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.
Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.
Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.
Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.
Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão – dissipados já os vapores de minha orgia noturna, experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.
Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado _ um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.
Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de “fogo!”. As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.
Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito – entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras “estranho!”, “singular!”, bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.
Logo que vi tal aparição, pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa, o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.
Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.
Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme – tão grande quanto Pluto _ e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo – e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.
Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.
Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse – detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.
De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que – não sei como nem por quê – seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos, muito gradativamente, passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo apresso-me a confessá-lo , pelo pavor extremo que o animal me despertava. Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar – sim, mesmo nesta cela de criminoso –, quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível – que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer… E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!
Na verdade, naquele momento eu era um miserável, um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído… uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso , encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim pousado eternamente sobre o meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros, os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher – pobre dela! – não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.
Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.
Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.
Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.
Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita. E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: “Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão”.
O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite _ e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.
Transcorreram o segundo e o terceiro dia, e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.
– Senhores – disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada –, é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída… (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes – os senhores já se vão? – , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.
Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.
Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!
Edgar Allan Poe, "Histórias Extraordinárias"
As cores
Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. Esboçou um sorriso… Sabia estar só na casa que conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados horizontes.
Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social?
Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco? Raramente se enganava agora. Já sabia… Nas pessoas, sabia… Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes — e aquilo a perturbava — encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa.
Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à ideia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que ficava à direita e onde se afundava feliz, para ouvir novelas? Que seria a cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam? E que seria ver?
Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve clAmour, que executava ao piano, e em muita coisa mais…
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada…
Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor… Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para todos os familiares era como se a visse também. — Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz…
Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
— Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que não fora nada.
E quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
— Maria Alice é modesta, odeia exibições…
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente… Mas como a remordia a admiração piedosa dos amigos… As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de alguns:
— Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim…
Nunca Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do abajur.
— Eu sei… eu já sei…
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém— chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem via, para quem via. E nesses termos lhes falava também.
O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava.
Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes, O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor. — Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice…
Maria Alice dava.
— Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava. Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bemaventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro, material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à ideia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul. Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade.
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado… De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara, horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca! Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores…
Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor — passos e vozes — encheu a casa.
— Tudo azul? — perguntou Ana Beatriz, entrando na sala. — Tudo azul — respondeu Maria Alice.
Orígenes Lessa, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”
Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social?
Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? É branco? Raramente se enganava agora. Já sabia… Nas pessoas, sabia… Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes — e aquilo a perturbava — encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa.
Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à ideia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que ficava à direita e onde se afundava feliz, para ouvir novelas? Que seria a cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam? E que seria ver?
Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve clAmour, que executava ao piano, e em muita coisa mais…
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada…
Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor… Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para todos os familiares era como se a visse também. — Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz…
Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
— Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que não fora nada.
E quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
— Maria Alice é modesta, odeia exibições…
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente… Mas como a remordia a admiração piedosa dos amigos… As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de alguns:
— Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim…
Nunca Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do abajur.
— Eu sei… eu já sei…
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém— chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento. Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem via, para quem via. E nesses termos lhes falava também.
O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava.
Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes, O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor. — Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice…
Maria Alice dava.
— Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava. Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma ideias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bemaventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro, material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à ideia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul. Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade.
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado… De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara, horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca! Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores…
Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza. O rumor — passos e vozes — encheu a casa.
— Tudo azul? — perguntou Ana Beatriz, entrando na sala. — Tudo azul — respondeu Maria Alice.
Orígenes Lessa, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”
quarta-feira, julho 23
Despedida
Meu pai leva-me à porta do famoso noturno para a cidade grande:
-- Cuide-se, meu filho. É um mundo selvagem.
Esse verbo clamante no teu ouvido. Por delicadeza, perdi a minha voz. Ó profetas ó sermões!
-- Longe da família, será você contra todos.
Homem não se beija nem abraça, nos apertamos duramente as mãos. Me instalo a uma das janelas, com a vidraça descida. Mais que me esforce, impossível erguê-la. Já não podemos falar. Esse pai dos pais ali na plataforma, mudo e solene. O trem não parte. Fumaça da estação? De repente ei-lo de olhos marejados.
E, sem querer, também eu comovido. Diante de mim o feroz tirano da família? Ditador da verdade, dono da palavra final? Primeira vez, em tantos anos, vejo um senhor muito antigo. Pobre velhinho solitário. o trem não parte. Meu pai saca o relógio do colete, dois giros na corda. Pressuroso, digo que se vá. Doente, não apanhe friagem. E ele sem escutar.
Olha de novo o relógio. Aceno que pode ir, não espere a partida. Quer ver a hora? Exibe o patacão na ponta da corrente dourada. Nosso último encontro, sei lá. E, ainda na despedida, o eterno equívoco entre nós. Maldita vidraça de silêncio a nos separar. Desta vez para sempre.
Dalton Trevisan, "Quem tem medo de vampiro?"
-- Cuide-se, meu filho. É um mundo selvagem.
Esse verbo clamante no teu ouvido. Por delicadeza, perdi a minha voz. Ó profetas ó sermões!
-- Longe da família, será você contra todos.
Homem não se beija nem abraça, nos apertamos duramente as mãos. Me instalo a uma das janelas, com a vidraça descida. Mais que me esforce, impossível erguê-la. Já não podemos falar. Esse pai dos pais ali na plataforma, mudo e solene. O trem não parte. Fumaça da estação? De repente ei-lo de olhos marejados.
E, sem querer, também eu comovido. Diante de mim o feroz tirano da família? Ditador da verdade, dono da palavra final? Primeira vez, em tantos anos, vejo um senhor muito antigo. Pobre velhinho solitário. o trem não parte. Meu pai saca o relógio do colete, dois giros na corda. Pressuroso, digo que se vá. Doente, não apanhe friagem. E ele sem escutar.
Olha de novo o relógio. Aceno que pode ir, não espere a partida. Quer ver a hora? Exibe o patacão na ponta da corrente dourada. Nosso último encontro, sei lá. E, ainda na despedida, o eterno equívoco entre nós. Maldita vidraça de silêncio a nos separar. Desta vez para sempre.
Dalton Trevisan, "Quem tem medo de vampiro?"
Poema das coisas belas
As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivos serão belas?
E belas, para quê?
Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos veem.
Mas por que será belo o pôr do sol?
E belo, para quê?
Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?
Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivos serão belas?
E belas, para quê?
Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos veem.
Mas por que será belo o pôr do sol?
E belo, para quê?
Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?
Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?
António Gedeão
Sereno mundo azul
Lento ou apenas preguiçoso, um rio de poucas águas escorre no leito, reverenciado pela copa de um chorão. E debaixo da ponte em arco, que um monge atravessa protegido por um guarda-chuva de papel, uma carpa dorme embalada pela sombra, sem perceber a ameaça da garça que aflora entre juncos e que talvez tenha fome. Ao longe, duas velhas que a distância faz parecer pequenas caminham em direção a um pagode de muitos telhados.
Tudo é sereno nesse mundo azul onde, junto ao chorão, uma dama de quimono lê o poema que o amado lhe enviou atado com uma fita e uma flor de glicínia. Tudo parece inalterável.
Mas, como o rio, o tempo também escorre, trazendo o inesperado. E eis que, de repente, a serenidade que parecia tão segura estremece por inteiro. Um som, uma pancada, e ponte, monge, carpa, chorão, garça, velhas, pagode, dama, são abalados, capotam, e giram, giram despencando em abismo, até se despedaçarem sobre o mármore.
O prato de porcelana caiu. Teria esvoejado o poema, se apenas estivesse escrito em papel. Agora, cacos jazem espalhados pelo chão. Em um deles, mínima mancha, a flor de glicínia.
Mas outros olhos além dos nossos viram a tragédia acontecer. Uma exclamação — ou fundo suspiro — acompanhou a queda. E logo, alguém se abaixa, duas mãos finas se estendem para recolher e reconhecer os cacos.
Um a um, são postos sobre uma superfície lisa, talvez tampo de mesa. Não são tantos quanto a altura da queda faria supor. É fácil reconhecer o espaço a que pertencem. E aos poucos, as mãos delicadas — certamente as mesmas que, num descuido, deixaram o prato cair — encostam um a um os fragmentos, recompondo o antigo desenho. O rio volta a deslizar. A garça perdeu a fome mas mantém a cabeça erguida — juncos ocultam a pata machucada. O monge foi protegido pelo guarda-chuva. As duas velhas continuam andando no antigo rumo, embora separadas do pavilhão pela queda. E a dama está inteira, o quimono composto, o penteado impecável, o poema ainda adoçando-lhe o olhar.
Um pouco de cola é passada nas beiras com um pincel, só o quanto baste para unir sem escorrer. Com precisão, os dedos aproximam os cacos respeitando a inclinação da louça, cuidando de casar linha com linha, azul com azul, para que não se note o desastre. E ali os mantêm, firmes, até que a emenda esteja consolidada.
Devagar como uma imagem que recua, o prato readquire sua antiga beleza. A vida que nele se vivia embora parada, recomeça. As personagens retomam suas antigas tarefas.
Mas a serenidade já não parece inalterável. Entre azul e azul, um risco mais fino que um fio de cabelo trai a presença da fenda. E através de uma fenda qualquer perigo pode se infiltrar.
Como uma personagem invisível, a vigilância habita agora o prato de louça. O futuro entrou em risco. As velhas temem jamais alcançar aquele mesmo pagode que antes parecia meta tão segura. O rio escorre ainda mais lento para não abandonar a ponte, em cuja sombra a carpa acordada está consciente da presença da garça. A dama continua lendo o poema, que a nova possibilidade de ser em algum momento esquecida pelo amado torna ainda mais tocante ao seu coração. Só a flor de glicínia, que sempre soube estar destinada a vida breve, emana, como antes, o seu perfume.
Tudo é sereno nesse mundo azul onde, junto ao chorão, uma dama de quimono lê o poema que o amado lhe enviou atado com uma fita e uma flor de glicínia. Tudo parece inalterável.
Mas, como o rio, o tempo também escorre, trazendo o inesperado. E eis que, de repente, a serenidade que parecia tão segura estremece por inteiro. Um som, uma pancada, e ponte, monge, carpa, chorão, garça, velhas, pagode, dama, são abalados, capotam, e giram, giram despencando em abismo, até se despedaçarem sobre o mármore.
O prato de porcelana caiu. Teria esvoejado o poema, se apenas estivesse escrito em papel. Agora, cacos jazem espalhados pelo chão. Em um deles, mínima mancha, a flor de glicínia.
Mas outros olhos além dos nossos viram a tragédia acontecer. Uma exclamação — ou fundo suspiro — acompanhou a queda. E logo, alguém se abaixa, duas mãos finas se estendem para recolher e reconhecer os cacos.
Um a um, são postos sobre uma superfície lisa, talvez tampo de mesa. Não são tantos quanto a altura da queda faria supor. É fácil reconhecer o espaço a que pertencem. E aos poucos, as mãos delicadas — certamente as mesmas que, num descuido, deixaram o prato cair — encostam um a um os fragmentos, recompondo o antigo desenho. O rio volta a deslizar. A garça perdeu a fome mas mantém a cabeça erguida — juncos ocultam a pata machucada. O monge foi protegido pelo guarda-chuva. As duas velhas continuam andando no antigo rumo, embora separadas do pavilhão pela queda. E a dama está inteira, o quimono composto, o penteado impecável, o poema ainda adoçando-lhe o olhar.
Um pouco de cola é passada nas beiras com um pincel, só o quanto baste para unir sem escorrer. Com precisão, os dedos aproximam os cacos respeitando a inclinação da louça, cuidando de casar linha com linha, azul com azul, para que não se note o desastre. E ali os mantêm, firmes, até que a emenda esteja consolidada.
Devagar como uma imagem que recua, o prato readquire sua antiga beleza. A vida que nele se vivia embora parada, recomeça. As personagens retomam suas antigas tarefas.
Mas a serenidade já não parece inalterável. Entre azul e azul, um risco mais fino que um fio de cabelo trai a presença da fenda. E através de uma fenda qualquer perigo pode se infiltrar.
Como uma personagem invisível, a vigilância habita agora o prato de louça. O futuro entrou em risco. As velhas temem jamais alcançar aquele mesmo pagode que antes parecia meta tão segura. O rio escorre ainda mais lento para não abandonar a ponte, em cuja sombra a carpa acordada está consciente da presença da garça. A dama continua lendo o poema, que a nova possibilidade de ser em algum momento esquecida pelo amado torna ainda mais tocante ao seu coração. Só a flor de glicínia, que sempre soube estar destinada a vida breve, emana, como antes, o seu perfume.
O lenço
Porque acabou a arte de contar histórias? Eis uma pergunta que muitas vezes faço a mim próprio quando me deixo ficar à mesa com os outros convivas, a passar o serão, depois de termos comido. Creio, porém, ter encontrado a resposta certa tarde em que fiquei de pé na coberta do "Bellver" junto à casa do leme, percorrendo com o binóculo o quadro incomparável que Barcelona oferecia, vista de cima do navio.
O Sol, pondo-se atrás da cidade, parecia derretê-la. A vida parecia ter abandonado os intervalos verde-claros entre as árvores, o cimento dos edifícios, os penhascos dos montes ao longe. O "Bellver" é um bonito e espaçoso barco a motor, que merecia melhor destino do que o de servir o pequeno tráfico insular das Baleares. E a sua imagem surgiu- me realmente embelezada quando, no dia seguinte, o vi atracado ao molhe de Ibiza para a viagem de regresso, pois tinha imaginado que dali continuaria para as Ilhas Canárias. Fiquei outra vez pensando no capitão O..., de quem me despedira algumas horas antes, o primeiro e talvez o último contador de histórias que se deparou na minha vida, pois, como não me canso de repetir, é arte que está em extinção. E ao recordar as muitas horas que o capitão O... gastava passeando na ponte para um lado e para o outro, lançando ao longe um olhar distraído, descobri: quem não se aborrece, não sabe contar. Ora, o aborrecimento já não tem lugar na nossa vida. Morreram aquelas atividades que lhe andam discreta e intimamente ligadas. E assim desapareceu também o dom de contar histórias: já não se tece nem se fia, não se desbasta nem se martela ao som das histórias. Em resumo: para que nasçam histórias tem que haver ordem, disciplina e trabalho.
Contar histórias é não apenas uma arte como também uma qualidade. No Oriente, é mesmo um ofício. Conduz à sabedoria, tal como a sabedoria muitas vezes nos chega sob a forma de conto. O narrador é portanto alguém que sabe aconselhar. Para dar conselhos, é preciso saber dizê-los. Sabemos lamentar-nos, queixar-nos dos nossos problemas, mas não contá-los. E pensei então numa terceira coisa: o cachimbo do capitão, o cachimbo que ele esvaziava batendo com ele ao começar uma história e voltava a bater quando terminava, mas que entretanto deixava consumir-se tranqüilamente. Tinha embocadura de âmbar, mas o fornilho era de chifre encastoado em prata. Recebera-o do avô e, para mim, era o talismã do contador de histórias. Hoje em dia já não há nada que valha a pena ouvir, pois as coisas já não têm uma duração adequada. Quem usar um cinto de couro até este cair aos pedaços, descobrirá muitas vezes que, com o andar do tempo, alguma história lhe ficou ligada. O cachimbo do capitão devia saber muitas.
Assim ia divagando quando, no cais, surgiu um homem baixo, com o rosto mais grosseiro que alguma vez se viu debaixo de um boné de oficial: o capitão O..., em cujo barco eu tinha chegado nessa manhã. Quem está habituado a sair sozinho em cidades estrangeiras sabe dar valor ao que é encontrar uma cara conhecida, mesmo que não seja das mais familiares, quando a partida iminente afasta os inconvenientes de uma conversa prolongada, mas ao mesmo tempo nos proporciona um chapéu, uma mão, um lenço em que se possa deter um olhar vago antes de o fixar na superfície do mar.
Lá estava o capitão, como se eu, com os meus pensamentos, o tivesse chamado. Tinha saído de casa com quinze anos, passara três num navio-escola, cruzando o Pacífico e o Atlântico, para mais tarde ingressar num vapor da Lloyd que fazia a rota da América que ele, no entanto, e por razões desconhecidas, não tardou a abandonar. Mais eu não tinha conseguido tirar a limpo. Uma sombra parecia pairar sobre a sua vida, mas nunca falava disso. Parecia faltar-lhe o que de mais maravilhoso tem um contador de histórias: poder contar a sua vida, deixar-se lentamente consumir nas suaves chamas do conto. Podia até ser que a sua existência parecesse pobre se comparada com a do navio, que ele sabia encher de vida em cada tábua do seu cavername.
Assim eu via as coisas naquela manhã, ao desembarcar. Ano de construção e custo, calado e tonelagem, tudo eu conhecia com pormenor, até o pré dos grumetes e as preocupações dos oficiais. Sim, como o transporte de mercadorias era feito por veleiros, eram os próprios capitães quem, nos portos, combinava os fretes. Era costume, na época, dizer-se com escárnio: "Fora de navegação, destinado a vapor".., e seguiam-se geralmente algumas frases das quais se podia concluir até que ponto as necessidades econômicas, também ali, tinham mudado tudo.
Quando se tocava neste assunto, o capitão O... deixava às vezes cair uma palavra sobre política, embora nunca o tenha visto ler um jornal. Nunca esquecerei a resposta que me deu um dia, quando mencionei o fato:
- Nos jornais - disse ele - nada se aprende. As pessoas querem que lhes expliquem tudo.
Com efeito, metade da arte jornalística não é dar explicações? E não foram os antigos exemplares nesta matéria por drenarem, por assim dizer, os acontecimentos no sentido em que os despojavam de fundamentos psicológicos, de qualquer opinião que pudessem suscitar? Há que reconhecer que as suas histórias, pelo menos, eram sempre isentas de explicações sem que por isso, a meu ver, se tornassem frouxas. Houve as notáveis, mas nenhuma que revelasse tanta originalidade como esta que, nessa mesma tarde, havia de projetar sobre o molhe de Barcelona o mais surpreendente reflexo.
- Passou-se há muitos anos, durante uma das minhas primeiras viagens à América, quando ainda viajava como cadete - contara-me o capitão por altura de Cadiz. - Íamos no sétimo dia de viagem e devíamos aportar a Bremen na quarta-feira seguinte. Quando chegou a minha vez de fazer a ronda da coberta, fui trocando algumas palavras com os passageiros. A certa altura, estaquei: a sexta cadeira de repouso estava vazia. Invadiu-me uma sensação de angústia, muito mais aguda, creio, do que nos dias anteriores, sempre que saudava com um mudo cumprimento a jovem senhora que ali costumava sentar-se, mãos entrelaçadas na nuca, olhar perdido. Era muito bela e, tanto quanto a sua beleza, destacava-se o seu recato. Era tão reservada que nunca se ouvia a sua voz - a mais fascinante voz de que me lembro -requebrada e volátil, grave e metálica.
- Certa vez, ao apanhar o seu lenço (ainda hoje recordo como me impressionou o seu sinete, um escudo com três estrelas em cada campo), ouvi-lhe um "obrigada" pronunciado como se houvesse acabado de lhe salvar a vida. Terminei a minha ronda e dirigia-me ao médico de bordo, para indagar se a dama afinal estava doente, quando de repente roçou por mim um torvelinho de roupas brancas. Ergui os olhos e vi aquela cuja falta notara debruçada na amurada da popa seguindo com a vista um enxame de cartões e papelinhos com que brincavam o vento e as ondas. No dia seguinte, estava eu na coberta de serviço a vigiar as manobras de atracação quando se me pousaram de novo os olhos na desconhecida que passava ao longe. O barco ia acostar e aproximava lentamente a quilha do cais mais próximo a que tínhamos arrumado de popa. Distinguiam-se claramente os contornos das pessoas que esperavam no cais. A desconhecida parecia sufocada. Eu tinha a atenção pregada no desenrolar da corrente da âncora quando subitamente se ergueu um clamo. Voltei-me, e vi logo que a desconhecida tinha desaparecido. Os gestos dos presentes davam a entender que se tinha jogado ao mar. Qualquer tentativa para salvá-la seria inútil. As máquinas tinham parado imediatamente; o casco do navio estava a uns três metros do cais e a inércia empurrava-o. Quem caísse ali, estava perdido. Sucedeu então o incrível: havia alguém disposto a tentar o portentoso salvamento. Víamos os seus músculos retesados, os olhos estreitados, com todo o ar de querer saltar borda fora, e então, enquanto o barco deslizava a todo o comprimento do costado de estibordo, apareceu pelo lado de bombordo, onde não havia ninguém e para onde ninguém olhava, o salvador erguendo a rapariga nos braços. O seu feito, na realidade, consistira em cair sobre a rapariga com todo o seu peso, arrastando-a por baixo da quilha do barco até ao lado oposto.
- Quando a transportava nos meus braços - contou-me ele mais tarde - balbuciou um "obrigada" como se eu tivesse acabado de apanhar-lhe o lenço.
Tinha ainda nos ouvidos a voz com que o narrador pronunciara estas últimas palavras. Quis apertar-lhe a mão uma vez mais, pois não havia tempo a perder. Dispunha-me a descer a escadaria quando reparei que os depósitos, armazéns e guindastes do porto estavam ficando para trás. Tínhamos partido. De binóculos assestados, deixei passar Barcelona na minha frente pela última vez. Depois, baixei-os lentamente, até focar o cais. Lá estava o capitão, no meio das pessoas. Deve ter-me visto também. Levantou a mão numa saudação, à qual correspondi agitando a minha. Quando foquei melhor os binóculos vi que tinha na mão um lenço, que agitava. Consegui distinguir claramente o desenho que havia numa das pontas: um escudo com três estrelas em cada campo.
O Sol, pondo-se atrás da cidade, parecia derretê-la. A vida parecia ter abandonado os intervalos verde-claros entre as árvores, o cimento dos edifícios, os penhascos dos montes ao longe. O "Bellver" é um bonito e espaçoso barco a motor, que merecia melhor destino do que o de servir o pequeno tráfico insular das Baleares. E a sua imagem surgiu- me realmente embelezada quando, no dia seguinte, o vi atracado ao molhe de Ibiza para a viagem de regresso, pois tinha imaginado que dali continuaria para as Ilhas Canárias. Fiquei outra vez pensando no capitão O..., de quem me despedira algumas horas antes, o primeiro e talvez o último contador de histórias que se deparou na minha vida, pois, como não me canso de repetir, é arte que está em extinção. E ao recordar as muitas horas que o capitão O... gastava passeando na ponte para um lado e para o outro, lançando ao longe um olhar distraído, descobri: quem não se aborrece, não sabe contar. Ora, o aborrecimento já não tem lugar na nossa vida. Morreram aquelas atividades que lhe andam discreta e intimamente ligadas. E assim desapareceu também o dom de contar histórias: já não se tece nem se fia, não se desbasta nem se martela ao som das histórias. Em resumo: para que nasçam histórias tem que haver ordem, disciplina e trabalho.
Contar histórias é não apenas uma arte como também uma qualidade. No Oriente, é mesmo um ofício. Conduz à sabedoria, tal como a sabedoria muitas vezes nos chega sob a forma de conto. O narrador é portanto alguém que sabe aconselhar. Para dar conselhos, é preciso saber dizê-los. Sabemos lamentar-nos, queixar-nos dos nossos problemas, mas não contá-los. E pensei então numa terceira coisa: o cachimbo do capitão, o cachimbo que ele esvaziava batendo com ele ao começar uma história e voltava a bater quando terminava, mas que entretanto deixava consumir-se tranqüilamente. Tinha embocadura de âmbar, mas o fornilho era de chifre encastoado em prata. Recebera-o do avô e, para mim, era o talismã do contador de histórias. Hoje em dia já não há nada que valha a pena ouvir, pois as coisas já não têm uma duração adequada. Quem usar um cinto de couro até este cair aos pedaços, descobrirá muitas vezes que, com o andar do tempo, alguma história lhe ficou ligada. O cachimbo do capitão devia saber muitas.
Assim ia divagando quando, no cais, surgiu um homem baixo, com o rosto mais grosseiro que alguma vez se viu debaixo de um boné de oficial: o capitão O..., em cujo barco eu tinha chegado nessa manhã. Quem está habituado a sair sozinho em cidades estrangeiras sabe dar valor ao que é encontrar uma cara conhecida, mesmo que não seja das mais familiares, quando a partida iminente afasta os inconvenientes de uma conversa prolongada, mas ao mesmo tempo nos proporciona um chapéu, uma mão, um lenço em que se possa deter um olhar vago antes de o fixar na superfície do mar.
Lá estava o capitão, como se eu, com os meus pensamentos, o tivesse chamado. Tinha saído de casa com quinze anos, passara três num navio-escola, cruzando o Pacífico e o Atlântico, para mais tarde ingressar num vapor da Lloyd que fazia a rota da América que ele, no entanto, e por razões desconhecidas, não tardou a abandonar. Mais eu não tinha conseguido tirar a limpo. Uma sombra parecia pairar sobre a sua vida, mas nunca falava disso. Parecia faltar-lhe o que de mais maravilhoso tem um contador de histórias: poder contar a sua vida, deixar-se lentamente consumir nas suaves chamas do conto. Podia até ser que a sua existência parecesse pobre se comparada com a do navio, que ele sabia encher de vida em cada tábua do seu cavername.
Assim eu via as coisas naquela manhã, ao desembarcar. Ano de construção e custo, calado e tonelagem, tudo eu conhecia com pormenor, até o pré dos grumetes e as preocupações dos oficiais. Sim, como o transporte de mercadorias era feito por veleiros, eram os próprios capitães quem, nos portos, combinava os fretes. Era costume, na época, dizer-se com escárnio: "Fora de navegação, destinado a vapor".., e seguiam-se geralmente algumas frases das quais se podia concluir até que ponto as necessidades econômicas, também ali, tinham mudado tudo.
Quando se tocava neste assunto, o capitão O... deixava às vezes cair uma palavra sobre política, embora nunca o tenha visto ler um jornal. Nunca esquecerei a resposta que me deu um dia, quando mencionei o fato:
- Nos jornais - disse ele - nada se aprende. As pessoas querem que lhes expliquem tudo.
Com efeito, metade da arte jornalística não é dar explicações? E não foram os antigos exemplares nesta matéria por drenarem, por assim dizer, os acontecimentos no sentido em que os despojavam de fundamentos psicológicos, de qualquer opinião que pudessem suscitar? Há que reconhecer que as suas histórias, pelo menos, eram sempre isentas de explicações sem que por isso, a meu ver, se tornassem frouxas. Houve as notáveis, mas nenhuma que revelasse tanta originalidade como esta que, nessa mesma tarde, havia de projetar sobre o molhe de Barcelona o mais surpreendente reflexo.
- Passou-se há muitos anos, durante uma das minhas primeiras viagens à América, quando ainda viajava como cadete - contara-me o capitão por altura de Cadiz. - Íamos no sétimo dia de viagem e devíamos aportar a Bremen na quarta-feira seguinte. Quando chegou a minha vez de fazer a ronda da coberta, fui trocando algumas palavras com os passageiros. A certa altura, estaquei: a sexta cadeira de repouso estava vazia. Invadiu-me uma sensação de angústia, muito mais aguda, creio, do que nos dias anteriores, sempre que saudava com um mudo cumprimento a jovem senhora que ali costumava sentar-se, mãos entrelaçadas na nuca, olhar perdido. Era muito bela e, tanto quanto a sua beleza, destacava-se o seu recato. Era tão reservada que nunca se ouvia a sua voz - a mais fascinante voz de que me lembro -requebrada e volátil, grave e metálica.
- Certa vez, ao apanhar o seu lenço (ainda hoje recordo como me impressionou o seu sinete, um escudo com três estrelas em cada campo), ouvi-lhe um "obrigada" pronunciado como se houvesse acabado de lhe salvar a vida. Terminei a minha ronda e dirigia-me ao médico de bordo, para indagar se a dama afinal estava doente, quando de repente roçou por mim um torvelinho de roupas brancas. Ergui os olhos e vi aquela cuja falta notara debruçada na amurada da popa seguindo com a vista um enxame de cartões e papelinhos com que brincavam o vento e as ondas. No dia seguinte, estava eu na coberta de serviço a vigiar as manobras de atracação quando se me pousaram de novo os olhos na desconhecida que passava ao longe. O barco ia acostar e aproximava lentamente a quilha do cais mais próximo a que tínhamos arrumado de popa. Distinguiam-se claramente os contornos das pessoas que esperavam no cais. A desconhecida parecia sufocada. Eu tinha a atenção pregada no desenrolar da corrente da âncora quando subitamente se ergueu um clamo. Voltei-me, e vi logo que a desconhecida tinha desaparecido. Os gestos dos presentes davam a entender que se tinha jogado ao mar. Qualquer tentativa para salvá-la seria inútil. As máquinas tinham parado imediatamente; o casco do navio estava a uns três metros do cais e a inércia empurrava-o. Quem caísse ali, estava perdido. Sucedeu então o incrível: havia alguém disposto a tentar o portentoso salvamento. Víamos os seus músculos retesados, os olhos estreitados, com todo o ar de querer saltar borda fora, e então, enquanto o barco deslizava a todo o comprimento do costado de estibordo, apareceu pelo lado de bombordo, onde não havia ninguém e para onde ninguém olhava, o salvador erguendo a rapariga nos braços. O seu feito, na realidade, consistira em cair sobre a rapariga com todo o seu peso, arrastando-a por baixo da quilha do barco até ao lado oposto.
- Quando a transportava nos meus braços - contou-me ele mais tarde - balbuciou um "obrigada" como se eu tivesse acabado de apanhar-lhe o lenço.
Tinha ainda nos ouvidos a voz com que o narrador pronunciara estas últimas palavras. Quis apertar-lhe a mão uma vez mais, pois não havia tempo a perder. Dispunha-me a descer a escadaria quando reparei que os depósitos, armazéns e guindastes do porto estavam ficando para trás. Tínhamos partido. De binóculos assestados, deixei passar Barcelona na minha frente pela última vez. Depois, baixei-os lentamente, até focar o cais. Lá estava o capitão, no meio das pessoas. Deve ter-me visto também. Levantou a mão numa saudação, à qual correspondi agitando a minha. Quando foquei melhor os binóculos vi que tinha na mão um lenço, que agitava. Consegui distinguir claramente o desenho que havia numa das pontas: um escudo com três estrelas em cada campo.
Walter Benjamin
terça-feira, julho 22
Despedida
Meu pai leva-me à porta do famoso noturno para a cidade grande:
- Cuide-se, meu filho. É um mundo selvagem.
Esse verbo clamante no teu ouvido. Por delicadeza, perdi a minha voz. Ó profetas ó sermões!
- Longe da família, será você contra todos.
Homem não se beija nem abraça, nos apertamos duramente as mãos. Me instalo a uma das janelas, com a vidraça descida. Mais que me esforce, impossível erguê-la. Já não podemos falar. Esse pai dos pais ali na plataforma, mudo e solene. O trem não parte. Fumaça da estação? De repente ei-lo de olhos marejados.
E, sem querer, também eu comovido. Diante de mim o feroz tirano da família? Ditador da verdade, dono da palavra final? Primeira vez, em tantos anos, vejo um senhor muito antigo. Pobre velhinho solitário. o trem não parte. Meu pai saca o relógio do colete, dois giros na corda. Pressuroso, digo que se vá. Doente, não apanhe friagem. E ele sem escutar.
Olha de novo o relógio. Aceno que pode ir, não espere a partida. Quer ver a hora? Exibe o patacão na ponta da corrente dourada. Nosso último encontro, sei lá. E, ainda na despedida, o eterno equívoco entre nós. Maldita vidraça de silêncio a nos separar. Desta vez para sempre.
Dalton Trevisan, "Quem tem medo de vampiro?"
- Cuide-se, meu filho. É um mundo selvagem.
Esse verbo clamante no teu ouvido. Por delicadeza, perdi a minha voz. Ó profetas ó sermões!
- Longe da família, será você contra todos.
Homem não se beija nem abraça, nos apertamos duramente as mãos. Me instalo a uma das janelas, com a vidraça descida. Mais que me esforce, impossível erguê-la. Já não podemos falar. Esse pai dos pais ali na plataforma, mudo e solene. O trem não parte. Fumaça da estação? De repente ei-lo de olhos marejados.
E, sem querer, também eu comovido. Diante de mim o feroz tirano da família? Ditador da verdade, dono da palavra final? Primeira vez, em tantos anos, vejo um senhor muito antigo. Pobre velhinho solitário. o trem não parte. Meu pai saca o relógio do colete, dois giros na corda. Pressuroso, digo que se vá. Doente, não apanhe friagem. E ele sem escutar.
Olha de novo o relógio. Aceno que pode ir, não espere a partida. Quer ver a hora? Exibe o patacão na ponta da corrente dourada. Nosso último encontro, sei lá. E, ainda na despedida, o eterno equívoco entre nós. Maldita vidraça de silêncio a nos separar. Desta vez para sempre.
Dalton Trevisan, "Quem tem medo de vampiro?"
Hoje de madrugada
O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
Raduan Nassar, Cadernos de Literatura Brasileira
Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.
Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.
Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.
Raduan Nassar, Cadernos de Literatura Brasileira
Infância
Sonhos
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
enormes como cedros
que é preciso
trazer de longe
aos ombros
para achar
no inverno da memória
este rumor
de lume:
o teu perfume,
lenha
da melancolia.
Carlos de Oliveira
Colheita
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.
A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.
Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?
Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-la ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.
A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.
Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?
Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais...
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-la ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.
Nélida Piñon
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