segunda-feira, abril 7

Conselho

 


Um senhor muito velho com umas asas muito grandes

No terceiro dia de chuva tinham matado tantos caranguejos dentro de casa que Pelayo teve de atravessar o seu pátio inundado para atirá‑los ao mar, pois o bebé recém‑nascido tinha passado a noite com febre e pensava‑se que era por causa da pestilência. O mundo estava triste desde terça‑feira. O céu e o mar eram uma única e mesma coisa de cinza e as areias da praia, que em Março resplandeciam como poeira de luz, tinham‑se transformado numa papa de lodo e mariscos podres. A luz era tão fraca ao meio‑dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se, porque lho impediam as suas enormes asas.

Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou‑a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha‑o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda muito rapidamente se recompuseram do assombro e acabaram por achá‑lo familiar. Então atreveram‑se a falar‑lhe, e ele respondeu‑lhes num dialecto incompreensível, mas com uma boa voz de navegante. Foi por isso que deixaram de preocupar‑se com o inconveniente das asas e chegaram à sensata conclusão de que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro, desfeito pelo temporal. Contudo, chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou‑lhe um olhar para tirá‑los do engano.

‑ É um anjo ‑ disse‑lhes. ‑ Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair.

No dia seguinte toda a gente sabia que em casa de Pelayo tinham cativo um anjo de carne e osso. Contra o critério da vizinha sábia, para quem os anjos destes tempos eram sobreviventes fugitivos de uma conspiração celestial, não tinham tido coragem para matá‑lo à paulada. Pelayo esteve toda a tarde a vigiá‑lo, da cozinha, armado com o seu garrote de aguazil, e, antes de deitar‑se, tirou‑o de rastros do lodaçal e fechou‑o com as galinhas no galinheiro alambrado. À meia‑noite, quando terminou a chuva, Pelayo e Elisenda continuavam a matar caranguejos. Pouco depois o menino acordou, sem febre e com desejos de comer.

Então sentiram‑se magnânimos e decidiram pôr o anjo numa balsa com água doce e provisões para três dias e abandoná‑lo à sua sorte no mar alto. Mas, quando foram ao pátio com as primeiras claridades, encontraram toda a vizinhança em frente do galinheiro, divertindo‑se com o anjo, sem a menor devoção e a atirar‑lhe coisas para comer pelos buracos dos alambres, como se não se tratasse de uma criatura sobrenatural, mas sim de um animal de circo.

O padre Gonzaga chegou antes das sete, alarmado pela desproporção da notícia. A essa hora já tinham acorrido curiosos menos frívolos que os do amanhecer e tinham feito toda a espécie de suposições sobre o futuro do cativo. Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo. Mas o padre Gonzaga, antes de ser cura, tinha sido lenhador vigoroso. Chegado aos alambres, fez uma rápida revisão do seu catecismo, e, entretanto, pediu que lhe abrissem a porta, para examinar de perto aquele varão de lástima que mais parecia uma enorme galinha decrépita entre as galinhas absortas. Estava deitado num canto, secando ao sol as asas estendidas, entre as cascas de frutas e as sobras de pequenos‑almoços que lhe tinham atirado os madrugadores. Alheio às impertinências do mundo, mal levantou os seus olhos de antiquário e murmurou alguma coisa no seu dialecto quando o padre Gonzaga entrou no galinheiro e lhe deu os bons‑dias em latim. O pároco teve a primeira suspeita da sua impostura ao verificar que não compreendia a língua de Deus nem sabia cumprimentar os seus ministros. A seguir, observou que, visto de perto, tinha a aparência demasiado humana: tinha um insuportável odor de intempérie, o avesso das asas semeado de algas parasitárias e as penas maiores maltratadas por ventos terrestres, e nada da sua natureza miserável estava de acordo com a egrégia dignidade dos anjos. Então abandonou o galinheiro e, com um breve sermão, preveniu os curiosos contra os riscos da ingenuidade. Recordou‑lhes que o Demónio tinha o mau hábito de servir‑se de artifícios de Carnaval para confundir os incautos. Argumentou que, se as asas não eram o elemento essencial para determinar as diferenças entre um gavião e um aeroplano, muito menos o podiam ser para reconhecer os anjos. No entanto, prometeu escrever uma carta ao seu bispo, para que este escrevesse outra ao seu primaz e para que este escrevesse outra ao Sumo Pontífice, de maneira que o veredicto final viesse dos tribunais mais altos. A sua prudência caiu em corações estéreis. A notícia do anjo cativo divulgou‑se com tanta rapidez que ao cabo de poucas horas havia no pátio um alvoroço de mercado, e tiveram de levar a tropa, com baionetas, para espantar o tumulto, que já estava quase a deitar a casa abaixo. Elisenda, com o espinhaço torcido de tanto varrer lixo de feira, teve então a boa ideia de taipar o pátio e receber cinco centavos pela entrada para ver o anjo.

Vieram curiosos até da Martinica. Veio uma feira ambulante com um acrobata voador, que passou a zumbir várias vezes por cima da multidão, mas ninguém lhe ligou importância, porque as suas asas não eram de anjo, mas de morcego sideral. Vieram em busca de saúde os doentes mais infelizes do Caribe: uma pobre mulher que desde criança estava a contar os latejos do seu coração e já não tinha números que lhe chegassem, um jamaicano que não podia dormir porque o atormentava o ruído das estrelas, um sonâmbulo que se levantava de noite para desfazer as coisas que tinha feito acordado, e muitos outros de menor gravidade. No meio daquela desordem de naufrágio que fazia tremer a terra, Pelayo e Elisenda estavam felizes de cansaço, porque em menos de uma semana atulhavam de dinheiro os quartos de dormir, e, todavia, a fila de peregrinos que esperavam vez para entrar chegava até ao outro lado do horizonte.

O anjo era o único que não participava do seu próprio acontecimento. O tempo ia‑se‑lhe em procurar acomodação no seu ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno das lamparinas de azeite e das velas de sacrifício que lhe encostavam aos alambres. Ao princípio insistiram para que comesse cristais de cânfora, que, de acordo com a sabedoria da vizinha sábia, era o alimento específico dos anjos. Mas ele desprezava‑os, como desprezou, sem os provar, os almoços papais que lhe levavam os penitentes, e nunca se soube se foi por ser anjo ou por ser velho que acabou por comer nada mais que papas de beringela. A sua única virtude sobrenatural parecia ser a paciência. Sobretudo nos primeiros tempos, quando o espiolhavam as galinhas em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas e os aleijados lhe arrancavam penas, para tocar com elas nos seus defeitos, e até os mais piedosos lhe atiravam pedras, tentando conseguir que se levantasse, para vê‑lo de corpo inteiro. A única vez que conseguiram perturbá‑lo foi quando lhe queimaram as costas com um ferro de marcar novilhos, porque havia tantas horas que estava imóvel que pensaram que estava morto. Acordou sobressaltado, disparatando em língua hermética e com os olhos em lágrimas, e bateu as asas duas vezes, o que provocou um remoinho de estrume de galinheiro e pó lunar e um vendaval de pânico que não parecia deste mundo. Apesar de muitos terem ficado convencidos de que a sua reacção não tinha sido de raiva, mas sim de dor, desde esse dia trataram de não o incomodar, porque a maioria compreendeu que a sua passividade não era a de um herói em gozo de boa reforma, mas a de um cataclismo em repouso.O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto lhe chegava um parecer decisivo sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma tinha perdido a noção da urgência. O tempo ia‑se‑lhes a averiguar se o prisioneiro tinha umbigo, se o seu dialecto tinha alguma coisa a ver com o aramaico, se podia caber muitas vezes na ponta dum alfinete, ou se não seria simplesmente um norueguês com asas. Aquelas cartas de parcimónia teriam ido e vindo até ao fim dos séculos se um acontecimento providencial não tivesse posto um fim às tribulações do pároco.

Sucedeu que, por esses dias, entre muitas outras atracções das feiras ambulantes do Caribe, levaram ao povoado o espectáculo triste da mulher que se tinha convertido em aranha por ter desobedecido a seus pais. A entrada para a ver não só custava menos que a entrada para ver o anjo, mas ainda permitiam fazer‑lhe toda a espécie de perguntas sobre a sua absurda condição e examiná‑la pelo direito e pelo avesso, de maneira que ninguém pusesse em dúvida a veracidade do horror. Era uma tarântula espantosa do tamanho de um carneiro e com a cabeça de uma donzela triste. Porém, o mais aflitivo não era a sua aparência de disparate, mas a sincera aflição com que contava os pormenores da sua desgraça; sendo quase uma criança, tinha‑se escapado de casa dos seus pais para ir a um baile, e, quando regressava pelo bosque, depois de ter dançado toda a noite sem autorização, um trovão pavoroso abriu o céu em duas metades e por aquela greta saiu o relâmpago de enxofre que a converteu em aranha. O seu único alimento eram as bolinhas de carne moída que as almas caritativas quisessem deitar‑lhe na boca. Semelhante espectáculo, carregado de tanta verdade humana e de tão temível castigo, tinha de derrotar, sem premeditação, o de um anjo despeitoso que mal se dignava olhar para os mortais. Além disso, os raros milagres que se atribuíam ao anjo revelavam uma certa desordem mental, como o do cego que não recuperou a vista mas a quem apareceram três dentes novos, o do paralítico que não pôde andar mas esteve quase a ganhar a lotaria e o do leproso a quem nasceram girassóis nas feridas. Aqueles milagres de consolação, que mais pareciam divertimentos de troça, já tinham enfraquecido a reputação do anjo quando a mulher convertida em aranha acabou de a aniquilar.

Foi desta maneira que o padre Gonzaga se curou para sempre das insónias e o pátio de Pelayo voltou a ficar tão solitário como nos tempos em que choveu três dias e os caranguejos andavam pelos quartos.

Os donos da casa não tiveram nada que lamentar. Com o dinheiro arrecadado construíram uma mansão de dois andares, com balcões e jardins e com muros muito altos, para que não entrassem os caranguejos do Inverno, e com barras de ferro nas janelas, para que não entrassem os anjos. Pelayo instalou, além disso, uma criação de coelhos muito perto da povoação, renunciando para sempre ao seu mau emprego de aguazil, e Elisenda comprou uns sapatos acetinados com saltos altos e muitos vestidos de seda furta‑cor, como os que usavam as senhoras mais categorizadas nos domingos daqueles tempos. O galinheiro foi a única coisa que não mereceu atenção. Se alguma vez o lavaram com creolina e nele queimaram as lágrimas de mirra, não foi para prestar honras ao anjo, mas para conjurar a pestilência de esterqueira, que andava como um fantasma por toda a parte e estava a tornar velha a casa nova. Ao princípio, quando o menino começou a andar, tiveram cuidado para que não estivesse muito perto do galinheiro. Mas depois foram‑se esquecendo do temor e acostumando‑se à pestilência, e antes que o menino mudasse os dentes tinha‑se habituado a brincar dentro do galinheiro, cujos alambres apodrecidos caíam aos bocados. O anjo não foi menos desabrido para com ele do que para com o resto dos mortais, mas suportava as infâmias mais engenhosas com uma mansuetude de cão sem ilusões. Ambos contraíram a varicela ao mesmo tempo. O médico que tratou o menino não resistiu à tentação de auscultar o anjo e encontrou‑lhe tantos sopros no coração e tantos ruídos nos rins que não lhe pareceu possível que estivesse vivo. O que mais o assombrou, contudo, foi a lógica das suas asas. Pareciam tão naturais naquele organismo completamente humano que não podia compreender‑se porque não as tinham também os outros homens.

Quando o menino foi à escola, havia muito tempo que o sol e a chuva tinham desmantelado o galinheiro. O anjo andava a arrastar‑se por aqui e por ali, como um moribundo sem dono. Expulsavam‑no a vassouradas de um quarto e um momento depois encontravam‑no na cozinha. Parecia estar em tantos lugares ao mesmo tempo que chegaram a pensar que se desdobrava, que se repetia a si mesmo por toda a casa, e a exasperada Elisenda gritava, fora de si, que era uma desgraça viver naquele inferno cheio de anjos. Mal podia comer, os seus olhos de antiquário tinham‑se‑lhe tornado tão turvos que andava a tropeçar nas vigas que sustentavam o telhado e já não lhe restavam senão os ráquis pelados das últimas penas. Pelayo atirou‑lhe para cima uma manta e fez‑lhe a caridade de o deixar dormir no alpendre, e só então repararam que passava a noite com febres, delirando, em tartamudeios de norueguês velho. Foi essa uma das poucas vezes em que se alarmaram, porque pensavam que ia morrer e nem sequer a vizinha sábia tinha podido dizer‑lhes o que se fazia com os anjos mortos.

No entanto, não só sobreviveu ao seu pior Inverno como até pareceu melhor com os primeiros sóis. Permaneceu imóvel durante muitos dias no canto mais afastado do pátio, onde ninguém o visse, e em princípios de Dezembro começaram a nascer‑lhe nas asas umas penas grandes e duras, penas de passarão velho, que mais pareciam um novo percalço da decrepitude. Mas ele devia conhecer a razão dessas mudanças, porque tinha todo o cuidado para que ninguém as notasse e para que ninguém ouvisse as canções de navegantes que às vezes cantava sob as estrelas.

Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou‑se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando‑se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê‑lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê‑lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar.
Gabriel García Márquez, "Doze Contos Peregrinos"

Super detergente

Vivemos no tempo do recorde, do máximo, do prestígio do campeão. Todo o vocabulário está cheio dos híper ou dos super da propaganda comercial. Dizer que tal livro é o melhor de há 30 anos equivale a dizer que este é que é de fato um super detergente. De resto, os agentes publicitários do material literário não pretenderão talvez enganar-nos. Eles sabem que sabemos que estamos no domínio do reclame. É uma atividade inocente como proclamarmos a excelência de um sabão. E é exatamente por isso que eles usam sempre números redondos. Nunca dizem, por exemplo, que este é o melhor livro de há 47 anos ou de há 23 anos e meio. Na realidade, eles não têm um ponto de referência para marcarem as datas. Falar em 30 ou 50 anos é como usar uma "numeração indeterminada", como se diz em retórica. Garção, ao dizer da Dido moribunda que "três vezes tenta erguer-se", não pretende convencer-nos de que estiveram lá a contá-las. Em todo o caso e de qualquer modo, dizer que este é o melhor livro de há 50 anos afeta as pessoas impressionáveis. Mas por isso mesmo é que existem as agências de publicidade. E ninguém vai pedir-lhes satisfações por reclamar um produto contra a calvície que nos deixou talvez ainda mais depilados.
Vergílio Ferreira, "Um Escritor Apresenta-se"

Quem escreve à mão aprende mais intensamente

No mundo digital em que vivemos, a maioria das pessoas só digita em computadores e smartphones e, no máximo, escrevem à mão algumas notas ou listas de compras. Mas raramente nos comunicamos por cartas ou usamos canetas. Em vez disso, usamos cada vez mais e-mails, mensagens de texto ou até mesmo notas de voz.

Escrever um texto longo à mão está se tornando cada vez mais tedioso. Tarefas como preencher um cartão de aniversário ou escrever uma carta apresentável exigem toda a nossa concentração. Tudo isso aumenta o risco de que, aos poucos, esqueçamos como escrever à mão.

Desde pequenos, aprendemos a escrever à mão da forma mais correta e ordenada possível. Embora todas as crianças aprendam as mesmas letras, sua caligrafia geralmente é muito diferente.

Durante a adolescência e o início da idade adulta, nossa caligrafia geralmente muda consideravelmente, mas, a partir daí, ela permanece praticamente a mesma para a maioria das pessoas. Na idade adulta, cada pessoa geralmente tem sua própria caligrafia.

Mas sem rotina e controle, a caligrafia se deteriora. Problemas de caligrafia são há muito tempo um problema de toda a sociedade, não apenas das crianças, como muitas vezes se afirma. Na verdade, durante o ano letivo, pelo menos todos são verificados para garantir que sua caligrafia esteja correta e legível.

Apesar disso, a Associação Alemã de Educação e Treinamento vem alertando há anos sobre a deterioração da escrita e o aumento de déficits de habilidades motoras entre crianças em idade escolar. De acordo com um “ Estudo sobre o desenvolvimento da caligrafia, problemas e intervenções ” (STEP 2022), cada vez mais crianças estão tendo problemas para escrever de forma legível e rápida. Os bloqueios e o ensino domiciliar durante a pandemia da COVID-19 exacerbaram essa tendência.

Digitar no teclado é um método imbatível, especialmente para textos longos, já que a estrutura do texto pode ser modificada à vontade. A correção automática elimina pequenos erros e a escrita geralmente fica mais rápida, mais legível e menos cansativa.

No entanto, escrever à mão desafia o cérebro mais do que escrever em um dispositivo e, portanto, também promove o aprendizado. Um estudo norueguês de 2024 descobriu que a escrita à mão aumenta a atividade cerebral precisamente nas regiões cerebrais importantes para o aprendizado. Maior interação foi medida nas áreas do cérebro responsáveis ​​pela memória e pelo processamento de informações motoras e visuais.

Além disso, ao escrever, o cérebro compara a caligrafia resultante com modelos aprendidos de letras e palavras e ajusta a posição dos dedos em tempo real. O olho e o cérebro monitoram constantemente se os dedos estão guiando a caneta corretamente, aplicando a pressão correta e criando linhas claras ao escrever. Isso requer uma coordenação muito precisa entre os processos visuais e motores. De acordo com o estudo, é essa combinação de informação visual e processamento de informação que promove o aprendizado.

Embora a escrita à mão seja mais lenta do que a digitação, isso não é necessariamente uma desvantagem. A lentidão natural nos obriga a processar informações de forma mais intensiva.

É melhor resumir o que ouvimos ou as linhas de pensamento, destacar palavras-chave ou citações, fazer conexões com setas ou marcadores; Em geral, nos envolvemos mais intensamente com o conteúdo e, portanto, nos lembramos dele por mais tempo.

A caligrafia é uma das técnicas culturais mais importantes. Milhares de anos atrás, as pessoas esculpiam informações em argila ou pedra ou as escreviam com tinta em folhas de palmeira, pergaminhos ou papiros. Até a invenção da imprensa, a escrita à mão era a única maneira de registrar a linguagem em um meio.

A escrita mais antiga tem entre 5.000 e 6.000 anos: os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme no que hoje é o Iraque. Essa escrita pictográfica consistia em cerca de 900 pictogramas e ideogramas, ou seja, símbolos e sinais que eram riscados em placas de barro úmido com bastões de madeira. Com o tempo, essa "caligrafia" evoluiu para vários tipos de escrita e nosso alfabeto atual.

Ao contrário da fala, a escrita antigamente só estava disponível para a nobreza, os intelectuais e os comerciantes. O fato de tantas pessoas saberem ler e escrever hoje se deve à introdução da educação obrigatória no século XX.

Em 1820, apenas 12% da população mundial era alfabetizada. Hoje, a proporção se inverteu: segundo a UNESCO, apenas cerca de 13% da população mundial não sabe ler nem escrever. Metade dos aproximadamente 765 milhões de analfabetos do mundo vive no sul da Ásia, e mais de um quarto na África Subsaariana. Dois terços dos analfabetos do mundo são mulheres.

Vista cansada

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.
Otto Lara Resende

Eu disse pra moça: 'Solta os bichos!'

Foi semana passada no Jardim Botânico, quando participei na livraria Janela de uma palestra com Marcelo Moutinho, que lançava seu novo (ótimo) livro de crônicas, “O último dia da infância”. Uma moça da plateia com uma franjinha vintage ao estilo Elsa Martinelli pediu o microfone.

Ela disse que gostava de escrever, que tinha até publicado um conto numa plaquete da livraria, mas queria mesmo era adentrar em mundos mais próximos aos do cotidiano das pessoas, narrar o que lhes ia de doméstico na existência, aqueles detalhes que parecem tão pequenos, tão sem importância e, no entanto, explicam as vidas. A moça passou a mão na franjinha, um pouco para acertar o alinhamento, outro tanto para tomar coragem. Perguntou: “O que faço para escrever crônicas?”.

Eu poderia esbanjar charme intelectual, citar os autores de sempre e aborrecer a audiência com a velha história de quem-não-lê-não-escreve. Não fi-lo. Cronistas não se levam tão a sério e, afinal, ela já era iniciada nos prazeres do texto.


Recomendo sempre que antes de pensar na Academia Brasileira de Letras, o candidato se inscreva na academia de ginástica mais próxima. Escrever é atividade física, não é só malhação do cérebro. Parte do corpo se espreme o dia inteiro contra o assento da cadeira, outra parte se debruça estressada sobre o notebook na esperança, durante muitas horas vã, de que surja alguma ideia na tela. Escrever dói, castiga os músculos do cóccix até o pescoço.

Recuei também desse aconselhamento porque, via-se com clareza, embora eu tenha sido bastante discreto no processo de observação, que era moça exercitada nas melhores séries da ginástica pós-moderna. De sua mochila saía o cabeçote típico, tão Smart Fit, de uma garrafa com shake de whey. Lembrei então de outro recurso muito útil, quase fundamental, a quem pretende escrever este gênero, e foi a ele que recorri para, com sinceridade crônica, aconselhar a moça no seu projeto de ser cronista: “Tenha um bichinho”, sugeri.

Ter um animal doméstico, um gatinho, um cãozinho, é tão útil para o exercício da profissão quanto a leitura das 710 páginas de “Todas as crônicas” que a Rocco acabou de lançar com a obra de Clarice Lispector. Quando a busca de inspiração já se esgotou, quando a meia dúzia de voltas em Ipanema se mostrou improdutiva na busca de assunto, você vai olhar em desespero para os cantos da casa – e lá estarão eles, o cachorro aos seus pés, o gato em cima do computador, todos se oferecendo, musas e musos, para preencher a página em branco.

Animais domésticos são exemplos de amizade profunda, reproduzem qualidades, medos e desejos, essas condições humanas que, postas no papel, fazem da crônica um gênero de características tão delicadas. Otto Lara Rezende levou o país às lágrimas em “Volta, Zeno”, a crônica sobre o desaparecimento do gato em meio a uma mudança de residência. Carlos Heitor Cony chorou a morte da cadelinha Mila em dúzias de textos. Machado de Assis, romancista maior, cronista menor, não tinha animal em casa.

Eu sugeri à moça que tivesse o seu gatinho, o seu cãozinho, esses pets maravilhosos e cheios de assunto, mas que isso era só o início da crônica. Vida do cronista é dureza. Depois, com humor, estilo e ração personalizada, é preciso soltar os bichos.

domingo, abril 6

Marinheiro de todos os mares

 


Minha sombra

De manhã a minha sombra
com meu papagaio e o meu macaco
começam a me arremedar.
E quando eu saio
a minha sombra vai comigo
fazendo o que eu faço
seguindo os meus passos.

Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamaninho
de quando eu era menino.
Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
brinca de pernas de pau.

Minha sombra, eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.
E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:
Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.
Jorge de Lima

Insuportável idiota


Uma pessoa, seja homem ou mulher, que não tenha prazer num bom romance, deve ser um insuportável idiota.

Jane Austen

Sentimento do mar

Passo pela padaria miserável e vejo se já tem pão fresco. As jogadas e os camarões estão aqui. Está aqui a garrafa de cachaça. Você vai mesmo? Pensei que fosse brincadeira sua.

Arranje um chapéu de palha. Hoje vai fazer sol quente. Andamos na madrugada escura. Vamos calados, com os pés rangindo na areia. Venha por aqui, aí tem espinhos. Os mosquitos do mangue estão dormindo. Venha. Arrasto a canoa para dentro da água. A água está fria. Ainda e quase noite… O remo está úmido de sereno, sujo de areia. Sente ali na proa, virada para mim. Olhe a água suja no fundo da canoa. Ponha os pés em cima da porta. Eu estou dentro d’água até os joelhos, empurro a canoa e salto para dentro. Uma espumarada de onda fria bate na minha cara. Remo depressa, por causa da arrebentação. Fique sentada, não tenha medo não. Firme aí. Segure dos lados. Não se mexa! Firme! Ooooi.. Quase! Outra onda dá um balanço forte e joga um pouco de água dentro do barco. Estou remando em pé, curvado para a direita, com esforço. A outra onda passa mansa, mansa, a proa bate n’água e avança. O remo esta frio nas minhas mãos. Eu o mergulhei dentro d’água para limpar a areia. A água que escorre molha as mangas de meu paletó. 0 mar está muito calmo. Esse ventinho que está vindo e passando em seus cabelos é o vento da terra. O terral vem de longe, lá do meio da terra, dos matos dormentes atrás dos morros. Vem da terra escura para o mar escuro. Nós iremos com ele.

Levantei a vela encardida. O meu leme está quebrado, mas tenho o remo. Vamos um pouco beirando a praia para o norte. Agora o ventinho nos pega. A vela treme feito mulher beijada. Fica túmida feito mulher beijada. As vezes, a força do vento diminui um pouco, e ela bambela, amolece, feito mulher possuída. Olhe lá a sua casa. Não está vendo, não? O pão está bom? Se você comer todo agora, vai ficar com fome lá fora. Me dá essa cuia, vou tirar a água da canoa. Raspo o fundo do barco, onde o cheiro forte e enjoado da maresia, esse cheiro que eu amo, embebeu para sempre o lenho. Viro um pouco a vela, sento, e passo o remo para a esquerda. O leme, assim como está, ajuda. Vamos cortando a água maciamente… A água está cinza, escura, pesada, como óleo. O balanceio nos leva. A praia pobre ficou lá longe, com luzinhas piscando. Estamos quietos, e ela rói o pão olhando a água. A água fala alguma coisa ao batelão, lambendo seu corpo, numa ternura de velha amiga com velho amigo.

Ela está quase deitada. O frio do fim da noite, o ar cheio de água, com um cheiro úmido, me faz abrir as narinas, apaga o meu sono. Na penumbra imensa seus cabelos parecem úmidos sobre a testa morena. Nós avançamos no bamboleio manso, conversando com moleza. A sua voz me vem, atravessando o vento fraco, entre a voz da água na beira da canoa. Seu corpo, na proa, sobe e desce no horizonte… Ela está virada para mim. Contempla lá atrás a terra que vai morrendo no escuro, que é apenas um vago debrum sujo além da água. Eu olho a água. Tenho vontade de beijar a água. Beijar de leve a flor salgada da água, depois beijar com lábios úmidos, com pureza, de manso, aquela boca sob os olhos negros, sob a testa morena. Mas isso é apenas um desejo à-toa, sem força nenhuma, um desejo que sabe que veio à toa e que vai à toa.

Acendo um cigarro e perguntou – Você quer fumar?

A minha amiga não fuma, e ri. Ri muito, como se eu tivesse ficado triste muito tempo e de repente tivesse dito uma coisa engraçadíssima. Ri… Seu riso quebra, parte, destrói o encanto molengo da madrugada. L como se estivéssemos em terra e, por exemplo, fizesse sol, em uma tarde comum, ou nós andássemos depressa pela rua. Seu riso rasga a calma do mar escuro, como se o mar não estivesse soluçando sob a canoa.

Uma claridade pastosa, débil, vem lá do fundo sobre o qual o seu corpo deitado se balança. E nós conversamos animadamente, como se estivéssemos em um bonde, fôssemos a um cinema. Não estamos sozinhos no mundo, em uma canoa no meio do mar. A nossa vida não é apenas esta velha canoa, esta vela encardida e pequena, este remo úmido. Somos gente da terra, sem nenhuma evasão nem mistério. Conversamos. Eu conto histórias do mar, como se fosse um velho pescador. Ela me interrompe para contar uma coisa – uma coisa terrena, acontecida na terra, dentro de uma casa na terra, com lâmpada elétrica, onde os homens se atormentam. E eu ouço, me interesso. Desci a vela. Vou remando, remando tão bestamente como se os músculos de quem rema não tivessem alma, como se a água rompida pelo remo não tivesse músculos e alma, como se eu jamais tivesse sentido pulsar, nas minhas velas rolando ondas, a vertigem calma do mar. Remo, não há mais encanto nenhum. Tudo vai clareando no ar e na água. Remarei, pescarei. Pedirei a ela que se levante para que eu possa descer a pedra pela proa, até sentir bater na lama. Pescarei. Se ela estiver cansada, se ela achar cacete, voltarei para terra conversando. Ela achará cacete. Ela é da terra, está viciada pela terra, e eu não poderia lhe ensinar meu sentimento. Meu sentimento é inútil, eu converso conversas da terra com essa filha da terra. Eu pescarei e assobiarei um samba. Eu remarei para a terra logo que ela estiver cansada do mar.
Rubem Braga, "O Conde e o Passarinho"

O Satanás

Tinha uma bela compostura varonil e forte de velho conservado aquele desconhecido que tão inopinadamente acabava de entrar na bodega do Trancoso e em torno do qual todos respeitosamente se acercavam.

Por sobre o chapéu de abas largas, via-se um rosto bem modelado em ângulos violentos de decisão e afoiteza O espesso e comprido bigode militar, que o sarro dos cachimbos amarelecera, recurvava-se fantasticamente numas pontas erguidas para o céu como uma ameaça de conos de Satanás. O nariz e o queixo eram pontiagudos, fazendo-lhe a cara estreita e cortante como a cabeça dos peixes, e a quilha dos navios. E ele tinha, principalmente, um olhar, indefinível de cor, agudo e penetrante como a lâmina daquela espada que atirara sobre o balcão, olhar de rapina, de águia nobre ou abutre carniceiro. Não se lhe podia ver o traje, envolto como trazia o corpo numa vasta capa espanhola de forro escarlate Divisava-se-lhe apenas as largas botas de couro, muito elameadas e com esporas de grandes rosetas.

E aí, à luz baça dos candieiros, recostado por sobre uma mesa, ele quedava-se, indiferente com a preocupação dos outros, tipo fantástico de aventuras a quem pouco importavam a luta de ainda havia pouco, e a perspectiva toda da vida restante.

Chamavam-no Satanás e tinha a sua história.

De origem fiorentina e boas fidalguias, ele crescera logo numa infância cheia de tempestades. Na noite do seu nascimento, uma vingança italiana ateara o incêndio no palácio dos Pallingrini, e somente a um mi]agre se deveu a sua salvação. O pai, que o trouxera ao colo descendo pela escada abrasada, entregou-o a um criado. E pereceu dentro das chamas quando tentou voltar para salvar a mulher. Um frade mendicante que passava batizou-o então com o nome de Ângelo; e uma bruxa cigana, que dizia a buena dicha vaticinou-lhe mil horrores: uma inconstância de sorte fazendo-o milionário de repente e mendigo logo depois, e enfim uma morte violenta e uma sepultura fora do sagrado.

Ângelo Pallingrini, o pobre órfão da triste catástrofe, foi conduzido então para um castelo da Calábria, onde seu tio e tutor o confiou aos cuidados de uma ama, e o deixou crescer por ali, ao azar das circunstâncias, como bem parecia à criança e como bem entendiam os criados. O menino fez-se logo trêfego, autoritário e mau. Gostava de subir ao terraço da grande torre do castelo para precipitar os animais que conseguia apanhar. E de uma ocasião, aos sete anos, passou duas semanas na enxovia, porque, brincando armas com seu irmão colaço, matou-o para experimentar como eram as brigas de verdade. Adolescente, sonhou logo amores. Queria-os, porém, misteriosos e complicados, difíceis e românticos, como os contavam nas lúgubres legendas do papado que a gente do castelo gostava de repetir pelas horas tristes da noite, na monotonia fatigante dos serões. E apaixonou-se pela tia – uma bela mulher, vigorosa e forte que vivia a exuberância dos seus trinta anos junto à precoce decrepitude do marido.

Mas quando uma noite, entrava-lhe nos aposentos, encontrou-a morta sobre o assoalho, esplendidamente nua, com os bastos cabelos em desalinho e um lençol apenas envolvendo-lhe parte do corpo, deixando-lhe a descoberto os seios por entre os quais se afincava o punhal assassino.

Junto ao cadáver, sereno e pálido, o castelão velava de pé com as mãos nos copos da espada – sentinela da honra no campo da morte.

Ângelo Pallingrini soltou então pela primeira vez aquela gargalhada estentórica de ferros velhos que chocalham como as armaduras dos guerreiros dentro das campas, aquela gargalhada que lhe deu mais tarde o cognome de Satanás.

E antes que o tio se movesse, ele arrancou do peito da morta esse punhal com que a covardia de um marido tinha vitimado a sua amante, e investiu contra o velho fidalgo, que rodou no chão soltando uma praga de maldições.

O rapaz fugiu. Embarcou numa galera que partia para as Espanhas. Uma triste fatalidade pesava-lhe, entretanto, sobre o destino todo inteiro. Tanto que nas alturas de Argel a galera foi aprisionada pelos piratas mouriscos.

Ângelo, italiano e supersticioso por conseguinte, supôs-se então a vítima de um mau-olhado, de uma jetatura lançada sobre os amores mesmos de seus pais que ele nem tinha aprendido a respeitar.

A idéia do suicídio veio-lhe então. Ou pelo menos a idéia de encontrar a morte em um qualquer combate. Porque ele sentia-se melhor do que era. E via-se infeliz, fazendo a desgraça de todos aqueles de quem se aproximava.

Lá em Argel vieram-lhe, porém, novos amores e uns anos de calma fruídos lentamente no gozo lascivo dos serralhos.

O Bey apaixonara-se por essa criança esquisita, de olhar altivo, mas tenebroso, e que tão bem sabia gargalhar um riso triste, de amarguras e de dores. E o moço italiano foi prosperando de haveres e de posições. Quando o instinto das batalhas o espicaçava muito furte, seguia para o deserto à caça do leão.

Noticias, porém, da sua pátria, a intolerável opressão austríaca e as guerras valentes de Bonaparte o fizeram voltar para a sua terra onde melhor podia viver o seu gênio aventureiro de fidalgo.

Cumpria-se, entretanto, a fatal predição da cigana. E semelhante projeto foi o ponto de partida de uma série de desastres Um naufrágio fez-lhe perder a galera, onde iam os seus tesouros e as suas escravas, quase à entrada mesmo do porto de Nápoles.

E foi como simples soldado que ele entrou no exército da Venécia. Prisioneiro do austríaco e condenado à morte, conseguiu fugir entretanto graças ao auxílio de um fidalgo espanhol a quem salvara a vida e que o levou a Madri.

Foi ai que ele conheceu d. Bias, com quem se passou para Portugal e mais tarde para o Brasil junto com a comitiva de d. João VI que o escolhera para mestre de armas de seus filhos.

Na corte do monarca lusitano, o Satanás fez-se também escultor, artista galante, querido das damas, a quem impressionava pela altivez cavalheirosa de seu porte e pelo aventureiro de seu viver.

E nos anais do tempo ficou celebrado o seu amor com uma das damas da rainha, de quem houve uma filha, que estava sendo misteriosamente educada, ninguém sabia onde.

Aqui no Brasil fora ele quem dera a nota boêmia da vida nas tavernas, protegido que andava pela amizade de d. Pedro.

Velho embora, e taciturno, ele sabia fazer a alegria em torno de si. Tinha idéias esquisitas, caprichos de imaginação e principalmente um gênio batalhador que dava às suas noitadas um aspecto aventuroso de novidades e imprevistos.

E por muitas vezes pareceu-lhe que se renovavam para si aqueles bons tempos ditosos de Argel. Enriquecia e subia em considerações e importâncias.

Com o regresso de d. João VI, entregue que ficou a colônia ao príncipe regente, o Satanás foi quase a segunda pessoa do Estado, muito ouvido e atendido por d. Pedro, que conservara um grande respeito pelo seu velho mestre de armas de quem fazia guarda-costas nas costumeiras excursões noturnas.

Por isso estavam todos agora muito respeitosos, ali na bodega do Trancoso.

Apenas d. Bias teve a coragem de sentar-se junto a mesa, como velho conhecido de todos os tempos e de todas as vicissitudes. Beberam juntos, muito calados, logo após a troca. de algumas palavras.

E o Satanás pediu logo a espada que tinha mandado limpar.

– Boa lâmina! disse o Carniça para fazer conversa.

Mas ninguém teve a coragem de acrescentar palavra porque Satanás voltou-se e esparramou um olhar de desprezo por sobre os circunstantes.

Depois ergueu-se e atirou para cima do balcão uma moeda de ouro, dizendo ao Trancoso:

– Pague isso em bebidas a esta gente.

E saiu, sem ligar importância aos agradecimentos que lhe queriam fazer, chapinhando na lama do Piolho com as grandes botas de cavaleiro, e misturando nas trevas do derredor o longo fantasma de seu vulto de capa preta.
Aluísio Azevedo, "O Esqueleto"

sábado, abril 5

Bando de leitura

 


Os filhos dos deuses

Você tem uma lista de escritores favoritos, eu tenho a minha: Dickens, Twain, Wolfe, Peacock, Shaw, Molière, Jonson, Wycherly, Sam Johnson. Poetas: Gerard Manley Hopkins, Dylan Thomas, Pope. Pintores: El Greco, Tintoretto. Músicos: Mozart, Haydn, Ravel, Johann Strauss (!). Pense em todos esses nomes e você vai pensar em entusiasmos, apetites, fomes, grandes ou pequenas, mas de qualquer forma, importantes. Pense em Shakespeare e Melville e você vai pensar em trovão, raio, vento. Todos sabiam da alegria de criar em formatos grandes ou pequenos, em telas ilimitadas ou restritas. Esses são os filhos dos deuses. Souberam se divertir em seu trabalho. Não importa se a criação foi difícil aqui e ali, ao longo do caminho, ou se doenças e tragédias acometeram sua vida mais íntima. As coisas importantes são aquelas que nos foram transmitidas por suas mãos e mentes, e essas coisas estão cheias até a tampa de vigor animal e vitalidade intelectual. Seus ódios e desesperos foram relatados com uma espécie de amor.

Ray Bradbury, "Zen na arte da escrita" 

Poema das coisas belas

As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivos serão belas?
E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos veem.
Mas por que será belo o pôr do sol?
E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?
António Gedeão

O caçador

Um meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma única nuvem… As ervas, queimadas pelo sol, apresentam um aspecto triste e desolado: já não recuperarão mais o seu viço, mesmo que chova… A floresta queda-se muda, imóvel, parecendo que as copas das árvores observam qualquer coisa ao longe e esperam.

Pela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão , um homem de uns quarenta anos, alto, de ombros estreitos, camisa vermelha, botas altas e calças herdadas do patrão, já cobertas de remendos. Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja a moita; à esquerda, ocupando todo o espaço até ao horizonte, estende-se um mar dourado de centeio maduro… O homem está vermelho e transpira. Na sua cabeça bonita, de cabelos louros, leva um boné posto à banda, branco e de pala direita, de jóquei, provavelmente oferecido por algum jovem ricaço num arroubo de generosidade. Ao ombro leva um bornal, com um tetraz aí metido às três pancadas. Nas mãos, uma espingarda de dois canos, engatilhada, e não desprende o olhar do velho e escanzelado cão que corre à frente, farejando arbustos. Em volta, apenas o silêncio… Todos os seres vivos fugiram do calor para os esconderijos.

– Egor Vlassitch – ouve subitamente pronunciar, em voz baixa.

Sobressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado. Tem diante de si, como que caída do céu, uma camponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e com uma foice na mão, que lhe procura ver o rosto e sorri timidamente.

– Ah, es tu, Pelagueia! – diz o caçador, detendo-se e desengatilhando a arma. – Hum!… O que andas a fazer por aqui?

– Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia… Andamos à jorna.

– Pois é… – resmunga Egor, e põe-se de novo a andar com lentidão.

Pelagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinte passos.

-Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch… – diz Pelagueia, acompanhando com um olhar afetuoso os movimentos dos ombros e das costas do homem. – Desde aquele dia, na Semana Santa, que foi à nossa casa pedir um copo de água, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima. Entrou só e saiu, e ainda assim… muito borracho… Armou uma bulha, deu-me uma sova e foi-se embora… E eu que o esperei tanto, a olhar a todo o instante para a janela, a ver se aparecia… Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Por que não quer dar um salto a casa?

-Para fazer o quê?

– Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade sua… Podia dar uma olhadela, ver como é que andam as coisas. O dono é você… Ena! Matou um tetraz! Por que não se senta e descansa um bocado?

Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva, erguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A sua cara respira felicidade.

– Pois bem, descansemos… – anuiu o caçador em tom indiferente e escolhendo um lugar entre dois abetos. – Por que estás aí de pé? Senta-te também.

Pelagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e, envergonhada da sua alegria, tapa com a mão a boca sorridente.

– Se ao menos passasse um dia pela casa – diz em voz baixa.

-Para quê? – Egor suspira, descobrindo-se e limpando a testa vermelha a uma manga. – Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, .é perder tempo e desarranjar-te, e quanto a fixar-me para sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes que sou um homem mimado. Quero ter cama, bom chá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeia só há miséria, imundície…

Não agüento ali nem um só dia. Se me obrigassem, pela força, a viver contigo, ou pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assim de pequeno, buliçoso. Não tem cura.

– E onde é que mora agora?

– Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, como caçador. Levo caça para a cozinha dele… Mas é antes por prazer que me mantém.

– Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch… Para os outros, é um divertimento, para ti, é como um ofício… um verdadeiro emprego…

– Não compreendes nada, pateta – diz Egor, fixando no céu um olhar sonhador. – Nunca compreendeste e nunca compreenderás que espécie de homem sou eu… Na tua opinião, sou um estróina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o maior atirador de todo o concelho. Os senhores que me conhecem sentem-no, e até referiram o meu nome numa revista. Não há quem se compare comigo na arte da caça… Se não aceito a vossa labuta de campo, não é por leviandade, nem por orgulho. Sabes, desde criança que não conheço outra coisa além da espingarda e dos cães. Se me tiravam a espingarda, pegava na cana de pesca, se me tiravam a cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”, também me metia em negócios de cavalos, corria as feiras. Sabes, o camponês que se dedicar ao ofício de caçador ou se ocupar de cavalos já não pega mais no arado. Se um homem ganhou o gosto pela liberdade, já ninguém lho tira. Assim como o senhor que envereda pela carreira de ator ou artista, sei lá, nunca mais será funcionário ou rendeiro. E tu, que és uma pacóvia, não tens cabeça para compreender estas coisas.

– Eu compreendo, Egor Vlassitch.

– Se compreendesses, não estavas agora quase a chorar.

– Não, não choro – retorquiu Pelagueia, voltando a cabeça. – Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Se ficasses comigo pelo menos um dia… Há já doze anos que nos casamos e ainda nem uma só vez fizemos amor… Não, não, estou a chorar.

– Qual amor! – resmunga Egor, coçando uma mão. – Não pode haver amor nenhum entre nós. Somos um casal só no papel, mas corresponde isso à realidade? Tu achas-me um selvagem, e eu acho-te uma simplória sem entendimentos. Como podemos dar-nos? Sou um homem livre, mimado, folgazão, e tu és uma jornaleira, uma campônia, vives na lama, trabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador sem igual, e tu lastima-me… Diz-me, que raio de casal é o nosso?

– Mas sempre estamos unidos pelo casamento!… – contrapõe Pelagueia num soluço.

– Não por nossa vontade… Ou já te esqueceste? A culpa foi tua e do conde Serguei Pavlovitch. O conde, que tinha inveja de não saber atirar tão bem como eu, andou um mês a encher-me de vinho, e a um bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outra fé. Pois então desforrou-se, casando-me contigo… Um caçador com uma ordenhadora! Ora, se vias perfeitamente que eu estava bêbado, por que não te opuseste? Não és serva nenhuma, ninguém te podia forçar! É claro que, para uma ordenhadora, casar com um caçador é a sorte grande, mas também, é preciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estás aqui a sofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O conde ri-se e tu choras, martirizas-te…

Silêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se transformam em três pontos quase invisíveis e pousam muito para além da floresta.

– De que vives?-pergunta ele, passando os olhos dos patos para Pelagueia.

– Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao orfanato buscar um bebê e criá-lo em casa a biberão. Pagam um rublo e meio por mês.

-Pois…

Outra pausa. Do campo de centeio chegam sons duma canção, que logo se interrompe. O calor não deixa cantar.

– Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa nova -diz Pelagueia.

Egor não responde.

– Sendo assim, gosta dela…

– Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã – diz o caçador, espreguiçando-se.. – Pronto, já me demoraste muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho que estar em Boltovo…

Egor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro. Pelagueia levanta-se também.

– Quando passa então pela aldeia? – pergunta baixinho.

– Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou, e bêbado em nada te serei útil. A bebida torna-me raivoso. Adeus!

– Adeus, Egor Vlassitch…

Egor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão, põe-se novamente a caminho. Pelagueia fica no mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquanto contempla os ombros e o pescoço forte de Egor, que se afasta num passo preguiçoso e lasso, os seus olhos irradiam tristeza e carinho. O seu olhar acaricia, afaga toda a figura do marido, alto e magro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se e volta a cabeça…

Embora continue calado, vê-se pela sua cara e ombros alteados que quer dizer alguma coisa. Pelagueia aproxima-se timidamente e fita-o com um olhar implorador.

– Toma! – diz Egor, sem olhar para ela e estendendo uma nota de um rublo, muito usada. E, afasta-se a passo rápido.

– Adeus, Egor Vlassitch! -diz ela, aceitando maquinalmente a nota. Ele vai caminhando pela estrada comprida e reta como um cinturão. Pálida e imóvel como um monumento, Pelagueia acompanha com o olhar os passos dele. Por fim, o vermelho da camisa de Egor acaba por fundir-se com o cinzento das calças, os passos tornam-se imperceptíveis e é já impossível distinguir o cão das botas. Vê-se apenas o boné. De repente, Egor volta à direita, mete pela moita dentro e o boné desaparece entre a verdura.

– Adeus, Egor Vlassitch! – murmura Pelagueia, pondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar, ainda uma vez mais, o boné branco.

Anton Pavlovitch Tchekhov

Uns cobres extras

Arranjei umas escritas à noite, para defender uns cobres extras. O emprego dá pouco. Perto de casa, um escritório de contabilidade. Meu irmão:

— É, já era hora de tomar juízo.

Meu irmão só pensa em seriedade.

Cá no bairro minha fama andava péssima. Aluado, farrista, uma porção de coisas que sou e que não sou. Depois que arrumei ocupação à noite, há senhoras mães de família que já me cumprimentam. Às vezes, aparecem nos rostos sorrisos de confiança. Acham, sem dúvida, que estou melhorando.

— Bom rapaz. Bom rapaz.

Como se isto estivesse me interessando…

Faço serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas. Dez, onze horas. De quando em vez levo cerveja preta e levo Huxley. (Li duas vezes o Contraponto e leio sempre.) Não parei na várzea da U.M.P.A, nas lições de distribuição de passes e centros que Biluca me dava.

Deixando o escritório. A madrugada costuma enegrecer tudo. Casas e homens. Só as minhas tampinhas reluzem na calçada. Contraponto debaixo de um braço. Garrafa vazia de cerveja preta no outro. Assobiando, mãos nos bolsos.

Mamãe costuma dizer que eu não sou dos mais feios. Bem — veio morar cá no bairro uma professorinha solteira, muito chata. Rapazes lhe dão em cima por causa de um dote, ou de coisa parecida. Não sei. A vida dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me provocando. Quer casamento, com certeza. Olho para a mulher, para os modos, para o anel… Quer casamento. Eu não.

Dias desses, no lotação. A tal estava a meu lado querendo prosa. Tentava, uma olhadela, nos cantos os olhos se mexendo. Um enorme anel de grau no dedo. Ostentação boba, é moça como qualquer outra. Igualzinha às outras, sem diferença. E eu me casar com um troço daquele?… Parece-me que procurava conversa, por causa dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada, talvez não querendo ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase respondi…

— Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não conheço chutador mais fino.

Mas não sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e corriqueiras. De vez em quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Ciúme, queixa. Sutis e corriqueiras. Ou a cadência dos versos que exaltam um céu cinzento, uma luva, um carro de praça… Se ouço um samba de Noel… Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito — o “feitio de oração” ou as minhas tampinhas.

João Antônio, "Afinação e a arte de chutar tampinhas"

sexta-feira, abril 4

Leitura em companhia

 


Os dias felizes

Os dias felizes estão entre as árvores, como os pássaros:

viajam nas nuvens,
correm nas águas,
desmancham-se na areia.

Todas as palavras são inúteis,
desde que se olha para o céu.

A doçura maior da vida
flui na luz do sol,
quando se está em silêncio.

Até os urubus são belos,
no largo círculo dos dias sossegados.

Apenas entristece um pouco
este ovo azul que as crianças apedrejaram:
formigas ávidas devoram
a albumina do pássaro frustrado.

Caminhávamos devagar,
ao longo desses dias felizes,
pensando que a Inteligência
era uma sombra da Beleza.

Cecília Meireles

Tull

Anse continua a esfregar os joelhos. Seu poncho está desbotado; em um joelho, um remendo de sarja cortado de uma calça domingueira já está reluzente de tanto uso. “Não gosto disto, nem um pouco”, ele diz.

“É preciso a gente antecipar as coisas”, eu digo. “Mas, de qualquer forma, não haverá mal algum.” “Ela quer partir imediatamente”, ele diz. “E Jefferson não fica nada perto.” “Mas as estradas estão boas agora”, eu digo. Além disso, vai chover esta noite. E os parentes dele estão enterrados em New Hope, a menos de cinco quilômetros de distância. Mas é próprio dele ter casado com uma mulher que nasceu a um dia inteiro de viagem e que morre antes dele.

Ele olha a plantação, esfregando os joelhos. “Não gosto nada disso”, diz. “Voltarão com tempo de sobra”, eu digo. “Se fosse você, não me preocuparia.” “Serão três dólares”, diz. “Talvez não precisem voltar a toda pressa”, eu digo. “Espero que não.” “Ela está se acabando”, diz. “Não pensa em outra coisa.” Sem dúvida, a vida das mulheres é dura. De algumas mulheres. Lembro que mamãe chegou até os setenta e poucos. Ocupada o dia inteiro, chovesse ou fizesse sol; não caiu de cama um só dia, desde que lhe nasceu o último filho, até que, um dia, pareceu olhar em volta, foi apanhar a camisola rendada que tinha há quarenta e cinco anos e nunca havia tirado da arca, vestiu-a, estirou-se na cama e, puxando o cobertor, fechou os olhos. “Agora vocês todos cuidem de Pai o melhor que puderem”, disse ela. “Não aguento mais.” Anse esfrega as mãos nos joelhos.

“Deus provê”, diz. Podemos ouvir a serra e o martelo de Cash, no oitão da casa, É verdade. Nunca ninguém disse nada mais verdadeiro. “Deus provê”, repito. O rapaz sobe a colina. Traz um peixe quase tão comprido quanto ele. Atira-o ao chão e resmunga: “Ahn”, e cospe, por cima do ombro, como um homem. Um peixe quase do seu tamanho. “Que diabo é isto?”, digo. “Um peixe-porco? Onde o pegou?” “Perto da ponte”, ele diz. Vira o peixe, e a parte de baixo está grudada de poeira, e o olho fechado intumesceu sob a poeira. “Pretende deixá-lo aí mesmo?”, diz Anse. “Vou mostrar a Mãe”, diz Vardaman. Olha para a porta. Podemos ouvir a conversa trazida pela corrente de ar. Também ouvimos Cash, batendo nas tábuas. “Agora ela tem visitas”, diz. “É o meu pessoal”, digo. “Também gostarão de ver o peixe.” Ele não diz nada, observando a porta. Depois, volta a olhar o peixe tombado no pó. Vira-o com o pé e, com o dedo grande do pé, comprime o olho saltado. Anse mira a plantação. Vardaman olha o rosto de Anse, depois a porta.
Volta-se, avançando para o canto da casa, quando Anse e chama sem olhar ao redor. “Limpe o peixe”, diz Anse.

Vardaman para. “E por que Dewey Dell não o limpa?” “Limpe o peixe, você”, diz Anse.

“Ora, Pai”, diz Vardaman.

“Limpe-o, você mesmo”, diz Anse. Não olha ao redor. Vardaman volta e apanha o peixe. O peixe escorrega-lhe das mãos, sujando-o de lama, e cai ao chão, emporcalhando-se novamente; de boca aberta, olhos protuberantes, esconde-se no pó, como se tivesse vergonha de estar morto, como se tivesse pressa de ocultar-se outra vez. Vardaman pragueja contra ele. Pragueja como um adulto, em pé, com o peixe entre as pernas. Anse não olha ao redor. Vardaman apanha novamente o peixe. Rodeia a casa, levando-o nos braços como quem carrega uma braçada de lenha, e a cabeça e o rabo do peixe saem pelos lados. Quase do tamanho de Vardaman.

Os punhos de Anse ultrapassam as mangas: nunca o vi, em toda a minha vida, com uma camisa que parecesse sua. Parece até que Jewel lhe dá as camisas que vão ficando velhas. Mas a camisa não é de Jewel. Ele tem os braços compridos e o corpo espigado. E. além do mais, não há mancha de suor. Pode-se dizer, sem medo de errar, que elas não pertenceram a mais ninguém, salvo Anse. Seus olhos, estendidos além da plantação, parecem dois carvões queimados fixos no rosto.

Quando a sombra da tarde atinge os degraus, ele diz: “São cinco horas.” Assim que me levanto, Cora aparece à porta: diz que chegou a hora de irmos embora. Anse procura os sapatos. “Ora, Mr. Bundren”, diz Cora, “não se levante agora.” Ele calça os sapatos, com dificuldade, o que sempre lhe acontece, pois pensa que não tem forças para nada, mas, assim mesmo, insiste. Quando entramos no corredor, ouvimos os sapatos arrastarem-se no chão como se fossem de ferro. Dirige-se à porta do quarto onde ela está, piscando os olhos, como quem espera encontrá-la de pé, talvez numa cadeira ou talvez varrendo o chão, e olha, porta adentro, com aquela sua atitude de surpresa com que sempre a olhou, e sempre a encontra na cama, todas as vezes, e Dewey Dell ainda maneja o leque. Ele para ali, como se não quisesse mover-se, ou coisa que o valha.

“Bem, acho que é melhor a gente se apressar”, diz Cora. “Tenho de dar de comer às galinhas.” Além disse, vai chover. Nuvens como essas não enganam, e o algodão recebe todos os dias as bênçãos do Senhor. Mais um problema para ele. Cash ainda aplaina as tábuas. “Se é que não precisam de nós...”, diz Cora.

“Anse nos conhece”, eu digo. Anse não nos olha. Olha ao redor, piscando, naquela sua maneira surpreendida, como se fosse a primeira vez, e, ainda mais, como se a sua surpresa o assombrasse. Ah, se Cash trabalhasse com o mesmo empenho no meu celeiro. “Eu disse a Anse que provavelmente não haverá necessidade de nada”, digo. “Pelo menos, espero que não.” “Ela não pensa em outra coisa”, diz ele. “Acho que está decidida a ir.” “É o que nos espera, a todos nós”, diz Cora. “Que Deus não nos abandone.” “Eu me referia àquele milho”, digo. E volto a garantir-lhe que o ajudarei, estando ela doente e tudo isso. Como a maior parte das pessoas desta região, já o ajudei tanto que não posso parar agora. “Queria colher o milho hoje”, ele diz. “Mas parece que não consigo pensar em nada.” “Talvez ela aguente até você recolher o milho”, cru digo. “Deus queira”, diz Cora, Ah, se Cash trabalhasse assim, com todo o cuidado, no meu celeiro. Ele ergue a vista quando passamos. “Não sei se posso trabalhar para você esta semana”, diz. “Não há pressa”, digo. “Vá quando puder.” Subimos na carroça. Cora põe a caixa com os bolos no colo. É certo que vai chover. “Não sei o que vai ser dele”, diz Cora. “Juro que não sei.” “Pobre Anse”, digo. “Ela forçou-o a trabalhar durante trinta anos. Acho que está cansada.” “E tenho a impressão que ela o perseguirá por mais trinta anos”, diz Kate. “Se não for ela, Anse arranjará outra - antes da colheita do algodão.” “Creio que, agora, Cash e Darl podem casar”, diz Eula. “Esse pobre rapaz”, diz Cora. “Esse pobrezinho.” “E que me diz de Jewel?”, diz Kate. “Também pode casar”, diz Eula. “Uhm”, diz Kate. “Acho que ele quer. Acho que sim. Mas existem por aqui muitas moças que não gostariam de ver Jewel amarrado. Bem, elas não precisam se preocupar.” “Puxa, Kate”, diz Cora. A carroça começa a chiar. “O pobrezinho”, diz Cora.

Sem dúvida vai chover esta noite. Sim, senhor. Uma carroça que chia é sinal de tempo excessivamente seco. Especialmente quando se trata de uma Birdsell. Mas dá-se um jeito. Tenho certeza.

“Ela devia ficar com os bolos, já que fez a encomenda”, diz Kate.
William Faulkner, "Enquanto agonizo"

O poder da poesia

Tem sido privilégio de nossa época – entre guerras, revoluções e grandes movimentos sociais – desenvolver a fecundidade da poesia até limites insuspeitados. O homem comum tem podido confrontá-la de maneira que fere ou é ferida, seguramente na solidão, seguramente na massa montanhosa das reuniões públicas.

Nunca pensei, quando escrevi meus primeiros livros solitários, que com o passar dos anos me encontraria em praças, ruas, fábricas, salas de aula, teatros e jardins, dizendo meus versos. Percorri praticamente todos os rincões do Chile, derramando minha poesia entre a gente de meu povo.


Contarei o que me aconteceu na Vega Central, o mercado maior e mais popular de Santiago do Chile. Chegam ali ao amanhecer os infinitos carros, carretas, carroças e caminhões que trazem os legumes, as frutas, os comestíveis, de todas as chácaras que rodeiam a capital devoradora. Os carregadores – uma comunidade numerosa, mal paga e em geral descalça – pululam pelos cafés, albergues noturnos e tascas dos bairros próximos à Vega.

Alguém veio me buscar um dia em um automóvel e entrei nele sem saber exatamente aonde nem para o que ia. Levava no bolso um exemplar de meu livro España en el corazón. Dentro do carro me explicaram que estava convidado para dar uma conferência no sindicato de carregadores da Vega.

Quando entrei na sala desarrumada senti o frio do Nocturno de José Asunción Silva, não só pelo avançado do inverno como também pelo ambiente que me deixava atônito. Sentados em caixotes ou em improvisados bancos de madeira, uns cinquenta homens me esperavam. Alguns levavam à cintura um saco amarrado à maneira de avental, outros se cobriam com velhas camisetas remendadas e outros desafiavam o frio mês de julho chileno com o torso nu. Sentei-me detrás de uma mesinha que me separava daquele estranho público. Todos me olhavam com os olhos negros e estáticos do povo de meu país.

Lembrei-me do velho Lafferte. A esses espectadores imperturbáveis que não movem um músculo da cara e olham de forma constante, Lafferte designava com um nome que me fazia rir. Certa vez no pampa salitreiro me disse:

– Olha lá no fundo da sala, apoiados na coluna, os muçulmanos estão nos olhando. Só lhes falta o albornoz para serem iguais aos impávidos crentes do deserto.

Que fazer com este público? De que podia lhes falar? Que coisa de minha vida poderiam lhes interessar? Sem conseguir decidir nada e escondendo a vontade de sair correndo, tomei o livro que levava comigo e disse:

– Há pouco tempo estive na Espanha. Havia ali muita luta e muitos tiros. Ouçam o que escrevi sobre aquilo.

Devo explicar que meu livro España en el corazón nunca me pareceu um livro de compreensão fácil. Tem uma aspiração à claridade mas está empapado pelo torvelinho daquele grande e múltiplo sofrimento.

O certo é que pensei ler umas poucas estrofes, acrescentar umas poucas palavras e me despedir. Mas as coisas não aconteceram assim. Ao ler um poema atrás do outro, ao sentir o silêncio como de água profunda em que caíam minhas palavras, ao ver como aqueles olhos e sobrancelhas escuras seguiam intensamente minha poesia, compreendi que meu livro estava chegando a seu destino. Continuei lendo mais e mais, comovido eu mesmo pelo som de minha poesia, sacudido pela magnética relação entre meus versos e aquelas almas abandonadas.

A leitura durou mais de uma hora. Quando estava para me retirar, um dos homens se levantou. Era dos que levavam o saco amarrado ao redor da cintura.

– Quero lhe agradecer em nome de todos – disse em voz alta. – Quero lhe dizer, além disso, que nunca nada nos impressionou tanto.

Ao terminar estas palavras explodiu num soluço. Outros vários também choravam. Saí à rua entre olhares úmidos e apertos de mãos rudes.

Pode um poeta ser o mesmo depois de ter passado por estas provas de frio e fogo?

Pablo Neruda, "Confesso que vivi"