quinta-feira, outubro 17

O leitor

 


Noite

À noite era um pouco melhor. Podia passar cuidadosamente as mãos pela realidade, alisando-a para a observar com a esperança de, um dia, obter dela uma perspectiva geral, como se examinasse uma tapeçaria inacabada e multicolor cujo padrão oculto e intrincado poderia porventura deslindar, mais cedo ou mais tarde. No silêncio noturno, recordava-se das vozes que ouvira durante o dia e, com um pouco de paciência, desemaranhava-as umas das outras como fios de um novelo. Podia pensar com toda a calma nas palavras, sem temer o aparecimento de novos termos antes que a noite terminasse. Naquela fase da sua vida, a noite só com muita dificuldade apartava os dias, e se abrisse com um sopro um buraco nas trevas – como se desembaciasse uma vidraça coberta de gelo –, a manhã penetraria nos seus olhos muitas horas antes do tempo devido.

Tove Ditlevsen, "Os Rostos"

Os óculos

O velho e austero doutor Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, tem uma espinhosa missão a cumprir junto da pálida e formosa Clarice... Vai examiná-la: vai dizer qual a razão da sua fraqueza, qual a origem daquele depauperamento, daquela triste agonia de flor que murcha e se estiola.

A bela Clarice!... É casada há seis meses com o gordo João Paineiras, o conhecido corretor de fundos, — o João dos óculos —, como o chamam na Praça por causa daqueles grossos e pesados óculos de ouro que nunca deixam o seu forte nariz de ventas cabeludas. Há seis meses ela míngua, e emagrece, e tem na face a cor da cera das promessas de igreja — a bela Clarice. E — ó espanto! — quanto mais fraca vai ficando ela, mais forte vai ficando ele, o João dos óculos, — um latagão que vende saúde aos quilos. Assusta-se a família da moça. Ele, com seu imenso sorriso, vai dizendo que não sabe... que não compreende... porque, enfim, — que diabo! — se a culpa fosse sua, ele também estaria na espinha...

E é o velho e austero Dr. Ximenes, um dos mais sábios professores da Faculdade, um poço de ciência e discrição, quem vai esclarecer o mistério. Na sala, a família ansiosa espia com rancor a gorda face do João impassível. E na alcova, demorado e minucioso exame continua.

Já o velho doutor, com a cabeça encanecida sobre a pele nua do peito da enferma, auscultou longamente os seus pulmões delicados: já, levemente apertando entre os dedos aquele punho macio e branco, tateou o pulso, tênue como um fio de seda... Agora, com o olhar arguto, percorre a pele da bela Clarice — branca e cheirosa pele — o colo, a cinta, o resto... De repente — que é aquilo que o velho e austero doutor percebe na pele, abaixo... abaixo... abaixo do ventre?... Leves escoriações, quase imperceptíveis arranhaduras avultam aqui e ali vagamente... nas coxas...

O velho e austero doutor Ximenes funga uma pitada, coça a calva, olha fixamente os olhos da sua doente, toda alvoroçada de pudor:

— Isto que é, filha? Pulgas? Unhas de gato?

E a bela Clarice, toda de confusão, enrolando-se no penteador de musselina como numa nuvem, balbucia, corando:

— Não! Não é nada... não sei... isto é... talvez seja dos óculos do João...
Olavo Bilac

O corvo de Mizzaro

Certos pastores desocupados, galgando um dia as montanhas de Mizzaro, surpreenderam, no ninho, um enorme corvo que estava chocando os ovos, pacificamente...

— Ó basbaque, que fazes aí? Vejam só: chocando os ovos! Isso é serviço de tua mulher, basbaque!

Não é de crer que o corvo deixasse de dar as suas razões; deu-as, e numa linguagem de corvo, gritando. Contudo, ninguém o ouviu. Os tais pastores levaram o dia inteiro torturando-o com as suas pilhérias, até que um deles resolveu levá-lo consigo para a aldeia. Mas no dia seguinte, não sabendo o que fazer deste corvo enorme, dependurou-lhe, como lembrança, um guizo de bronze ao colo e o libertou de novo:

— Goza!

Só mesmo o corvo é que poderá saber a impressão que lhe causou aquele guizo sonoro, porque o arrastou consigo para o céu. Vendo-o voar, voar amplamente, cada vez mais alto, dir-se-ia que ele estivesse satisfeito, já agora esquecido do ninho e da mulher.

— Dim dimdim, dim dimdim...

Os camponeses que trabalhavam debruçados sobre a terra, ouviam aqueles guizos e erguiam o pescoço; olhavam aqui, ali, pela planície imensa que se estendia sob o incêndio do sol:

— Que é que está tocando? De onde vem esse som?

Mas se não havia vento, de que igreja distante podia chegar até eles esse bimbalhar festivo?

Supunham tudo menos que fosse um corvo no azul do céu.

— Espíritos! — pensou Ciché, que trabalhava sozinho numa herdade, atento a desencavar conchas em torno de alguns frutos de amendoeira, a fim de enchê-las de estrume. E fez-se o sinal da cruz. Porque ele acreditava piamente na existência de espíritos. Fizera experiências em outras ocasiões. E até ao voltar, certa noite, do campo, pela estrada que margeia as Fornaci extintas, que era onde eles moravam, no dizer de todos, ouviu que o chamavam. — Ciché! Ciché! E sentiu que os cabelos se eriçavam sob o boné.

Aquele bimbalhar ele o ouvira a princípio, à distância, depois mais perto, e depois novamente à distância. Em redor não havia viva alma: campo, árvores e plantas, que não falavam, sentiam, que com a sua impassibilidade tinham aumentado o seu espanto. À hora da merenda, que consistia num pedaço de pão e numa cebola, que trouxera de casa e que deixara dependurada numa sacola, perto dele, junto com o paletó, a uma árvore de oliveira, não encontrou a cebola; encontrou apenas o pedaço de pão. E foi assim durante três dias em seguida.

Não disse nada a ninguém, porque sabia que quando os Espíritos começam a atormentar uma pessoa, ai de quem se lamente! Fazem pior.

— Não me sinto bem — respondia Ciché, ao voltar de tarde para casa, à mulher que lhe perguntava a razão daquele seu aspecto transtornado.

— Mas, ao menos, coma! — observava-lhe a companheira, vendo que ele engolia duas ou três colheradas de sopa, uma após outra.

— Sim, como! — Mastigava Ciché, em jejum desde a manhã e com ódio por não poder abrir-se com a esposa.

Até que por todo o campo se espalhou a notícia daquele corvo ladrão que andava tocando o guizo pelo céu.

Ciché teve a desdita de não rir do caso como os demais camponeses, que também andavam com apreensões.

— Prometo e juro — disse ele — que me pagará caro a brincadeira!

E que fez? Trouxe na sacola, junto com o pedaço de pão e a cebola, quatro favas secas e quatro costuradas a barbante. Assim que chegou à herdade, tirou selim ao asno e o soltou pelo campo, livremente. Ciché falava com o asno como se fala com um cristão; e o asno, ora erguendo esta, ora erguendo aquela outra orelha, de quando em quando rugia, como se lhe respondesse a seu modo.

— Vá, Chico, vá — disse-lhe nesse dia Ciché. — E esteja atento, porque nos divertiremos!

Furou as favas; amarrou as quatro costuradas a barbante no selim, e as colocou em terra sobre a sacola. Depois afastou-se para começar a trabalhar.

Passou uma hora; passaram duas. De quando em quando, julgando ouvir o som da campainha pelo ar ele erguia o corpo e aprumava as orelhas. Nada. E continuava de movo a carpir.

Chegou a hora da ceia. Perplexo, sem saber se havia de ir logo ao pão ou esperar ainda um pouco, Ciché por fim se decidiu; vendo, porém, tão bem preparada a cilada, resolveu não mexer nela. Nisto, ouviu claramente um tinido distante. Ergueu a cabeça:

— Ei-lo!

E quieto e inclinado, com o coração que lhe pulsava violentamente, deixou o lugar e se escondeu ao longe.

Mas o corvo, como se se estivesse deliciando com o som da campainha, voava, voava, revoava, sempre no alto, cada vez mais alto e não tratava de descer.

— Desconfio que me está vendo — pensou Ciché; e ergueu-se para ir esconder-se mais longe.

O corvo continuou voando sem dar demonstrações de que pretendia descer. Ciché estava com fome, mas mesmo assim não queria dar-se por vencido. Pôs-se de novo a carpir. Espera, espera, e o corvo sempre no alto, como se estivesse fazendo de propósito. Esfomeado, com o pão a dois passos dali, meus senhores, e sem poder pegá-lo! Ciché remoia-se todo por dentro, mas resistia, indignado, obstinado.

— Hás de descer! hás de descer! Também tu hás de ter fome!

O corvo, entretanto, do alto do céu, com o som da campainha, parecia que lhe respondia irônico:

— Nem tu nem eu! Nem tu nem eu!

Passou-se assim o dia. Ciché, exasperado, desafogou-se com o asno, tornando a meter-lhe o selim, de que pendiam, como um adorno de novo gênero, as quatro favas. E enquanto caminhava, mordeu indignado aquele pão, que fora o seu suplício o dia inteiro. A cada mordida, soltava um palavrão para o corvo: — carrasco, ladrão, traidor... — porque não se deixara prender na cilada.

Mas no dia seguinte tudo correu bem.

Armada a cilada das favas com o mesmo cuidado, pusera-se a trabalhar quando ouviu um bimbalhar convulso ali perto e um grasnar desesperado, entre um furioso sacudir de asas. Foi ver o que era. O corvo estava ali, preso pelo barbante que lhe saía do bico e o estrangulara.

— Ah, caíste? — gritou-lhe ele, aferrando-o pelas asas enormes. — É boa a fava? Agora é a minha vez, besta feroz! Vais ver.

Cortou o barbante e, para começar, aplicou dois piparotes na cabeça do corvo.

— Este pelo medo e este pelo jejum!

O asno que não estava muito disposto a arrancar as ervas do caminho, ouvindo grasnar o corvo saiu correndo, em disparada, assustado. Ciché fê-lo parar com um grito e de longe lhe mostrou a besta negra:

— Ei-lo aqui, Chico! Prendemo-lo! Amarrou-o pelos pés, dependurou-o na árvore e voltou ao trabalho. Enquanto carpia, pôs-se a pensar na desforra. Ter-lhe-ia cortado as asas, para que não pudesse nunca mais voar; depois o entregaria aos filhos e as crianças da vizinhança para que se divertissem à custa dele. E ria, ria, entre dentes.

Ao anoitecer, colocou o selim no asno, desamarrou o corvo e prendeu-o pelos pés ao rabicho do asno; cavalgou e se pôs a caminho de casa. A campainha amarrada ao pescoço do corvo, começou a tilintar. O asno eriçou as orelhas e se pôs em pé.

— Vamos! — gritou-lhe Ciché, dando um soco na cabeça do animal.

E o asno se pôs de novo a caminho, não muito conformado com aquele som insólito que acompanhara o seu lento trotear sobre a poeira da estrada.

Ciché começou a pensar que desse dia em diante ninguém mais havia de ouvir bimbalhar no céu o corvo de Mizzaro. Tinha-o ali e não dava mais sinal de vida.

— Que fazes? — lhe perguntou, virando-se e dando-lhe uma chicotada. — Estás dormindo?

O corvo, em resposta ao látego:

— Cráh!

Diante dessa voz inesperada, o asno estacou de golpe, com as orelhas estendidas.

Ciché explodiu numa risada.

— Vamos, Chico! De que te assustas?

E com a corda bateu na orelha do asno. Pouco depois, de novo, repetiu a pergunta ao corvo:

— Adormeceste?

E uma chicotada mais forte. E o corvo, por sua vez, mais forte ainda:

— Cráh!

Mas desta vez o asno deu um salto e saiu em disparada. Em vão Ciché, com toda a força dos braços e das pernas, procurou detê-lo. O corvo, sacudido naquela corrida desenfreada, começou a grasnar como um desesperado: e quanto mais grasnava tanto mais o asno corria, espantado.

— Cráh! Cráh! Cráh!

Ciché gritava, por sua vez, puxava a rédea, puxava, mas já agora as duas bestas pareciam enfurecidas pelo espanto que se incutiam mutuamente, uma grasnando e a outra fugindo. Ecoou, durante certo tempo, dentro da noite, a fúria daquela corrida desenfreada; ouviu-se depois um formidável tombo, e mais nada.

No dia seguinte. Ciché foi encontrado, no fundo de um barranco, esfacelado, sob o asno também esfacelado: uma carniça que fumegava sob o sol, entre nuvens de moscas.

O corvo de Mizzaro, negro no azul da formosa manhã, soava de novo pelos céus a sua campainha, livre e feliz.
Luigi Pirandello

Ler às pilhas é o melhor

Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval, enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.

Imagino-me no buraco, em cima de uma cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção.

É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.

Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos, sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.

Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.

Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá – sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados, para não serem contaminadas pelo chão.

Na leitura – se é que quer mesmo competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se encontra o raio do livro é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de busca nas mãos vazias.

O ser humano lida bem com o número oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os apetecimentos mais frequentes.

Depois, há a disposição das pilhas: a pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser reavaliada, para ver quem merece lá ficar.

Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa. Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que mais vezes irá pegar.

Claro que as pilhas são temporárias. São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.

quarta-feira, outubro 16

Exercício


 

O lampejo

O poema não voa de asa-delta

não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.

Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.

O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.

O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.
Ferreira Gullar

O vento noroeste

Ou muito me engano (e nesse caso corrija-me o Gabinete de Meteorologia) ou foi mesmo o Vento Noroeste que se pôs desde dez horas de anteontem a soprar sobre a cidade, secando o coração das gentes. O vento desceu subitamente do céu da madrugada, onde brilhava, numa lucidez de entreloucura, grande como uma lágrima da noite, a desvairada estrela da manhã. Primeiro numa rajada fria, que trazia na epiderme farfalhante um pouco do éter das altas regiões de onde chegava. E logo tornou-se morno, depois aqueceu. E partiu à solta, crestando a face lisa da aurora, fazendo crepitar as folhas das árvores, evaporando o mar que inaugurou de verde o dia nascente. A mim secou-me os olhos, a boca e a alma perseguida de insônia, e me tornou áspero o lençol, e me trouxe lembranças secas de vida. Assisti ao dia nascer como se visse um diamante cortar vidro e ficasse inelutavelmente a respirar a poeira implacável do carvão remanescente.

Depois dormi e sonhei. Mas meus sonhos tinham também uma secura de cal. Vi se estorcer em chamas o antigo cadáver de uma moça que morreu tísica e se chamava Alice. Vi homens se arrastando atrás de mulheres sobre um chão de giletes. Vi troncos musculares de fícus arfando em dispnéias vegetais. Vi se queimarem atmosferas enormes em clarões de cloretila. Depois acordei com a boca seca e uma sede de chupar limão verde.

De saída para o Centro, pude sentir o mal que o Noroeste, esse Leviatã dos ventos, estava fazendo à cidade. Na esquina de minha casa tinha desaparecido uma criança, que a mãe buscava em gestos de Guernica. No ônibus (pegara um marcado "expresso") várias pessoas tinham-se esquecido que esses carros são diretos e quiseram saltar em Copacabana, mas o chofer não deixou porque é proibido. A palavra "proibido" ganhou uma tal secura, ao Vento Noroeste, que por um instante eu tive a visão do homem carioca afogado em cinzas. Não podia saltar onde queria, mesmo pagando. A companhia de ônibus não deixava.

Precisaria pegar outro ônibus, ou então um lotação, para voltar. Nesse meio tempo já tinham saído várias discussões e na avenida Atlântica houvera um desastre com dois ônibus vermelhos da linha Ipanema: um deles chegara até a beira do passeio, quase a cair na areia, e tinha uma cara sedenta, como se tivesse querido se afogar. Na Glória, a carcaça de outro ônibus que ardera amontoava-se no asfalto. Aquilo lembrou-me, em grande, um esqueleto incinerado que vi no cinema, saindo de um forno, num dos campos de concentração nazista. De vinda para a redação, vi dois homens brigando corpo a corpo. Agrediam-se como cães danados e depois um pegou uma pedra para arrebentar a cabeça do outro, e só por um acaso não acertou.

E agora, escrevendo esta crônica que é a seca expressão da verdade, eu vejo que o Noroeste está querendo secar até a tempestade que se anuncia na tarde erma. Não, que o Vento Noroeste não seque a tormenta que há de desafogar a cidade. Vinde, trovões mensageiros; rasgai o céu, relâmpagos! Que as águas de um novo dilúvio desabem sobre a cidade angustiada e encharquem a terra de lama e as árvores de seiva. Que desçam os raios e sangrem o flanco flácido dos morros e que se rejuvenesça o coração dos homens. Que o ar se rompa em rajadas frescas e se repousem os cabelos das mulheres, frementes de eletricidade.

Que deixem de ranger os papéis da burocracia, sacados pelo Vento Noroeste. Que pare, que pare imediatamente o sopro desta bisnaga de ar quente a soprar sobre a dentina dolorida da cidade. Que venha o Azul, o Azul, o Azul, o Azul!

Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

Uni, duni, tê

Nunca me dei bem com os números. Primeiro, apanhei nas aulas de matemática durante toda a vida escolar. Agora, sofro para decorar telefones, senhas, datas e, principalmente, apartamentos. Batata: chego diante de um prédio, sei que é ali o endereço em que devo ir, mas não decoro o bendito número do apartamento.


Quando há porteiros, o problema pode ser sanado com uma pequena dose de constrangimento. Digo o nome do morador, confesso que esqueci o apartamento dele, recebo um pouco de boa vontade e consigo ser anunciado. Pior é quando fico diante daquele painel de botões, todos com os mesmos números: 101, 102, 103 etc. Na base da sorte, lembro o andar. Também parto para deduções: é nos fundos e, por convenção, os primeiros números contemplam os apartamentos de frente. Logo, é 505, 506, 507 ou 508. Uni, duni, tê…

A violência urbana entra como fator complicador. Quando escolho o apartamento na base do palpite, e erro, quem está ao interfone fica muito desconfiado. Menos quando é uma idosa, que abre a porta sem medo. Mas aí corro outro risco: estou dentro do prédio, mas ainda não sei qual é o apartamento. Em edifícios antigos tudo é mais fácil – as portas já estão repletas de diferenças. Ou tem uma samambaia, ou um vaso com espada de Espada de São Jorge, ou o modelo da grade é diferente, ou tem aquele capacho peculiar… Pior são os edifícios novos e seu padrão rígido de design, tão mais harmônico quanto impessoal. Aí é torcer para que o amigo seja judeu e tenha à direita de sua porta o Mezuzá.

Minha redenção chegou em forma de tecnologia: telefone celular. Em sua agenda, posso colocar nome, números e endereço. Ou basta ligar para o morador e avisar que estou ali na rua, já defronte ao prédio. O celular ainda conta com uma vantagem adicional, que é a de não precisar mais decorar o número do sujeito. Digito o nome e ele já sabe (agora mesmo que desaprendi os telefones dos amigos). Se eu perder o aparelho ou o chip, estou frito.

Em tudo sou diferente dos profissionais de portaria. Para eles, decorar os números é questão de qualidade. Os apartamentos passam a ser uma espécie de sobrenome dos moradores. Se o jardineiro perguntar quem entrou agora mesmo, o porteiro responderá que foi o seu João do 403. Quem? O esposo da dona Maria Rita do 403. Ah, o pai do Julinho do 403! Nem Cunha, nem Santos, nem da Silva. A família (incluindo o cachorro) passa a ser os do 403. E não apenas para consumo interno: se um prestador de serviços perguntar quem é o síndico, dirão o nome do seu Ivo do 607.

Saudade do tempo em que a maioria das pessoas com quem eu me relacionava habitava casas localizadas em bairros. Bastava ir uma única vez e já estaria decorado. E, se fosse o caso de referir, dizia: o Roberto, da casa verde, de esquina. Ou aquela do telhado alto, com janelas brancas, muro marrom. Nada de números, apenas imagens. Muito mais humano! Afinal, quando estou diante do porteiro especulando um apartamento e o morador está em dúvida de quem seja eu, ele não informa o RG. Sempre escuto: é um rapaz magrinho, branquinho, assim meio calvo…

Rubem Penz

Sobre livros e leitura

Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe

Livro aberto

Em Matéria Escrita, Gabriel Orozco diz que “um livro fechado não é arte”. De facto, é a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel (ou mais vulgarmente em papel). Podemos interpretar uma pintura ou uma música durante ou após o processo de fruição, que é um mecanismo fundamental da arte (a abertura à interpretação), mas o objeto artístico é-nos oferecido sensivelmente e de uma forma completa na sua existência física. O livro não. Sem leitura não existe. Aliás, com a notação musical temos um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e, preferencialmente, executada.

Massimo Recalcati, em A Libro Aperto, escreveu o seguinte: “Um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do “aberto”. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”


Teoria da cesta

A caça tem uma narrativa que culmina com a morte — bem como a guerra —, resumida em sangue e morte e bravura e crueldade. É fácil transformar uma caçada numa épica história de heróis e grandiosos feitos. A recolha de bagas, folhas, frutos e raízes não. O herói regressa suado e sujo com um mamute às costas ou com uma baleia-branca debaixo do braço, enquanto o recoletor passou o dia a apanhar umas bagas, umas raízes, umas folhas, nada de muito hollywoodesco ou aparentemente cativante, olha, apanhei mais um morango silvestre, e mais outro e mais outro e mais outro. E, no entanto, Ursula k. Le Guin, ao refletir sobre isso, desenvolveu uma teoria literária, a teoria da cesta, uma abordagem alternativa à narrativa convencional do herói e da sua jornada (jornada essa que se baseia sobretudo na ideia de um protagonista individual, o tal herói, sendo este secundado por alguns amigos que servem apenas para assegurar o sucesso do primeiro na sua demanda épica). Na teoria da cesta valoriza-se a cooperação e a contribuição de vários personagens para a narrativa, observam-se as várias interações sociais e comunitárias, as conversas, os pequenos episódios, formando uma teia, um tecido, mais do que uma seta. A cesta é rizomática, não é uma arma que se dispara. Enquanto o herói destrói, se for preciso, meio mundo para assegurar a vitória e uma princesa ou outra, arrasando pelo caminho uma Tróia qualquer, numa trama cheia de relações hierarquizadas, a teoria da cesta, em contrapartida, centra-se numa narrativa de sustentação, onde a cesta é vista como um símbolo da coleta e partilha de recursos para o bem da comunidade, em oposição à conquista individual. Na teoria da cesta não se matam dragões: enfatiza-se uma relação mais gentil ou harmoniosa com a natureza e seus recursos, não havendo muito sangue a correr. E, contudo, este contexto não é isento de tensão, nem tudo é um mar de bagas quando se vive a recolhê-las. A diferença é que há menos espalhafato, os seus eixos são mais discretos, por vezes insidiosos: são os venenos de plantas e cogumelos, de sapos ou escorpiões, são as picadas mortais de insetos, são as doenças, e a contraparte psicológica de tudo isto, a intriga, a mentira, o ciúme, o insulto, a traição, a solidão. O herói também poderá relacionar-se com isto, mas resolve os problemas de forma diferente, por exemplo, prendendo Heitor ao carro de combate, arrastando-o pelo campo de batalha.

Como Darwin tratava os livros e a poesia

Darwin, quando se encontrava perante um calhamaço, não tinha qualquer pejo em rasgá-lo pela lombada, para que fosse manejável, isto é, dividi-lo em dois tomos mais finos, menos pesados. Alem disso, também era capaz de arrancar secções que não lhe interessavam e deitá-las fora. Eu nunca fui capaz de magoar um livro dessa maneira, nem sequer sublinhar, que já me parece uma ofensa suficientemente grande, apesar de ser sensível ao desapego pelo objeto material que Darwin evidenciava.

Há ainda um outro dado mais ou menos inesperado no que concerne aos livros e à leitura. Na sua autobiografia, escrevendo sobre a sua relação com a poesia, Darwin confessou: “Não aguento ler uma linha de poesia. Tentei recentemente ler Shakespeare e achei aquilo tão insuportavelmente aborrecido que me agoniou.”
Afonso Cruz 

terça-feira, outubro 15

leitura a qualquer tempo

 


A vida

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já é Natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida...

Quando se vê, passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado..
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava
o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca
dourada e inútil das horas...
Seguraria o meu amor, que está a muito à minha frente, e diria
EU TE AMO...
Dessa forma, eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido
à falta de tempo.

Não deixe de ter alguém ao seu lado
por puro medo de ser feliz.

A única falta que terás será desse tempo que infelizmente...
não voltará mais.
Mario Quintana

Com ferro será ferido

Todo provérbio se apresenta como uma espécie de amostra grátis da verdade.

***

Toda vez que você é vítima de um desses acidentes do dia a dia, como cair da escada ou escorregar no sabonete, ouve aquela voz triunfalmente punitiva: eu não falei? É um provérbio.

***

Todo provérbio, se ainda não é, tende a ser irremediavelmente chato.

***

A sorte do cágado é ser proparoxítono.

***

Se você de repente for atormentado por uma dessas dúvidas crudelíssimas, como saber se é melhor ir trabalhar de carro, de ônibus ou de metrô, siga aquele velho conselho: procure o provérbio mais próximo.

***

Os cachorros do meu bairro não se parecem com aqueles do provérbio. São cachorros só, não cães, e, mesmo que por aqui viesse a passar uma caravana, não acredito que chegassem a ladrar. No máximo latiriam.

***

Cão que ladra não morde. O que se dizer de um poeta choramingas? O homem é o único animal capaz de criar lágrimas postiças.

***

Um provérbio que se preze só sai à chuva se quiser se molhar.

***

Provérbio velho não mete a mão em cumbuca.

***

Mentiras têm as pernas curtas e mau hálito.

***

O provérbio lê a bula e sentencia: há males que não têm remédio.

***

Tão cética anda a humanidade que um dia desses um provérbio de cavanhaque branco e bengala, com um pássaro na mão e dois voando, foi obrigado a mostrar o crachá.

***

É um provérbio histórico, durão, que sobreviveu à gripe espanhola e à Grande Depressão.

***

Quem mente só o suficiente, mente suficientemente.

A última entrevista de Jorge Luis Borges


“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção.”


Na entrevista, que foi concedida em julho de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila, Jorge Luis Borges fala sobre a infância, a cegueira, a morte. Afirma que o fracasso e o sucesso são impostores. E traduz o seu amor pela literatura em uma frase: “Se recuperasse a visão eu não sairia de casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim”. Borges morreria menos de um ano depois de ter concedido a entrevista.

Fale-me de sua infância, de suas memórias…

Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e pelos expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados.

Das leituras da infância, o que mais lhe impressionou?

“As Mil e Uma Noites”. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler quando criança. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosa­mente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por que quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava, dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.

E as lembranças dos amores?

Agora estão menos vivas. Lem­bro-me de uma frase muito triste de Emerson: “Life itself becomes a quotation”. “A própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia de versos em tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando. Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia.

Como é a cegueira?

Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.

Nunca ficou desesperado por causa da cegueira?

Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.

O sr. já pensou em suicídio?

Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.

Pode recitar?

Não me lembro. Tenho um poema que se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois rapazes, um argentino e um inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma superioridade numérica grande.

Quais foram as grandes sensações de sua vida?

São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.

Por que?

Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives in me”. “O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou também o primeiro homem”.

O sr. leu muitos de livros?

Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.

Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito?

Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.

O sr. leu pouco, mas sua vida é a literatura. A realidade para o sr. não importa muito. O que importa são as sensações?

Se eu tivesse interesse na realidade europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.

Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?

Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.

Não o conhece?

Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.

Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o sr. falasse do amor.

Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.

Quer dizer que o sr. acha que o casamento mata mais que o amor?
Três anos de casamento foram um pouco onerosos.

Fale-me de seu sentimento por Buenos Aires.

Mudou tanto a cidade… Já não a conheço… Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com terraços, pátios, campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha mãe se lembrava des­ta rua sem calçamento.

Mas o sr. é um homem universal, tem todos os sangues…
Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Mon­corvo, uma cidadezinha de Trás-os-Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo. Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.

A sua genialidade vem de que lado?
Não tenho genialidade de ne­nhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino.

Faz a diferença


Os livros mudam o destino das pessoas
Carlos Maria Dominguez

A caminho de Assunção

Meu dólmã azul-ferrete de alamares brancos estava puído nos punhos e na gola. Minhas botas não tinham saltos, e estavam furadas nas solas. O punho da minha espada partira-se. Os soldados tinham os pés descalços e os uniformes remendados pelas mãos das chinas que seguiam voluntariamente nosso exército ou eram arrebatadas nos povoados que atravessávamos a caminho de Assunção.
O coronel Procópio, comandante do 2º Regimento de Cavalaria, recusava-se a nos deixar vestir roupas civis.

Sabemos que o próprio General-Comandante veste sobre o seu uniforme um poncho azul de forro vermelho. E que oficiais e praças gaúchos do 5º Regimento se vestem de bombachas, ponchos e chapéus de vaqueiro, disse Procópio, na reunião do Estado-Maior.

Procópio era um homem magro, de testa pontuda e queixo fino. Passava as noites lendo na barraca. Diziam que ele não andava bom da cabeça.

Não somos um bando de peões de estância. Somos os Dragões Reais de Minas. Nosso regimento foi criado por Carta Régia.

Quando Procópio gritava, sua voz ficava áspera e rouca.

Estávamos em dezembro. Havíamos acabado de atravessar o Chaco e metade do nosso regimento fora dizimado pelo cólera, o beribéri e o tifo. Em meio à marcha rápida para o sul, bivacamos perto das coxilhas de Vileta. O acampamento fervilhava de homens e material de guerra. Íamos atacar Avaí.

Ouvia-se, ao longe, uma paródia obscena do hino da Cavalaria, cantada pelos gaúchos do 5º.

Partimos de madrugada. Raiou um dia de céu azul e nuvens muito brancas. Ao cruzar um desfiladeiro sombrio ouvimos o troar das bocas de fogo inimigas. O alferes Rezende, que crescera comigo em Santo Antônio do Paraibuna, caiu com o pé preso no estribo, a cabeça uma polpa sangrenta, e foi arrastado pelo seu cavalo em disparada até desaparecer num capinzal alto. De entre a macega, os mosquetões inimigos atiravam sem parar. O céu começou a escurecer e logo uma chuva grossa desabou sobre o campo de batalha.

Procópio ordenou uma carga sobre as baterias do flanco esquerdo. Atravessamos um capoeirão, um chão coberto de mata rala. Com as lanças em riste, investimos sobre a artilharia inimiga.

Carreguem, carreguem!, bradava Procópio.

O ruído das patas dos cavalos em galope acelerado e dos nossos gritos era tão forte quanto o estrondo dos canhões.

O primeiro que matei estava sem a barretina, os cabelos lisos, de índio, molhados pela chuva.

Muitos dos nossos, os cavalos mortos, combatiam a pé. A lâmina da minha espada brilhava lavada de sangue e chuva. Um artilheiro inimigo, um menino, agarrou meu estribo e me atacou com um facão. Decepei-lhe a mão direita, num golpe seco e hábil.

Aos poucos a luta foi cessando, apenas pequenas escaramuças ocorriam esporadicamente. O exército inimigo havia sido desbaratado.

Não se ouvia mais o estrondo dos seus canhões. Dezessete deles haviam sido capturados.

Nas ribanceiras e montes, nas macegas e capoeiras estavam caídos corpos mortos de muitos milhares de homens e animais. Saía do chão um cheiro de terra molhada e sangue e pólvora misturado com a fragrância doce da bosta dos cavalos.

O coronel Procópio e o tenente-coronel Rubião estavam mortos.

O major José Rias assumiu o comando do regimento. Os oficiais e sargentos se reuniram em torno de sua cabeça pelada pelo tifo. A pele do rosto de Rias era pálida como cera de vela de santo e seus olhos, encravados fundo no crânio, brilhavam de febre e loucura. O espírito de Procópio parecia ter entrado no seu corpo. Vamos até Assunção! Viva a Cavalaria!

Um estafeta surgiu para avisar que o General-Comandante estava passando em revista as tropas. José Rias percorreu o acampamento berrando com os homens que estavam deitados, dormindo ou apenas olhando exaustos para o céu.
A cavalo! de pé! Rias dava pontapés no rosto dos que não respondiam às suas ordens, enfiava a espada nas costelas dos recalcitrantes.

Em pouco tempo os homens montaram nos seus cavalos. Aqueles que haviam perdido as montarias perfilavam-se a pé, alguns com os arreios ao lado, a lança na mão direita usada como apoio, para não caírem ao chão de cansaço.
No meio da neblina, ao lado norte do campo, surgiu o General-Comandante cavalgando um tordilho, acompanhado de um ajudante de ordens. Vestia o poncho azul com forro vermelho, segurava as rédeas na mão esquerda e com a direita mantinha um lenço negro contra o rosto. Um tiro arrebentara seu maxilar e alguns dentes da frente. Havia manchas de sangue no seu poncho. Ele estava enganchado na sela como alguém que tivesse passado a vida inteira naquela posição. Os soldados, obedecendo ao comando de Rias, ficaram em posição de sentido.

O General imobilizou sua montaria e sem soltar as rédeas levantou a mão esquerda pedindo silêncio. Mas ouvia-se apenas o ranger do couro das selas e dos loros, o retinir das esporas e barbelas, o resfolegar dos cavalos contidos pelos freios. O General tirou o lenço do rosto e começou a falar.

Camaradas do 2º Regimento, Dragões Reais de Minas...

O ferimento da boca não permitia que ele pronunciasse as palavras corretamente. Eu dormitava sobre a minha sela e mal entendia o que ele dizia.

O velho sargento Andrade, dado como morto, esticado ao lado de uma carreta de munição, as esporas gastas de ferro enfiadas na terra estrangeira, o uniforme roto e sujo de lama, levantou-se, fez uma continência e caiu ao chão. Alguns soldados riram à socapa.

Osório parou de falar. Respondeu a continência olhando o corpo imóvel de Andrade, seu rosto meio escondido pelo lenço negro. Fez um gesto para o ajudante de ordens, esporeou o cavalo e partiu num trote curto em direção ao acampamento do 5°.
Rubem Fonseca, "O Cobrador"

segunda-feira, outubro 14

Tempos modernos

 


Perseguição da beleza

Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza. Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço. É um trabalho difícil, muitas vezes doloroso, cheio de revezes. Já passei dias e dias com as mãos na garganta apavorado que ela não volte a visitar-me. É difícil dizer o que é aquela poderosa presente ausência que nos oprime e agarra. Nunca está onde está, mas sempre um pouco mais longe, noutro sítio. Não são cores, imagens, sons, nem sequer a suave pele de uma mulher que me encantam. É o que está para além disso e que isso chama. A beleza corre o permanente perigo de a qualquer momento se desfazer em nada. É, na verdade, por completo insustentável. Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta. É impossível provar que existe. Daí a urgência, o coração a bater na boca. A perseguição da beleza é uma corrida de obstáculos sem meta de chegada. Basta o som de uma voz para rasgar futuros. Basta uma fotografia de uma mala fechada sobre uma cama para abrir horizontes. Todos os cuidados são insuficientes. É um trabalho longo preenchido de mistérios. Se se procura controlar, escapa. Se se procura guardar, esvai-se entre os dedos. Tem de ser roubada com toda a rapidez e mantida no movimento que é só dela. Se se tenta parar, fixar, já não vale a pena. O dinheiro tem certamente as suas vantagens. Uma das poucas coisas que serve para várias. E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escândalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe. Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. E depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. A tomar duche à minha frente. A irromper do nada. A primeira coisa que um qualquer fanatismo sabe que tem a fazer é demolir com a beleza. Com todo o direito, de todas as maneiras. A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima. A beleza alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta. É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.

Pedro Paixão, "O mundo é tudo o que acontece"

A criada

Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumas espinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que não era feio nem bonito, nesse rosto onde um doçura ansiosa de doçuras maiores era o sinal da vida. Beleza, não sei. Possivelmente não havia, se bem que os traços indecisos atraíssem como água atrai. Havia, sim, substância viva, unhas, carnes, dentes, mistura de resistências e fraquezas, constituindo vaga presença que se concretizava porém imediatamente numa cabeça interrogativa e já prestimosa, mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzíveis, sem correspondência com o conjunto do rosto. Tão independentes como se fossem plantados na carne de um braço, e de lá nos olhassem - abertos, úmidos. Ela toda era de uma doçura próxima a lágrimas.


Às vezes respondia com má-criação de criada mesmo. Desde pequena fora assim, explicou. Sem que isso viesse de seu caráter. Pois não havia no seu espírito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptível. "Eu tive medo", dizia com naturalidade. "Me deu uma fome", dizia, e era sempre incontestável o que dizia, não se sabe por quê. "Ele me respeita muito", dizia do noivo e, apesar da expressão emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entrava num mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. "Eu tenho vergonha", dizia, e sorria enredada nas próprias sombras. Se a fome era de pão - que ela comia depressa como se pudessem tirá-lo - o medo era de trovoadas, a vergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. "Deus me livre, não é?", dizia ausente.

Porque tinha suas ausências. O rosto se perdia numa tristeza impessoal e sem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu espírito. Os olhos paravam vazios; diria mesmo um pouco ásperos. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nada podia fazer. Só esperar. Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ninguém ousaria tocá-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de coração apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela senão desejar que o perigo passasse. Até que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordava como um cabrito recém-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seu repouso na tristeza. Voltava, não se pode dizer mais rica, porém mais garantida depois de ter bebido em não se sabe que fonte. O que se sabe é que a fonte devia ser muito antiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ninguém encontraria nada se descesse nas suas profundezas - senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão. É possível que, se alguém prosseguisse mais, encontrasse, depois de andar léguas nas trevas, um indício de caminho, guiado talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - a floresta. Ah, então devia ser esse o seu mistério: ela descobrira um atalho para a floresta. Decerto nas suas ausências era para lá que ia. Regressando com os olhos cheios de brandura e ignorância, olhos completos. Ignorância tão vasta que nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

Assim era Eremita. Que se subisse à tona com tudo o que encontrara na floresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que raízes mordera, com que espinhos sangrara, em que águas banhara os pés, que escuridão de ouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela não contava porque ignorava: fora percebido num só olhar, rápido demais para não ser senão um mistério.

Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavam constantemente da escuridão de seu atalho para funções menores, para lavar roupa, enxugar o chão, servir a uns e outros.

Mas serviria mesmo? Pois se alguém prestasse atenção veria que ela lavava roupa - ao sol; que enxugava o chão - molhado pela chuva; que estendia lençóis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e a outros deuses. Sempre com a inteireza de espírito que trouxera da floresta. Sem um pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de uma suave esperança que ninguém dá e ninguém tira.

A única marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo de comer pão. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.
Clarice Lispector, "Felicidade Clandestina"

Aldebaran

Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham - como numa paragem de autocarro.
Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara ao limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentiamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatias sanduiches de realidade.

Egito Gonçalves