quarta-feira, novembro 6

Jardim de leitura

 


Festa

Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conseguiria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem. 

Graciliano Ramos, "Vidas secas"

O papel e a tinta

Certo dia, uma folha de papel que estava em cima de uma mesa, junto com outras folhas exatamente iguais a ela, viu-se coberta de sinais. Uma pena, molhada de tinta preta, havia escrito uma porção de palavras em toda a folha.

-- Porque você não me poupou dessa humilhação? – disse, furiosa, a folha de papel para a tinta.

-- Espere! – respondeu a tinta. – Eu não estraguei você. Eu cobri você de palavras. Agora você não é mais apenas uma folha de papel, mas sim uma mensagem. Você é a guardiã do pensamento humano. Você se transformou num documento precioso!

E, realmente, pouco depois, alguém foi arrumar a mesa e apanhou as folhas para jogá-las na lareira. Mas subitamente reparou na folha escrita com tinta, e então jogou fora todas as outras, guardando apenas a que continha uma mensagem escrita.

Leonardo da Vinci, "Fábulas e lendas"

O Amante de Lady Chatterley foi proibido – e se tornou um best-seller

Até novembro de 1960, os britânicos eram impedidos de ler Lady Chatterley's Lover por uma lei que criminalizava a publicação de escritos considerados indecentes e imorais. A editora britânica, Penguin Books , queria desafiar o Obscene Publications Act imprimindo uma edição completa e sem censura do livro de DH Lawrence. O julgamento resultante simbolizou mudanças sociais que estavam borbulhando nos anos desde a Segunda Guerra Mundial, e demonstrou o abismo entre o público e aqueles que se viam como os guardiões da moral estabelecida.

Lady Chatterley's Lover foi publicado privadamente na Itália e na França no final da década de 1920, mas foi banido depois disso em vários países ao redor do mundo, incluindo os EUA, Austrália e Japão. Nos anos que antecederam o julgamento, escritores e editores na Grã-Bretanha ficaram cada vez mais preocupados com o número de livros sendo processados ​​por obscenidade. Em uma tentativa de acalmar esses medos, o Parlamento do Reino Unido introduziu uma nova Lei de Publicações Obscenas em 1959 que prometia "prever a proteção da literatura e fortalecer a lei relativa à pornografia". Esta emenda forneceu uma defesa para qualquer um acusado de publicar um "livro sujo". Permitiu que eles argumentassem que uma obra deveria ser publicada se tivesse mérito literário, mesmo que a pessoa comum achasse seu material chocante.

Lady Chatterley's Lover foi considerado controverso, pois retratava um relacionamento apaixonado entre uma mulher de classe alta, Lady Constance Chatterley, e um homem da classe trabalhadora, Oliver Mellors. O romance inclui palavrões e descrições explícitas de sexo, e retrata o prazer sexual feminino. Lawrence disse que esperava recuperar o sexo como algo aceitável na literatura. Ele queria "tornar as relações sexuais [no romance] válidas e preciosas, em vez de vergonhosas".

Em 1960, a Penguin estava pronta para testar o Obscene Publications Act. Eles escreveram ao diretor de promotoria pública (DPP) e avisaram que publicariam uma versão original do livro. Em agosto daquele ano, Reginald Manningham-Buller, o principal consultor jurídico da Coroa, leu os quatro primeiros capítulos do romance enquanto viajava em um trem-barco para Southampton. Ele escreveu ao DPP, aprovando procedimentos legais contra a Penguin. "Espero que você consiga uma condenação", disse ele. Sir Allen Lane, o fundador da Penguin Books, estava na Espanha enquanto os eventos se desenrolavam. Seus colegas o aconselharam a voltar para casa imediatamente.

O julgamento de Lady Chatterley's Lover foi o primeiro do gênero sob o novo Ato, e o cenário estava pronto para um choque entre o establishment e aqueles com visões mais liberais. Para apoiar seu caso em favor da publicação do romance, a Penguin convocou uma série de testemunhas especialistas, incluindo 35 escritores e políticos proeminentes. Entre o grupo estava Richard Hoggart , um acadêmico e autor influente que era visto como uma testemunha-chave. Ele argumentou que o romance era uma obra essencialmente moral e "puritana", que incluía apenas palavras que ele ouvira em um canteiro de obras a caminho do tribunal.

Em oposição, Mervyn Griffith-Jones liderou a acusação, que argumentou que o sexo no romance era pornografia gratuita. "Quando vocês tiverem visto o livro, perguntem a si mesmos: vocês aprovariam que seus filhos e filhas o lessem?" Griffith-Jones perguntou ao júri. "Vocês o deixariam espalhado pela casa? É um livro que vocês gostariam que suas esposas e empregados lessem?" Ele também listou quase 100 usos de palavrões em suas páginas. O juiz Byrne, que presidiu o julgamento, destacou que o preço baixo do livro significava que ele "estaria disponível para todos lerem". Essas declarações são frequentemente citadas como representativas das atitudes desatualizadas do establishment britânico na época. Em 2 de novembro de 1960, após um julgamento de seis dias, o júri levou três horas para deliberar e chegou a uma decisão unânime. A Penguin Books foi considerada "inocente" sob a Lei.

Lady Chatterley's Lover foi colocado à venda imediatamente depois, pois a Penguin havia se preparado para distribuí-lo em caso de absolvição. Eles tiveram que trabalhar com uma nova empresa de impressão, pois a de sempre se recusou a tocá-lo. Mas o julgamento teve o efeito de promover o livro, que esgotou todas as 200.000 cópias em seu primeiro dia de publicação. Ele vendeu três milhões de cópias em três meses.

Poucos dias depois de ter sido colocado à venda, o dono de uma loja na Inglaterra, Sr. Donati, falou à BBC News sobre a popularidade imediata do romance. "Nós pedimos 1.000 para começar", ele disse. "Tínhamos toda a esperança de recebê-los, é claro, mas no evento, foi cortado pela metade. Recebemos 500 cópias. Abrimos bem cedo, às cinco para as nove, e eu imagino que já vendemos 50 ou 60 [cópias]... Acho que devemos ter que esperar pelo menos três semanas [por outro estoque]."

Ainda assim, a reserva tradicional inglesa não desapareceu da noite para o dia. Muitos clientes ficaram envergonhados demais para pedir o romance escandaloso pelo nome, disse um livreiro à BBC. "Alguns deles apenas pedem Lady C, alguns apenas dão a você três e seis [três xelins e seis pence]." Como o repórter observou, "É bem diferente de vender um livro comum." Mas então, Lady Chatterley's Lover não era um livro comum. Quando publicado na íntegra, ele se tornaria um símbolo de liberdade de expressão e um sinal de que o cenário cultural da Grã-Bretanha estava mudando. O poeta Philip Larkin capturou seu significado em seu poema, Annus Mirabilis:

A relação sexual começou
Em mil novecentos e sessenta e três
(o que foi um pouco tarde para mim) –
Entre o fim da proibição de Chatterley
E o primeiro LP dos Beatles.

Nicola Kenny

A fala vegetal

Não é mistério para os entendidos que há uma linguagem das plantas, ou, para ser mais exato, que a cada planta corresponde uma linguagem. Como a variedade de plantas é infinita, faz-se impossível ao entendimento, por muito atilado que seja, captar todas as vozes de vegetais. E só os mais perspicazes entre os humanos conseguem entender a conversa entre duas plantas de espécies diferentes: cada uma usa o seu vocabulário, como por exemplo num diálogo em que A falasse em espanhol e B respondesse em alemão.

Levindo, jardineiro experiente, chegou a dominar as linguagens que se entrecruzavam no jardim. Um leigo diria que não se escutava nada, salvo o zumbir de moscas e besouros, mas ele chegava a distinguir o suspiro de uma violeta, e suas confidências ao amor-perfeito não eram segredo para os ouvidos daquele homem.

Até que um dia as plantas desconfiaram que estavam sendo espionadas e planejaram a conspiração de silêncio contra Levindo. Passaram a comunicar-se por meio de sinais altamente sigilosos, renovados a cada semana. Em vão o jardineiro se acocorava a noite inteira no jardim, na esperança de decifrar o código. Enlouqueceu.

Perdendo o emprego, as coisas não voltaram à normalidade. As plantas haviam esquecido o hábito de conversar direito. Já não se entendiam, brigavam de haste contra haste, muitas se aniquilaram em combate. O jardim foi invadido pelas cabras, que pastaram o restante da vegetação.

Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"

terça-feira, novembro 5

Pescador

 


Civilização Ocidental

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
Escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.
Agostinho Neto

Tão difícil a vida ...

O homem é tão necessariamente louco que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, escreveu Pascal. Deve ter pensado nisso a psiquiatra Karen Horney quando fez uma lista dos sintomas básicos da neurose, uma lista enorme, dela quase ninguém escapa. A loucura no cardápio. Basta ler e apontar, esta é minha. Selecionei as neuroses mais comuns e que podem nos levar além da fronteira convencionada: necessidade neurótica de agradar os outros. Necessidade neurótica de poder. Necessidade neurótica de explorar os outros. Necessidade neurótica de realização pessoal. Necessidade neurótica de despertar piedade. Necessidade neurótica de perfeição e inatacabilidade. Necessidade neurótica de um parceiro que se encarregue da sua vida – ô Deus! – mas desta última necessidade só escapam mesmo os santos. E algumas feministas mais radicais.


Tão difícil a vida e o seu ofício. E ninguém ao lado para receber a totalidade (ou parte) do fardo. Os analistas, caríssimos, e na maioria, um lixo: um lixo Freud considerava a totalidade dos seres humanos, isso nos últimos anos da sua vida sem muita ilusão. Ele não conheceu seus discípulos. E por acaso é com o analista que se comenta a fita na saída do cinema? O livro. O sabor do vinho, esse gosto meio frisante, hem? E esta pele e esta língua. A minha tiazinha falava muito na falta que lhe fazia esse ombro amigo, apoio e diversão, envelheceu procurando um. Não achou nem o ombro nem as outras partes, o que a fez choramingar sentidamente na hora da morte. Mas o que você quer, queridinha?! A gente perguntava. Está com alguma dor? Não, não era dor. Quer um padre? Não, não queria mais nenhum padre, chega de padre. Antes do último sopro, apertou desesperadamente a primeira mão ao alcance: “É que estou morrendo e não me diverti nada!

Lygia Fagundes Telles, "A Disciplina do Amor"

Embalado pelo mundo

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em ideias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pelo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.
Raduan Nassar, "Menina a caminho"

O desespero da velha

Diante do menino, por todos festejado, por todos paparicado, a velhinha enrugada deteve-se faceira: bela criatura, tão frágil quanto a velha e, como ela, sem dentes nem cabelos.

E dele a velhinha também se aproximou, querendo agradá-lo com gestos e sorrisos. Mas o menino horrorizado se debatia debaixo das carícias da boa senhora decrépita, e fazia a casa toda ressoar com seu alarido.

A boa velha então se recolheu à solidão que desde sempre a aguardava. Em um canto, repetia a si mesma entre lágrimas:

– Ah! Para nós, mulheres infelizes e velhas, passou a época de ser agradável, mesmo aos inocentes; e aos pequenos que desejamos amar, a esses apavoramos.

Charles Baudelaire, em "Pequenos poemas em prosa"

segunda-feira, novembro 4

Ilha encantada


 

Lembrança do mundo antigo

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,

a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
tranquilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava
no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Carlos Drummond de Andrade, "Sentimento do mundo"

Besta célere

Há quem lhe chame, por brincadeira, besta célere para caracterizar a qualidade mediana (tomada por média) desse produto cultural (agora é tudo cultural!) e, ao mesmo tempo, a rapidez com que ele se esgota em sucessivas edições. O best-seller é um produto perfeita (ou eficazmente) projectado em termos de «marketing» editorial e livreiro. É para se vender - muito e depressa - que o best-seller é construído com os olhos postos num leitor-tipo que vai encontrar nele aquilo que exactamente esperava. Nem mais, nem menos. Os exemplos, abundantíssimos, nem vale a pena enumerá-los. Convém não confundir, pelo menos em todos os casos, best-seller com «topes» de venda. Embora seja cabeça de lista, o best-seller tem, em relação aos livros «normais», uma característica que logo o diferencia: foi feito propositadamente para ser um campeão de vendas. A sua razão de ser é essa e só essa. E aqui poderia dizer-se, recuperando o lugar-comum para um sentido sério, que «o resto é literatura».

Estou a pensar em bestas céleres como Love Story ou O Aeroporto. Não estou a pensar em «topes» de venda como O Nome da Rosa ou Memórias de Adriano. estes últimos são boa, excelente literatura que, por razões pontuais e, muitas vezes extrínsecas à sua própria leitura, conheceram grandes êxitos de venda, o que é bastante diferente. Enquanto o best-seller é esquemático, quer dizer, não comporta mais do que o necessário, em termos de ingredientes, para comover (ou motivar, como é costume dizer-se) os simplórios, o livro «normal» nem pensa nisso. Nascido de uma necessidade interior, o livro «normal» chega ao leitor de dentro para fora. O best-seller é exactamente construído ao contrário: chega de fora para dentro ou, até de fora para fora, visto que a sua penetração no leitor não é nenhuma, ao passo que a sua propagação é imensa.

Habitualmente, o best-seller, ao fim de alguns anos, está esquecido ou, então, foi posto em cinema ou em TV e será, durante uns tempos, ainda lembrado, quase nunca em termos de literatura, que não é, mas apenas de história. O cinema ou a TV não podiam senão tornar ainda mais liso o que liso e correntio era.

Editores com o sentido da oportunidade aproveitam, então, para lançar ou desenterrar tiragens. que às vezes se vendem, outras não, mas sempre com a inevitável cinta: Um grande sucesso agora no cinema (ou na TV). Alimentam, deste modo, curiosidades menores do público: saber com antecipação o que vai acontecer (caso das séries televisivas, aliás «adiantadas» na Imprensa diária e semanal) ou ver até que ponto o cinema respeitou ou não respeitou a história original.

O best-seller é feito a pensar num leitor «espremido» por computador e serve a esse leitor tanto quanto lhe pode servir qualquer objecto de conforto. É um típico produto da chamada indústria cultural. Toma, exteriormente, a forma de livro para melhor se confundir com os verdadeiros livros. É uma espécie de ornamento (do espírito, da estante ou do caixote do lixo...) e cumpre, quase sempre, o seu papel, virada a última folha.

O best-seller pode ser preparado com muita habilidade e, para os desprevenidos, constituir, até, uma obra de qualidade. A propaganda fará o resto. Mas isso será só ilusão. O best-seller tem a qualidade apenas necessária para não comprometer a quantidade que alcançou ou deseja alcançar. Esse é o seu verdadeiro objectivo: quantidade e mais quantidade.

Hoje, que a literatura integra áreas cada vez mais vastas, uma há que não poderá integrar, a do best-seller, sob pena de se transformar no contrário de si mesma: o fabrico e o consumo de um produto que por acaso se chama livro.

Alexandre O'Neill, "Uma Coisa em Forma de Assim"

A irreparável fuga do tempo

Justamente aquela noite iria começar para ele a irreparável fuga do tempo. Até então ele passara pela despreocupada idade da primeira juventude, uma estrada que na meninice parece infinita, onde os anos escoam lentos e com passo leve, tanto que ninguém nota a sua passagem. Caminha-se placidamente, olhando com curiosidade ao redor, não há necessidade de se apressar, ninguém empurra por trás e ninguém espera, também os companheiros procedem sem preocupações, detendo-se frequentemente para brincar.

Das casas, a porta, a gente grande cumprimenta-se benigna e aponta para o horizonte com sorrisos de cumplicidade; assim o coração começa a bater por heroicos e suaves desejos, saboreia-se a véspera das coisas maravilhosas que aguardam mais adiante; ainda não se veem, não, mas é certo, absolutamente certo, que um dia chegaremos a elas.

Falta muito? Não, basta atravessar aquele rio lá longe, no fundo, ultrapassar aquelas verdes colinas. Ou já não se chegou, por acaso? Não são talvez estas árvores, estes prados, esta casa branca o que procurávamos? Por alguns instantes tem-se a impressão que sim, e quer-se parar ali. Depois ouve-se dizer que o melhor está mais adiante, e retoma-se despreocupadamente a estrada. Assim, continua-se o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o sol brilha alto no céu e parece não ter mais vontade de desaparecer no poente.

Mas a uma certa altura, quase instintivamente, vira-se para trás e vê-se que uma porta foi trancada às nossas costas, fechando o caminho de volta. Então sente-se que alguma coisa mudou, o sol não parece mais imóvel, desloca-se rápido, infelizmente, não dá tempo de olhá-lo, pois já se precipita nos confins do horizonte, percebe-se que as nuvens não estão mais estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem, amontoando-se umas sobre as outras, tamanha é sua afoiteza; compreende-se que o tempo passa e que a estrada, um dia, deverá inevitavelmente acabar.

A um certo momento batem às nossas costas um pesado portão, fecham-no a uma velocidade fulminante, e não há tempo de voltar.

Será então como um despertar. Olhará à sua volta, incrédulo; depois ouvirá um barulho de passos vindo de trás, verá as pessoas, despertadas antes dele, que correm afoitas e o ultrapassam para chegar primeiro.

Ouvirá a batida do tempo escandir avidamente a vida. Nas janelas não mais aparecerão figuras risonhas, mas rostos imóveis e indiferentes. E se perguntar quanto falta do caminho, ainda lhe apontarão o horizonte, mas sem nenhuma bondade ou alegria. Entretanto, os companheiros se perderão de vista, um porque ficou para trás, esgotado, outro porque desapareceu antes e já não passa de um minúsculo ponto no horizonte.

Além daquele rio — dirão as pessoas —, mais dez quilômetros, e terá chegado. Ao contrário, não termina nunca, os dias se tornam cada vez mais curtos, os companheiros de viagem, mais raros, nas janelas estão apáticas figuras pálidas que balançam a cabeça.

Então já estará cansado, as casas, ao longo da rua, terão quase todas as janelas fechadas, e as raras pessoas visíveis lhe responderão com um gesto desconsolado: o que era bom ficou para trás, muito para trás, e ele passou adiante, sem dar por isso. Ah, é demasiado tarde para voltar, atrás dele aumenta o fragor da multidão que o segue, impelida pela mesma ilusão, mas ainda invisível, na branca estrada deserta.

Ai, se pudesse ver a si mesmo, como estará um dia, lá onde a estrada termina, parado na praia do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, sem nenhuma casa ao redor, nenhum homem, nenhuma árvore, nem mesmo um fio de erva, tudo assim desde um tempo imemorável.

Assim uma página lentamente é virada, passada para o outro lado, acrescenta-se a outras já findas, por hora é apenas uma leve camada; as que falta ler são, em comparação, um monte inesgotável. Mas é sempre uma outra página gasta, uma porção de vida que se foi.
Dino Buzzati, "As noites difíceis"

A primeira casa

Do armazém, seguimos em direção ao cais, de volta pelo caminho que eu já tinha percorrido, e mais uma vez pude reparar nas mulheres que tanto me fascinaram, prometendo a mim mesma que um dia usaria aquelas roupas e seria muito mais feliz do que jamais tinha sido, pois foi esta a imagem que elas me passaram, a de felicidade, apesar de tudo. Chegando ao ancoradouro, um barco com mais três pretos estava à nossa espera, e um para-sol foi aberto sobre o nosso dono assim que ele embarcou. Depois que todos estávamos sentados, quatro pretos tomaram seus lugares nas laterais do barco e remaram de modo vigoroso e cadenciado, como se mentalmente cantassem uma música que impunha o ritmo da travessia. Fiquei alegre ao pensar que estava voltando para a Ilha dos Frades, mas logo tomamos outra direção, tendo à nossa frente a maior das ilhas da Baía de Todos os Santos, que depois eu soube se chamar Itaparica.


A ilha crescia e ficava mais bonita à medida que nos aproximávamos, e eu já via suas imensas praias de areia muito branca e palmeiras que pareciam as de África, e, mais para dentro, morros cobertos por florestas que eu também imaginava como as do meu reino. O barco contornou algumas pedras ao longo da costa e atracou em uma das pontas da ilha. Desembarcamos e seguimos primeiro pela praia, para depois entrarmos por uma trilha em meio às árvores. Nós, os pretos, íamos a pé, mas assim que pisamos a areia, o nosso dono já tinha esperando por ele um meio de transporte que achei muito engraçado, e depois vi que era comum entre as pessoas ricas da terra. Uma espécie de cadeira com encosto alto e sem os pés, pois, no lugar deles, logo abaixo do assento, estavam fixadas duas grossas ripas de madeira, que se estendiam paralelas para a frente e para trás de quem estava sentado. Ajoelhados, dois pretos apoiavam as ripas sobre os ombros, uma de cada lado, que eram cuidadosamente erguidas depois que o ocupante se sentava. Os pretos pareciam acostumados àquele trabalho, e era importante que tivessem mais ou menos a mesma altura, para que a cadeira não pendesse para um dos lados. Mesmo assim, não devia ser nada confortável para o ocupante, que corria o risco de perder o equilíbrio a qualquer solavanco ou em um terreno inclinado. Mas o nosso dono, o senhor José Carlos de Almeida Carvalho Gama, de quem herdamos o apelido, preferia o desconforto à caminhada, sempre.

A casa ficava a poucos metros da praia e era das maiores que eu já tinha visto, e a mais bonita. Entramos pela lateral do terreno, grande, cercado de árvores comuns, de árvores com frutas e de muitas plantas floridas. Na frente havia palmeiras e um jardim muito bem cuidado, até o limite com a areia da praia. Nos fundos, em meio a árvores que mais adiante se fechavam em densa mata, havia dois enormes barracões rústicos e pintados de branco. A casa era azul-clara, com as molduras das janelas e das portas pintadas de azul-escuro, a mesma cor das vigas de madeira que sustentavam o telhado da varanda que abraçava toda a construção. Na sombra desta varanda havia algumas cadeiras e redes, plantas em vasos e algumas pretas cantando e costurando, ao lado de três pretos já idosos, que trançavam palha para fazer balaios ou esteiras. O sinhô José Carlos, era assim que ele gostava de ser chamado, mandou que um dos empregados levasse a cozinheira para a senzala pequena e o pescador, para a senzala grande. Para mim, ele disse qualquer coisa que não entendi por ser em português, mas achei que era para segui-lo, o que fiz até a porta da cozinha. Ele entrou e fez um gesto para que eu ficasse esperando do lado de fora da porta, onde apareceram duas mulheres, olharam para mim e tornaram a entrar. Surgiu então uma terceira, mais velha e gorda, vestindo saia e blusa sujas de carvão, que me ofereceu um bom pedaço de bolo e um copo de leite. Ela começou a conversar comigo em português e eu respondia em iorubá, não me lembro exatamente o quê, mas acho que devo ter entendido. Não era difícil entender o português, eu apenas ainda não conseguia falar. Enquanto comia, com gosto e fome, ela me olhava com pena e carinho, e quando devolvi o copo vazio, falou em iorubá que eu tinha que aprender logo o português, pois o sinhô José Carlos não permitia que se falassem línguas de pretos em suas terras, e que qualquer coisa de que eu precisasse era para falar com ela, que se chamava Esméria. E que também era para eu ficar com ela na cozinha até o anoitecer, quando me levaria para a senzala pequena, onde dormiam os escravos que trabalhavam na casa.

A cozinha era maior do que toda a minha casa em Savalu e quase do tamanho da casa da Titilayo, em Uidá. Em um canto havia um enorme fogão a lenha onde a Esméria trabalhava, vermelho, da cor do cimento que cobria o chão. Em uma das paredes havia um armário com várias panelas e uma pia enorme, onde uma outra preta, mais nova que a Esméria e chamada Firmina, lavava uma pilha de coisas de cozinha e de mesa, que eu passava a conhecer a partir daquele momento. Havia também uma mesa sobre a qual, do teto, pendiam molhos de alho, pedaços de toucinho e outras comidas que eu também não conhecia. Ao lado da porta de saída, perto da qual eu tinha me sentado para observar tudo com muita curiosidade, ficava uma outra porta por onde a Esméria entrava e saía diversas vezes, com os ingredientes que usava para fazer a comida. Ao sair, sempre trancava a porta com uma chave que carregava amarrada à cintura. Uma terceira porta, bem em frente de onde eu estava sentada, levava ao interior da casa, velado por uma cortina.

Quando o jantar ficou pronto, um preto muito bem-vestido apareceu para pegar as travessas, muitas, onde a Esméria ia ajeitando a comida de várias qualidades, cada uma disposta em sua própria vasilha. Fiquei tentando imaginar, pela quantidade e variedade, quantas pessoas moravam naquela casa. O preto se chamava Sebastião e era quase branco no seu jeito de andar e de falar, tendo até os pés calçados, como também era o caso da Antônia, que apareceu para ajudá-lo, vestida com roupas diferentes das que a Esméria e a Firmina usavam. Depois do jantar, foram os dois também que carregaram tudo de volta para a cozinha, travessas, pratos, copos, talheres e a comida quase intocada. A Esméria me deu um pouco do que tinha sobrado e disse para eu comer rápido e não contar a ninguém, enquanto ela e a Firmina faziam o mesmo. Depois que as duas terminaram de lavar, secar e guardar a louça, com a Antônia e o Sebastião sentados à mesa e conversando em voz baixa, a Esméria me levou para a senzala pequena, onde também dormiam todos que eu tinha conhecido.

A Esméria riu quando perguntei sobre aquela história de virar carneiro e disse que também já tinha pensado assim. Em iorubá, ela me explicou o que era um escravo, alguém por quem o dono tinha pagado a quantia que achava justa e que lhe dava o direito de ter o escravo trabalhando pelo resto da vida, ou até que ele pudesse pagar pela liberdade que tinha antes de ser comprado. Eu não sei se entendi direito naquele dia, mas a explicação conformada me pareceu justa, e acho que até fiquei feliz por saber que os brancos não nos compravam porque apreciavam a nossa carne. Gostei também quando ela disse que eu seria escrava de companhia da sinhazinha Maria Clara, a filha do sinhô José Carlos. Ele era casado com a sinhá Ana Felipa, mas a mãe da sinhazinha Maria Clara era a sinhá Angélica, que tinha morrido no parto. O sinhô José Carlos então se casou de novo e não teve mais filhos, o que fazia da sinhazinha uma criança bastante solitária naquele mundo de adultos. Antes de mim, ela tinha tido uma outra companhia, uma moça mais velha, que foi vendida pela sinhá Ana Felipa quando começou a se dar ao desfrute dentro da casa. A Esméria recomendou que eu me comportasse bem, nunca dizendo nada que não fosse perguntado, nunca fazendo o que não fosse pedido e nunca desobedecendo ou questionando, mesmo quando achasse que uma ordem estava errada ou era injusta. Era assim que as coisas aconteciam entre pretos e brancos, e era assim que deveriam continuar, pois eu nunca poderia mudá-las e tinha até muita sorte de estar entre os escravos da casa, mais bem tratados do que os que viviam na senzala grande e trabalhavam na lavoura, no engenho ou na pesca da baleia. A Esméria disse ainda que a sinhazinha era uma menina muito boa, pois tinha herdado a bondade da mãe, de quem todos sentiam falta.

A senzala pequena era um cômodo não muito grande, simples, com as paredes pintadas de branco do lado de fora e no tijolo cor de barro do lado de dentro. O chão era de barro alisado, mas muito limpo, sobre o qual estavam estendidas algumas esteiras. A Esméria colocou uma para mim ao lado da dela e mostrou onde dormiam a Firmina, o Sebastião e a Antônia, que eu já conhecia, e onde ia dormir a Maria das Graças, que tinha sido comprada junto comigo para ajudá-la na cozinha. As outras esteiras pertenciam ao Tico e ao Hilário, dois moleques que eram uma espécie de faz-tudo na casa-grande e que estavam sempre fugindo do trabalho, escondidos pelo mato. Havia ainda a esteira da Josefa, que estava na casa preparando o banho e os quartos para os nossos donos dormirem, a do Eufrásio, o capataz, que estava vigiando os pretos da senzala grande e esperando a hora de trancá-los dentro das baias, e a da Rita, a arrumadeira, que normalmente dormia na casa-grande, na cozinha, para o caso de o sinhô, a sinhá ou a sinhazinha precisarem de alguma coisa durante a noite. Eu estava cansada por causa do dia agitado e de tantas novidades, mas feliz por estar ali e pelo trabalho que ia fazer, e principalmente por causa da Esméria, de quem gostei bastante. Queria ter ficado mais tempo pensando na minha avó ou mesmo na Titilayo, que devia estar preocupada por falta de notícias nossas, mas peguei no sono tão logo larguei o corpo na esteira.
Ana Maria Gonçalves, "Um defeito de cor"

sábado, novembro 2

Bem-vindos à casa!

 


Os primeiros rebentamentos

Os fatos só são verdadeiros depois de serem inventados
Crença de Tizangara

A primeira vez que escutei os rebentamentos acreditei que a guerra regressava em suas tropas e tropéis. Meu pensamento tinha uma só ideia: fugir. Passei pelas últimas casas de Tizangara, minha pequena vila natal. Ainda vi, se silhuetando longe, a minha casa natal, depois, já mais perto, a residência de Dona Hortênsia, a torre da igreja. A vila parecia em despedida do mundo, tristonha como tartaruga atravessando o deserto.

Escapei nos matos onde ninguém nunca se apessoara. Sim, era certo: aquela floresta nunca havia recebido nenhuma humanidade. Fiz um abrigo, de galhos e folhas. Pouca coisa, com discrição de bicho: não seria bom ser visto ali alguém em estado de pessoa. Eu tinha abrigo, não tinha morada. Fiquei nesse recôndito, conselhado pelo medo. Regressaria à vila quando me garantisse que a guerra não tinha regressado. Logo na primeira noite, porém, me amedrontaram os sons dos bichos e mais ainda as sombras do escuro. Estremeci de medo: não saltara eu da boca da quizumba para entrar na garganta do leão?

Sentei-me a esclarecer. Minha alma parecia ter-me saído e flutuava como nuvem por cima de mim. A guerra tinha terminado, fazia quase um ano. Não tínhamos entendido a guerra, não entendíamos agora a paz. Mas tudo parecia correr bem, depois que as armas se tinham calado. Para os mais velhos, porém, tudo estava decidido: os antepassados se sentaram, mortos e vivos, e tinham acordado um tempo de boa paz. Se os chefes, neste novo tempo, respeitassem a harmonia entre terra e espíritos, então cairiam as boas chuvas e os homens colheriam gerais felicidades. Precauteloso, disso eu mantinha minhas dúvidas. Os novos chefes pareciam pouco importados com a sorte dos outros. Eu falava do que assistia ali, em Tizangara. Do resto não tinha pronunciamento. Mas, na minha vila, havia agora tanta injustiça quanto no tempo colonial. Parecia de outro modo que esse tempo não terminara. Estava era sendo gerido por pessoas de outra raça.

Talvez fosse um grande cansaço que me fazia, afinal, ficar por aquela lonjura. Secretamente, eu deixara de amar aquela vila. Ou, se calhar, não era a vila, mas a vida que nela vivia. Eu já não tinha crença para converter a minha terra num lugar bem assombrado. Culpa do vigente regime de existirmos. Aqueles que nos comandavam, em Tizangara, engordavam a espelhos vistos, roubavam terras aos camponeses, se embebedavam sem respeito. A inveja era seu maior mandamento.” Mas a terra é um ser: carece de família, desse tear de entrexistências a que chamamos ternura. Os novos-ricos se passeavam em território de rapina, não tinham pátria. Sem amor pelos vivos, sem respeito pelos mortos. Eu sentia saudade dos outros que eles já tinham sido. Porque, afinal, eram ricos sem riqueza nenhuma. Se iludiam tendo uns carros, uns brilhos de gasto fácil. Falavam mal dos estrangeiros, durante o dia. De noite, se ajoelhavam a seus pés, trocando favores por migalhas. Queriam mandar, sem governar. Queriam enriquecer, sem trabalhar.

Agora, na margem da floresta, eu via o tempo desfilando sem nada nunca acontecer. Esse era um gosto meu: pensar sem nunca ter nenhuma ideia. Seria, afinal, que me convertia em bicho, em lógica de unha e garra? A guerra o que havia feito de nós? O estranho era eu não ter sido morto em quinze anos de tiroteiros e sucumbir agora em meio da paz. Não falecera da doença, morria do remédio?

Foi numa dessas manhãs de retiro que senti vozes. Surgiam camufladas. Segui os sons com as mil cautelas. Aquilo era gente que se cuidava não ser vista. Espreitei entre as moitas. Entrevi os vultos. Havia pretos e brancos. Se debruçavam no chão, pareciam escavar na berma de um atalho. Às tantas, um falou alto, bem audível. O grito, em inglês de fora:

Attention!

E os outros estacaram. Depois, se retiraram, sem pressa. De quando em quando, se voltavam a debruçar em roda de outra qualquer coisa. Que procuravam? Mas eles se foram e eu voltei a ficar só. Dei um tempo para que se afastassem e me dirigi para onde haviam estado a coscuvilhar. Foi quando um braço me travou o intento.

— Não vá que é perigoso!

Me virei: era minha mãe. Ou seria, antes, a visão dela. Pois ela já há muito passara a fronteira da vida, para além do nunca mais. Naquele momento, porém, ela surgia das folhagens, envolta em seus panos escuros, seus habituais. Não me saudou, simplesmente me orientou para junto do meu abrigo. Ali se sentou, aconchegando-se na capulana. Fiquei mudo e miúdo, à espera. Se temos voz é para vazar sentimento. Contudo, sentimento demasiado nos rouba a voz. Agora, que ela transitara de estado, eu acedia, completo, às vistas dela.

— Como é, filho: vive no lugar dos bichos?

Devolvi pergunta com pergunta:

— Há lugar, hoje, que não seja de bichos?

Ela sorriu, triste. Podia ter respondido: há, onde eu venho é lugar de gente. Porém, ela permaneceu calada. Rodou pelos arbustos e desfez folhinhas entre os dedos. Apurava perfumes e levava-os lentamente junto ao rosto. Matava saudades dos cheiros.

— A guerra já chegou outra vez, mãe?

— A guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda.

— E a mãe anda fazer o quê por essas bandas?

Eu queria saber se tinha terminado sua tarefa de morrer. Ela explicou-se, lenta e longa. Andava com uma bilha a recolher as lágrimas de todas as mães do mundo. Queria fazer um mar só delas. Não responda com esse sorriso, você não sabe o serviço do choro. O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início. Aquela gotinha é, em nós, o umbigo do mundo. A lágrima plagia o oceano. Pensava ela por outras, quase nenhumas, palavras. E suspirou:

— Haja Deus!

Lembrou-me como ela despertava, antes, toda alagada. Não houve, depois que meu pai nos deixou, uma manhã em que o sol a encontrasse em panos secos. Sempre e sempre ela e os choros. Todavia, isso fora antes, quando ela padecia da doença de estar viva.

— Não fique aqui que esses caminhos ainda têm o pé da guerra. A pegada está viva!

— Estou tão bem aqui, mãe. Nem me apetece regressar.

Ficamos ali horas trocando nadas, simplesmente adiando o tempo. Alongando o milagre de estarmos ali, na margem da floresta. Já entardecia, ela me avisou:

— Volte para a vila, há-de acontecer tantíssima coisa.

— Antes de ir, mãe, me lembre a estória do flamingo.

— Ah, essa estória está tão gasta...

— Me conte, mãe, que é para a viagem. Me falta tanta viagem.

— Então, senta, meu filho. Vou contar. Mas primeiro me prometa: nunca siga pelos carreiros onde seguiam aqueles homens que você espreitava há um bocadito.

— Prometo.

Então, ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:

— Hoje farei meu último voo!

As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.

Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:

— Mas vai voar para onde?

— Para um sítio onde não há nenhum lugar.

O pernalta, enfim, chegou e explicou — que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.

— Por que essa viagem tão sem regresso?

O flamingo desvalorizava seu feito:

— Ora, aquilo é longe, mas não é distante.

Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.

— Por favor, não vá!

— Tenho que ir!

A avestruz se interpôs e lhe disse:

— Veja, eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.

— Não posso, me cansei de viver num só corpo.

E falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.

— Não quero pousar mais. Só repousar.

E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.

Então, o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra.

Era o ponto final. No escurecer, a voz de minha mãe se desvaneceu. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.
Aquela era minha última noite desse retiro nos matos. Manhã seguinte eu já entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do sono.

Mia Couto, "O último voo do flamingo"

Epitáfio ao partir de New York

Fugi aos tigres
Nutri os percevejos
Fui devorado
Pelas mediocridades

Bertold Brecht

Ela tem alma de pomba

Que a televisão prejudica o movimento da pracinha Jerônimo Monteiro, em todos os Cachoeiros de Itapemirim, não há dúvida. Sete horas da noite era hora de uma pessoa acabar de jantar, dar uma volta pela praça para depois pegar uma sessão das 8 no cinema. Agora todo mundo fica em casa venda uma novela, depois outra novela.

O futebol também pode ser prejudicado. Quem vai ver um jogo do Estrela do Norte F. C. , se pode ficar tomando cervejinha é assistindo a um bom Fla-Flu, ou a um Inter x Cruzeiro, ou qualquer coisa assim?

Que a televisão prejudica a leitura de livros, também não há dúvida. Eu mesmo confesso que lia mais quando não tinha televisão. Radio, a gente pode ouvir baixinho, enquanto está lendo um livro. Televisão e incompatível com livro – e com tudo mais nesta vida, inclusive a boa conversa, até o making love.

Também acho que a televisão paralisa a criança numa cadeira mais do que o desejável. O menina fica ali parado, vendo e ouvindo, em vez de sair por aí, chutar uma bola, brincar de bandido, inventar uma besteira qualquer para fazer.

Só não acredito que televisão seja máquina de fazer doido. Até acho que é o contrário, ou quase o contrário: é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar, fazer doido dormir.

Quando você cita um inconveniente da televisão, uma boa observação que se pode fazer é que não existe nenhum aparelho de TV, a cores ou em preto e branco, sem um botão para desligar. Mas quando um pai de família o utiliza, isso pode produzir o ódio e rancor no peito das crianças e até de outros adultos.

Quando o apartamento é pequeno, a família é grande, e a TV é só uma – então sua tendência é para ser um fator de rixas intestinas.

– Agora você se agarra nessa porcaria de futebol…

– Mas, francamente, você não tem vergonha de acompanhar essa besteira de novela?

– Não sou eu não, são as crianças! – Crianças, para a cama!

Mas muito lhe será perdoado, à TV, pela sua ajuda aos doentes, aos velhos, aos solitários. Na grande cidade – num apartamentinho de quarto e sala, num casebre de subúrbio, numa orgulhosa mansão – a criatura solitária tem nela a grande distração, a grande consolo, a grande companhia. Ela instala dentro de sua toca humilde o tumulto e o frêmito de mil vidas, a emoção, suspende, a fascinação dos dramas do mundo.

A corujinha da madrugada não é apenas a companheira de gente importante, e a grande amiga da pessoa desimportante e só, da mulher velha, do homem doente… É a amiga dos entrevados, dos abandonados, dos que a vida esqueceu para um canto… ou dos que estão parados, paralisados, no estupor de alguma desgraça… ou que no meio da noite sofrem o assalto de dúvidas e melancolias… mãe que espera filho, mulher que espera marido… homem arrasado que espera que a noite passe, que a noite passe, que a noite passe…
Rubem Braga, "200 crônicas escolhidas"

Ao correr da máquina

Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. – Há coisas que jamais direi: nem em livros e muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam que há coisas que se podem contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar essas verdades. Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que vou falar em Deus: é um segredo meu.


Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.

Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois… Depois eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme Cada um vive como quer. Tinha música e eu chorei. Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.

Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas, quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que lerei para corrigir erros datilográficos.

A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.

Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo.

Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma tartaruga? O título do que estou escrevendo agora não devia ser “Ao correr da máquina”. Devia ser mais ou menos assim, em forma interrogativa: “E as tartarugas?” E quem me lê se diria: é verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.
Clarice Lispector