sexta-feira, julho 18

O leão

Na cidade de Belfort, pego uma cadeira e sento-me de frente para a rua. É um lugar-comum falar do “Homem da Rua”, mas o francês é o verdadeiro homem da rua. Coisas muito centrais para ele estão ligadas a esses postes e calçadas: tudo desde suas refeições até seus martírios. Quando um inglês olha pela primeira vez para uma cidade ou vilarejo francês, sua primeira impressão é simplesmente de que são mais feios que os ingleses; quando olha novamente, vê que essa relativa ausência do pitoresco está expressa principalmente nas fachadas lisas e íngremes das casas, que se erguem da rua duras e planas como as casas de papelão de uma pantomima – numa rígida angulação talvez aliada da aspereza da lógica francesa. Quando olha pela terceira vez, percebe muito simplesmente que tudo isso é porque as casas não têm jardins na frente. O vago espírito inglês adora ter a entrada de sua casa suavizada por arbustos e quebrada por degraus. Ele gosta de ter uma pequena antessala de cercas vivas, parte dentro da casa e parte fora; uma sala verde em um sentido duplo. O francês não deseja esses pequenos parapeitos patéticos ou lugares de parada, pois a própria rua é algo natural e familiar para ele.

Os franceses não têm jardins da frente; mas a rua é o jardim da frente de todos. Há árvores na rua, e às vezes fontes. A rua é a taverna do francês, pois ele bebe na rua. É sua sala de jantar, pois janta nela. É seu Museu Britânico, pois as estátuas e monumentos nas ruas francesas não são, como em nosso caso, a pior, mas sim a melhor arte do país, e de fato são freqüentemente tão históricas quanto as Pirâmides. A rua é ainda o Parlamento do francês, pois a França nunca levou sua Câmara de Deputados tão a sério quanto nós levamos a Câmara dos Comuns, e os jogos de palavras de seres insignificantes meramente eleitos em uma sala oficial parecem débeis para um povo cujos pais ouviram a voz de Desmoulins soar como uma trombeta sob os céus, ou Victor Hugo gritar de sua carruagem no meio da ruína da Segunda República. E da mesma forma que o francês bebe e janta na rua ele luta e morre na rua, de forma que esta nunca lhe
será banal.

Veja-se, por exemplo, um objeto tão simples como um poste. Em Londres, um poste é algo cômico. Pensamos no cavalheiro embriagado abraçando-o e lembrando-se de antigas amizades. Mas em Paris um poste é algo trágico. Pois pensamos em tiranos enforcados e no fim do mundo. Há, ou houve, um amargo jornal republicano em Paris chamado La Lanterne. Como seria engraçado se na Inglaterra houvesse um jornal progressista chamado O Poste! Dissemos, então, que o francês é o homem da rua; que pode jantar na rua, e morrer na rua. E se eu alguma vez passar por Paris e o vir indo para a cama na rua, direi que ele continua fiel ao espírito de sua civilização. Tudo o que é bom e tudo o que é mau na França está igualmente conectado a esse elemento de ar livre. A democracia e a indecência francesas são ambas parte do desejo de ter tudo para fora de casa. Comparada a um café, um pub é uma casa particular.

Havia duas razões para que todas essas idéias flutuassem pela mente nas ruas dessa especial cidade de Belfort. Em primeiro lugar, ela está perto da fronteira entre a França e a Alemanha, e fronteiras são as coisas mais belas do mundo. Amar qualquer coisa é amar suas fronteiras; por isso as crianças sempre brincam na beira de tudo. Constroem castelos na beira do mar, e só decretos públicos e violência privada conseguem impedi-las de andar na beira da grama. É que quando chegamos ao fim de uma coisa chegamos também ao seu início.

Assim esta cidade pareceu ainda mais francesa por estar na própria margem da Alemanha, e embora houvesse muitos toques alemães no lugar – nomes alemães, canecas de cerveja maiores e enormes garçonetes teatrais vestidas em revoltante imitação de camponesas da Alsácia –, as cores francesas pareciam ainda mais fortes apesar desses grãos de algo mais. Durante todo o dia e toda a noite, tropas de empoeirados, morenos e desdenhosos soldados vinham pesadamente pelas ruas com ar de obstinado descontentamento, pois os soldados alemães parecem desprezar você, mas os soldados franceses parecem desprezar a você e a eles mesmos ainda mais do que a você. Isso é parte, suponho, do realismo da nação que tornou tal sentimento bom na guerra e na ciência e em outras coisas em que o necessário se combina com o desagradável. E tanto os soldados quanto os civis tinham em sua maioria cabelos curtos, e aquele curioso formato da cabeça que parece quase brutal para um inglês, do tipo que chamamos “cabeça redonda ou de bala”. Com efeito, falamos muito apropriadamente ao chamá-las cabeças de bala, pois na história intelectual as cabeças dos franceses foram balas – e do tipo explosivo.

Mas havia uma segunda razão por que nesse lugar eu pensasse particularmente na política ao ar livre e na arte ao ar livre dos franceses. Pois esta cidade de Belfort é famosa por um dos mais típicos e poderosos monumentos públicos da França. Da mesa do café em que me sento posso ver além da cidade a colina em que está a alta e lisa fortaleza, furada por muitas janelas e quente na luz da tarde.

Na íngreme colina abaixo dela está um enorme leão de pedra, ele mesmo tão grande quanto uma colina. Está entalhado na rocha como uma espécie de marca gigantesca. Não houve tentativas triviais de fazê-lo parecido com uma estátua comum: não se tentou entalhar a juba com ondulações, ou separar o monstro detalhadamente da terra da qual se ergue, sacudindo o mundo. A face do leão tem algo da ousada formalidade da arte assíria. A juba foi deixada como uma informe nuvem de tempestade, como se fosse possível dizer dele literalmente que Deus envolveu seu pescoço com o trovão. Mesmo a essa distância parece imenso, e de alguma forma pré-histórico. No entanto foi entalhado apenas recentemente. Comemora o fato de que esta cidade nunca foi tomada pelos alemães em todo o ano terrível, mas que apenas depôs armas quando finalmente recebeu esta ordem de seu próprio Governo. Mas seu espírito está nesta terra desde os começos – o espírito de algo desafiador e quase derrotado.

Quando saio deste lugar e pego o trem para a Alemanha chegam às ruas notícias cada vez mais intensas de que o Sul da França está inflamado, e que talvez lá se inicie finalmente a terrível batalha moderna entre os ricos e os pobres. E ao passar a regiões mais calmas para ver os últimos sinais da França no horizonte, vejo o Leão de Belfort em guarda, última visão daquele grande povo que nunca esteve em paz.
G. K. Chesterton

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