domingo, julho 13

Uma parede que chilreia

Caminhar ao longo de uma praia, manhã cedo, com uma filha de 7 anos, pode ser um experimento filosófico transformador. Kianda, a minha filha mais nova, segue a escola de Manoel de Barros. Convém realçar que este, por sua vez, era um discípulo assumido dos próprios filhos e netos. A menina tem um olho extraordinário para os inutensílios, essas ferramentas de desaprender, que o poeta do Pantanal exaltou em muitos dos seus poemas.

— Um tesouro, papai, está vendo?! Posso levar para casa?

— É só uma pedra, filha…

— Você não está olhando bem. Veja melhor, é um tesouro…

Então eu me ajoelho, para ver melhor, e logo o espanto dela me contagia. Sim, é um tesouro, e o mais raro de todos, porque não pode ser comprado nem vendido.

Espantar-se significa ver como as crianças. Não por ignorância, mas porque não se perdeu ainda o vínculo com o real.

A ideia de que tudo precisa ter uma função — pior, de que tudo precisa estar ao serviço da nossa espécie — é peça fundamental no duro maquinismo do aparelho ideológico dominante. A proposta de Manoel de Barros, transformando o lixo, que todos pisam e ninguém vê, em matéria de poesia, sempre me pareceu uma insurreição gentil — uma espécie de terrorismo afetuoso.

Ao proclamar a evidência de tesouros, onde os desatentos só enxergam pedras comuns, Kianda junta-se à insurgência. Estou com ela e não largo.

Desconfio dos objetos extremamente úteis que todos os dias alguém nos tenta vender. Na maioria dos casos são tão imprescindíveis como uma bomba nuclear — embora, é certo, menos dispendiosos e, sobretudo, menos assustadores.

Prefiro colecionar nuvens a relógios, e gargalhadas a gravatas. Troco qualquer cerimônia solene por um bom assombro.

Kianda divide os adultos entre “aqueles que ainda se espantam” e os “extremamente adultos”. Estes últimos, os adultos irrecuperáveis, costumam dedicar-se à burocracia, à política e a outras atividades desalmadas.

Gosto das palavras esquecidas nas páginas de livros que ninguém mais lê; aquelas das quais só alguns anciãos ainda se servem, e que trocam, sorrindo, uns com os outros — são códigos com que abrem portais do tempo. Amo as estradinhas de terra batida, que ligam nenhum lugar a lugar nenhum, e são tão desimportantes que até os vagabundos as desprezam.

Há uma leveza infinita nos seres ociosos — gatos dormindo, poetas contemplando os gatos dormindo. O sentimento de liberdade que transmitem é quase uma religião.

Acabamos nos tornando servos da serventia — o tempo é dinheiro; a leitura é instrução; a amizade tem de trazer algum ganho associado. Até o descanso só se justifica se for “produtivo”.

Ah, abominável oxímoro este: “ócio produtivo”!

Estou terminando de reformar um velho casarão do século XVIII, na Ilha de Moçambique. Há poucas semanas um casal de passarinhos fez ninho no interior de uma das grossas paredes de coral. Pedi para suspenderem a obra. Agora, encostando o ouvido à parede, no meu escritório, ouço-a chilrear. Uma parede chilreante pode não ter nenhuma utilidade para os adultos irrecuperáveis. Para mim — e para Kianda, a minha pequena mentora —, é um enorme tesouro.

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