Corria o ano de 994 d. C. e o Alto-Conselheiro Fujiwarano Korechika, irmão da imperatriz Sadako, presenteou o casal imperial com alguns pacotes de papéis em branco de alta qualidade. A imperatriz perguntou a uma de suas damas de honra, Sei Shônagon, o que deveriam fazer com os papéis. Ela respondeu: “Talvez, nestas folhas, pudéssemos fazer um ‘Travesseiro’...” A imperatriz então entregou a ela os papéis, dizendo: “São seus. Escreva o que quiser.”
Até hoje se discute o que Sei Shônagon queria dizer com “Travesseiro”. Talvez ela estivesse se referindo ao costume de guardar anotações pessoais no compartimento de um travesseiro de madeira, talvez estivesse fazendo um trocadilho cujo sentido se perdeu no tempo. Seja como for, essa é a origem, segundo a própria autora, da obra que chegou até nós com o nome de O livro do travesseiro .
“Coisas distantes que parecem próximas. O paraíso. A travessia de um barco. A relação entre um homem e uma mulher." Mil anos depois de escritas, essas palavras aparentemente tão simples não perderam um grama da sua força poética e filosófica. E essa é apenas uma das muitas listas presentes no livro de Sei Shônagon, abarcando os tópicos mais diversos, desde “Coisas que fazem palpitar o coração” até “Coisas agora inúteis que fazem lembrar seu passado glorioso”. São catalogações breves e surpreendentes, quase tão caprichosas quanto a enciclopédia de Borges, mas também precisas e certeiras: “Coisas que são desdenhadas: muros danificados, pessoas conhecidas por seu coração bom demais”.
Sei Shonagon, autora de O Livro do Travesseiro, gravura de Katsushika Hokusai (1760-1849) |
Para o leitor de hoje, O livro do travesseiro tem um sabor difícil de classificar, pois não se encaixa em nenhuma das categorias que geralmente usamos para as obras literárias. A analogia que me vem à cabeça é com o umami, o “quinto gosto”, descoberto (por pesquisadores japoneses) muito tempo depois dos tradicionais salgado, doce, azedo e amargo. Lembro-me da dificuldade de um amigo ao tentar me explicar em que consistia o tal gosto, e dizendo, por fim: “Quando você não souber bem que gosto é, então é umami”. Pois bem, O livro do travesseiro é uma espécie de livro umami. É uma reunião de mais de trezentos textos independentes, de tamanho e conteúdo variáveis, que vão desde relatos de acontecimentos da corte, com várias páginas de extensão, até opiniões sucintas sobre um tema, com apenas uma ou duas frases ("Quanto ao inverno, o bem frio. Quanto ao verão, o de calor sem igual"). Esses textos às vezes estão próximos da poesia, às vezes da narrativa, às vezes do ensaio, às vezes do discurso filosófico, sem chegar a ser nenhuma dessas coisas. Vejam por exemplo, este trecho: “Coisas que são iguais embora soem diferentes. A fala do religioso. A fala do homem, a fala da mulher. Na fala dos medíocres sempre sobram palavras. O comedimento, sim, soa elegante”. Como catalogar essas frases?
Essa ambiguidade taxonômica se estende também a nossas noções de “arcaico” e “moderno”. Não consigo pensar em uma realidade mais distante de nós do que o dia a dia da elite japonesa durante a dinastia Heian; e, no entanto, o estilo híbrido do livro, sua prosa transparente e os insights por ele revelados soam muitas vezes mais contemporâneos do que boa parte da literatura que se produz hoje. Em uma mesma página, podemos ser transportados do Japão pré-medieval até lugares desconhecidos dentro de nós mesmos. Na seção “Coisas que causam prazer”, por exemplo, estão incluídos itens exóticos como “poemas escritos com traços de pincel não muito finos, em puríssimo papel branco Michinoku”; mas também observações tão atemporais quanto imprevisíveis, como esta: "É muito prazeroso, em momentos de tédio, receber uma visita não tão íntima que fala comedidamente sobre as coisas da vida relacionadas a acontecimentos recentes, divertidos, desagradáveis ou inacreditáveis desta ou daquela pessoa, discernindo com firmeza o social do particular".
Prosseguindo na analogia com o umami, vejo outro elemento em comum com O livro do travesseiro : seu gosto residual suave, porém duradouro. Quando terminei de ler, não me lembrava de personagens nem de episódios, nem mesmo de alguma das várias listas memoráveis; e, no entanto, muito tempo depois eu continuava me lembrando bem do estilo, da atmosfera, do estado de espírito em que fiquei. E é em busca desse estado de espírito que eu me vejo, de tempos em tempos, retornando a esse livro notável.
Durante a dinastia Heian, os japoneses de elite, para se comunicarem por escrito, usavam os caracteres chineses; eu disse os japoneses, não as japonesas. As mulheres, mesmo as damas da corte imperial, tinham que se contentar com o sistema de transcrição fonética chamado hiragana, também conhecido como onnade (literalmente, “mão de mulher”, escrita de mulher). Esse sistema, a princípio relegado às mulheres, mais tarde se expandiu até se tornar um dos pilares do japonês moderno. Essa circunstância ajuda a entender por que algumas das mais importantes obras clássicas da literatura japonesa foram escritas por mulheres, como é o caso de O livro do travesseiro .
No Japão, O livro do travesseiro faz parte do currículo escolar obrigatório; só posso imaginar a relação ambígua que os japoneses devem ter com o livro por causa disso. Felizmente, estamos livres desse fardo. Não é a obrigação, e sim o mais soberano prazer, que nos leva a abrir as páginas e ler: “Coisas que simplesmente passam e... passam. O barco à vela. A idade das pessoas. A primavera, o verão, o outono, o inverno.”
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