O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa claraboia do convés, sob a qual havia espaço suficiente para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha de pão; a fome roía-o, e, depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna, a morrer de fome e frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrava os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restava-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele de palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado.
Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.
José Rodrigues Miguéis, "O Passageiro Clandestino"
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