SETANTA |
Daí o triunfo absoluto de 2666, um livro total composto por cinco partes e publicado no segundo semestre de 2004, no ano seguinte à morte de seu autor. Desde Borges –meticulosamente retratado por Adolfo Bioy Casares em um diário já inevitável -, nenhum escritor influenciou tanto as novas gerações como Roberto Bolaño. O fato de seus livros começarem a ser publicados na Espanha pela Anagrama e atualmente pela Alfaguara –as duas editoras espanholas mais presentes na lista da Babelia– é outro sintoma do peso de alguns selos na criação do gosto contemporâneo.
Talvez por uma mera questão geracional, a literatura canônica das duas primeiras décadas do século XXI se ocupou de cutucar as feridas do século XX. As guerras mundiais, a guerra civil espanhola, o período pós-guerra, a descolonização, as migrações, o apartheid, as ditaduras latino-americanas, a queda do império soviético, os feminicídios em Ciudad Juárez ou as turbulências no Oriente Médio podem ser rastreados na obra do próprio Bolaño e de Ian McEwan, WG Sebald, Javier Marías, Javier Cercas, Tony Judt, Mario Vargas Llosa, J.M. Coetzee, Zadie Smith, Svetlana Aleksiévich, Emmanuel Carrère, Marjane Satrapi e Edmund de Waal.
Se esses autores começam a ser canônicos, não é apenas por causa dos tópicos que abordam, mas também pela maneira como o fazem: misturando realidade e ficção, narração e reflexão, dinamizando os gêneros tradicionais ou deixando que sua intimidade sem filtros discutia com a história. Universal. Esse eu com vontade de nós é o que produziu, além do mais, títulos como os de Joan Didion, Lucia Berlin, Anne Carson e Raúl Zurita –que deu à sua obra magna o próprio sobrenome–, e sobretudo os seis volumes de Karl Ove Knausgård.
A grande história e a intimidade bruta também estão presentes em títulos de sucesso do século XXI, como O Código Da Vinci, O Menino do Pijama Listrado ou Cinquenta Tons de Cinza. Por que não estão nesta lista? Talvez porque não se encaixem na definição que o crítico Northrop Frye cunhou para "grande literatura": aquela que é "dona de uma visão sempre mais vasta do que a de seus melhores leitores". O poeta Wystan Hugh Auden fez a seguinte ponderação: “Existem livros que foram injustamente esquecidos; ninguém é lembrado injustamente”.
A crise econômica de 2008 acrescentou a indignação à insegurança e deu razão a um romance premonitório publicado na Espanha um ano antes: Crematorio, de Rafael Chirbes. Por tabela, empoderou –o verbo do século– um gênero e uma geração. O feminismo e o ambientalismo são, por ora, a resposta mais contundente a uma tendência insustentável que está a caminho de transformar em realismo puro um romance de, digamos, ficção científica como A Estrada, de Cormac McCarthy. Protagonizado por dois homens sozinhos –pai e filho– que vagam por um planeta devastado, a distopia do autor norte-americano inclui em suas páginas algo que se assemelha a uma definição da literatura de hoje: “Deus não existe e nós somos os seus profetas”.
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