Os meus olhos fecham-se, envoltos num nevoeiro denso, salpicado de traços negros. As letras que desenho, gigantes e esguias como os cavaleiros de Dom Quixote, fogem a galope quando as vou procurar. Já não sou mais do que um cego anunciado. O mundo vai-se sumindo ao meu redor. Às vezes, para antecipar as trevas e o efeito que terão sobre mim, cerro voluntariamente as pálpebras. Tateio, apalpo, seguro. Detenho-me sobre as capas dos meus queridos livros, imaginando como será quando já não os puder ler.
Também os sons caprichosos chegam aos meus ouvidos atropelados ou desgarrados. Na verdade, uns chegam aos meus ouvidos, outros já não.
O desejo inesperado visita-me a horas mortas. É um desejo sem provocação, estímulo ou objeto. Não, não é um desejo. É o meu corpo a troçar de mim, a puxar pelos meus dedos frouxos. Desejo é quando os meus velhos pensamentos me fazem viajar pela juventude, pelos rostos de Mariana, de Natália, os seus olhos, os seus sorrisos, as suas vozes.
As ideias estiolam, enovelam-se, desorientam-se, fenecem. Por vezes, em contradita, borbulham como água fervente, atropelam-se, e então é difícil segurá-las, sujeitá-las, conseguir escrevê-las, até.
Não há nada mais humilhante do que esta dissociação cruel entre a mente ainda viva e um corpo moribundo. Sinto, de outra forma, o que sentiu o meu irmão Armando. Ele tinha vinte e cinco anos quando morreu. Mas eu também tenho vinte e cinco anos. Tenho, debaixo desta carapaça de velho, vinte e cinco anos. Morrer não custa, o que custa é este sofrimento lúcido.
Isabel Rio Novo, "A Febre das Almas Sensíveis"
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