Toda manhã, entre as sete e as oito, costumava dar uma caminhada, enquanto olhava as vitrinas das livrarias. Observava com um certo prazer que a cada dia havia mais sujeira e banalidades. Quanto a ele, era o dono da maior biblioteca particular da cidade. Carregava sempre alguns livros consigo. Sua paixão de bibliófilo, a única que se permitia em uma vida austera e cheia de trabalho, obrigava-o a ser cauteloso. Qualquer livro, mesmo os ruins, dava-lhe vontade de comprar. Felizmente, a maioria das livrarias não abria antes das oito. Às vezes, um empregado mais interessado em agradar o patrão chegava mais cedo e aguardava frente à porta fechada a chegada do gerente, para dizer: ‘Estou aqui desde às sete horas!’. Tamanho zelo comovia Kien. Tinha vontade de entrar imediatamente. Nas livrarias pequenas, muitas vezes às sete e meia já se podiam ver os donos trabalhando. Kien confiava na sua pasta atulhada de livros como forma de resistir à tentação. Segurava-a embaixo do braço, de um jeito especial que permitia pô-la em contato com o corpo. Podia senti-la contra as costelas, através do casaco leve e puído. O braço ficava apoiado na concavidade inferior, adaptando-se perfeitamente a ela. O antebraço servia de escora inferior. Os dedos estendidos podiam apalpar todas as áreas que lhes apetecessem. O valor do conteúdo justificava o excesso de cuidado. Se a pasta caísse casualmente e o fecho, apesar de ter sido examinado antes do passeio matinal, se abrisse nesse momento, obras preciosas cairiam também. Mais do que tudo, Kien odiava livros sujos.
Elias Canetti, "Auto-de-fé"
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