quinta-feira, abril 28

Minhas memórias culturais familiares nos retratos pintados

Eram costume das famílias remediadas do sertão os retratos emoldurados e pintados à mão em cima de um móvel ou na parede ao lado dos santos de devoção.

Na casa da vovó e na da mamãe, todas as pessoas foram retratadas no que se denomina hoje “fotopintura”, arte que remonta ao início do século XX, antes das fotos coloridas, na qual, a partir de um retrato preto e branco, um colorista-pintor fazia sua arte sobre papel de sais de prata – hoje com recursos digitais: “Photoshop, scanners e outros programas e equipamentos de captação e tratamento de imagem disponíveis”, como relata Mestre Júlio, cearense fotopintor de retratos, eternizado em um livro: “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura” (Editora Tempo d’Imagem).

Para ele, “o maior valor da fotopintura é ‘tatuar’ as pessoas nas paredes de uma casa”. Só não exibiam fotopinturas emolduradas famílias muito pobres. O sonho da tia Lô, irmã de meu avô Braulino, era ter retratos pintados de seus dois filhos de criação, Maria das Graças e Dé, além de seus nove filhos. Quando a Francisca, mulher de Dé, lhe fazia raiva, ela não perdia a chance de dizer que ela não merecia um retrato pintado na parede ao lado de seus santos de devoção!

Reprodução

Eram adornos tão caros que a tia Lô morreu aos cinquenta e poucos anos sem realizar sequer parte do acalentado sonho! Era uma prática cultural tão arraigada que estabelecia consensos no campo do caráter ao lado de outras verdades, tal como: “Marido bom, quando fica viúvo, se casa logo”.

Se o viúvo se casasse sem eternizar a morta em um retrato pintado, ficava falado e sem valor. Vovó era a primeira a dizer: “Eita que fulano deu ruim! Nem um retrato da falecida mandou fazer! Nisso é que dá mulher besta fazer economia pra quem não trabalhou gastar”.

Um dia, o retratista chegou. Tirou da mala um belíssimo retrato pintado da vovó. Mamãe, espantada, não se conteve: “Mãe, a senhora já tem um, pra que outro?!”. Vovó: “Mas é junto com Braulino. Não sei se vou morar com ele a vida toda”. A fotopintura virou fonte de ameaça até quando o pai velho falava com ela de “estucada” (sem educação). Ela dizia calmíssima: “Num grita comigo, não, que eu até já tenho meu retrato sozinha! Olha ali”. Meu avô se calava como que por milagre.

Nossas fotopinturas antigas são a memória de um doce tempo do qual sou herdeira. Tenho uma minha aos 3 anos com a minha boneca de pano preferida, envolta em lendas e lendas. Contam que só fiquei quieta para a foto depois que tive a boneca nas mãos – vovó disse para o fotógrafo que a abolisse no retrato pintado, e o pai velho mandou que ficasse porque eu era doida com ela. Caso contrário, o retratista não receberia o pagamento, pois quem pagava era ele; outra, aos 18 anos, com a minha irmã Júlia adolescente; e outra de meu pai aos 30 anos. Tenho paixão por elas porque, para além da arte, são repletas de nossas histórias.

Quando passou a moda de pendurá-los na parede, meados de 1970, já em Imperatriz, mamãe, que era filha única, e vovó doaram os retratos pintados para a netaiada. Acho que só eu os conservei, pois, por mais que pergunte, ninguém dá notícia deles, que eram uns 12!

Quando morei em BH, vovó passou dois meses comigo em 1989 e, vendo as fotopinturas, disse-me, em lágrimas: “Tu guardas com tanto carinho! Tenho arrependimento de não ter te dado todas”. Em 1993, mamãe, chorando, disse: “Tu és muito cuidadosa. Pena que não te demos todas. As outras se acabaram”.

Há quem diga que os retratos pintados são sonhos-tatuagens de alma. Concordo, pois a memória cultural é composta por heranças simbólicas.

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