sábado, abril 30

Buquinagem

Percorrer as estantes de um sebo, no exercício da saudável buquinagem, é às vezes um prazer leve como uma pescaria e às vezes tão excitante quanto uma busca sexual. Surpreendi um dia um setentão no canto menos iluminado da sala apalpando um livro de Erica Jong e falando baixo com ele, como se lhe propusesse algo.


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Desconhecer o que viemos fazer aqui nos livra de fadigas e decepções. Esqueçamos nossas presunções e gozemos a suprema delícia de não termos missão nenhuma.

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Quando chovia forte, Mário de Andrade, que dizia ser trezentos e cinquenta, não saía de casa. Mandava em seu lugar um dos trezentos e quarenta e nove outros.

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Bom tempo foi aquele em que o amor nos alimentava com fartura, para que cumpríssemos suas demandas noturnas e, se delas nos descurássemos, pudéssemos resistir ao rancor do seu chicote.

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O que está sempre em jogo no amor é a fixação de um domínio, de uma primazia. Mesmo que esse domínio e essa primazia consistam, para quem os fixa, em submeter-se, de plena vontade, ao domínio e à primazia do parceiro amoroso.

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Se eu fosse um apóstolo do amor, se eu fosse digno dessa missão, o livro-base do meu culto – a bíblia, por assim dizer – seria O museu da inocência, de Orhan Pamuk. Não conheço nenhum que se equipare a ele em força lírica, em delicadeza, em suavidade. Eu daria a alma para tê-lo escrito – o que, na verdade, significa que gostaria de ter vivido a história do personagem Kemal, subjugado por uma lembrança amorosa tão pungentemente agradável de ser sofrida que ele bem mereceria mais de uma vida para vivê-la. O museu da inocência é um livro para aqueles que não se envergonhariam de lamber uma estátua do amor, ainda que fosse obra do pior dos escultores e feita com a mais reles das argilas.

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Quem se julga heroico quando se declara disposto a dar a vida pelo amor não faz nada além de reproduzir hoje um hábito muito comum outrora.

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Porque nossos braços já não são os mesmos, as árvores derrubam gentilmente seus frutos para nós. Não são os melhores, sabemos, mas já aprendemos a não nos lamentar.

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O que o amor de mais cruel tem é quando nós lhe dizemos que sem ele morreremos, e ele, distraído, diz: hem?

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Quem mais fala de amor e quem menos o define são os poetas.

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Que alma seria suficientemente tola para querer ser a minha?

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Todos os poetas deveriam morrer por amor. É a única coisa que, em sua biografia, pode legitimá-los.

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Sou um entusiasmado adepto da apatia.

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Ter existido um homem chamado Shakespeare, que fez o que fez, é quase tão inacreditável quanto existir Deus.

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Poemas de amor deveriam ser vendidos em floriculturas.

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Para os suicidas mais convictos, morrer acaba se tornando um projeto de vida.

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