Oficialmente, eles morreram em 23 de abril. Mas os leitores que homenagearem os dois nesse dia estarão participando, na verdade, de uma pequena ficção. Explica-se: naquela época, a Inglaterra ainda usava o calendário juliano, enquanto a Espanha já havia adotado o gregoriano, comum hoje em todo o Ocidente. Assim, o 23 de abril em que Shakespeare morreu corresponde ao nosso 3 de maio. O bardo inglês, portanto, se foi dez dias após o romancista espanhol — e ainda há a tese de que Cervantes teria morrido no dia 22. Nada que atrapalhe as celebrações, é claro, e elas já estão a todo vapor desde o início do ano pelo mundo, inclusive no Brasil. A confusão de datas, porém, acrescenta à festa uma dimensão farsesca que provavelmente divertiria os dois autores.
A diferença de calendários é também um bom lembrete da distância entre os mundos de Shakespeare — a turbulenta Inglaterra da rainha Elizabeth imersa em conspirações — e de Cervantes — a Espanha opulenta que vivia seu Século de Ouro. Apesar disso, é grande a tentação de imaginar que os gigantes das letras se conheceram, ou ao menos se leram, como mostram livros e filmes dedicados ao assunto.
Já a hipótese de que eles se leram tem um defensor de peso, o historiador francês Roger Chartier. Especialista na história do livro e da leitura, Chartier publicou em 2011 o ensaio “Cardenio entre Cervantes e Shakespeare” (Civilização Brasileira), que investiga a relação entre os dois autores a partir de um fato curioso. A peça “A história de Cardenio”, atribuída a Shakespeare e seu colaborador John Fletcher, é protagonizada por um personagem saído das páginas de “Dom Quixote”. Cardenio é um homem amargurado que narra ao Cavaleiro da Triste Figura a desventura amorosa que o levou a ter a mulher de sua vida roubada por um figurão. A peça elimina Quixote e se concentra na história de amor.
Leia mais reportagem de Guilherme Freitas e Luiz Felipe Reis
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