quarta-feira, novembro 21

Feitiço brasileiro

Ela era alemã, e seu nome era Maria. Esse é o nome de mulher mais comum no mundo. Maria é grafada dessa maneira em português, latim, espanhol, galego, italiano, catalão, alemão, sueco, norueguês, ocitano, islandês, sardo, romeno; às vezes muda uma ou duas letras finais, como Mary, em inglês, Marie em holandês, Maren em dinamarquês, Mari em galês, Marija em servo-croata, Mari em esloveno e albanês, Marika em húngaro, Maryen em turco, Malia em havaiano…

Chega, estou me exibindo, eu tenho esse defeito, ou característica, sou bem exibicionista, mas não daqueles que sofrem de uma forma de perversão sexual que consiste em exibir as partes íntimas, não, não, meu exibicionismo é pura ostentação.

Pavel Chudnovsky

Enfim, voltando à minha amiga alemã, eu a conheci em Berlim. Alguém, não me lembro quem, nos apresentou dizendo que ela sabia falar e escrever português muito bem e queria conhecer pessoas que falassem essa língua. Maria era uma mulher muito bonita, na casa dos trinta e poucos (só não vou dizer o nome completo dela porque esta é uma história verídica, tudo que eu conto aqui aconteceu realmente). Depois de algum tempo estávamos conversando na cama, e fodendo, é claro, foder com ela era muito bom.

Voltei para o Brasil, mas Maria e eu nos correspondíamos com frequência, mandávamos cartas longas, com poemas, enfim, era mais uma oportunidade para eu me exibir. Um dia a Maria me disse que estava vindo ao Brasil.

Fui esperá-la no aeroporto. Ela chegou, como sempre com vestido de seda, a saia um pouco acima do joelho, certamente de uma daquelas marcas francesas caras, cheia de anéis, colar de pérolas, pulseira de pedras preciosas.

“Estas joias eu comprei em Paris, eu adoro ouro e brilhantes, principalmente esmeraldas”, ela disse quase enfiando o anel na minha cara. “Os sapatos são Roger Vivier, não existe outra marca tão boa em todo o mundo.”

Ela também tinha o seu lado exibicionista.

Levei-a para minha casa, eu moro num apartamento que ocupa um andar inteiro, num prédio na praia, num bairro elegante — caramba! já estou me exibindo novamente, mas isso tudo é verdade, eu evito me gabar, ainda nem disse que sou um homem bonito.

No mesmo dia em que chegou, Maria me disse que queria ir na macumba. Praias, ela conhecia muitas, mas ouvira falar em macumba, uma cerimônia religiosa de pretos e brancos idiotas que acreditam que espíritos podem baixar mediante batuque de tambores e cantilenas.

“Você acredita em macumba, José?”

Claro que o meu nome verdadeiro não é José. O único nome verdadeiro aqui é Maria.

“Eu acredito em saci-pererê”, respondi.

“O que é isso?”

“É uma espécie de duende. Pode ser branco ou preto, usa cachimbo e um gorro vermelho. Luta capoeira.”

“Está falando sério?”

“Claro que estou falando sério. Esqueci de dizer que ele, o saci-pererê, tem apenas uma perna.”

“E como é que ele anda?”, perguntou Maria forçando um tom irônico na voz.

“Dando pulinhos. Quando subo as escadas da igreja da Penha de joelhos sempre encontro lá no pátio da igreja um saci-pererê. Mas só falo com o saci se ele for preto. Não gosto de saci-pererê branco, eles são mentirosos.”

“Você pensa que é muito engraçado?”

“Eu sou muito engraçado, tenho orgulho disso.”

“E quando é que nós vamos a uma macumba?”

“Sexta-feira. As macumbas legítimas são às sextas-feiras, vou investigar o melhor lugar. Hoje é segunda, temos alguns dias para fazer amor.”

Ficamos fodendo segunda, terça, quarta e quinta o dia inteiro e também fodemos na sexta de manhã. Eu e a Maria tínhamos uma libido, uma pulsão sexual muito forte.

A macumba era à noite, num terreiro que ficava num bairro distante do local onde eu morava. Não vou dizer onde era, esta é uma história verídica, como já disse, tudo que conto aqui aconteceu realmente e não quero dar pistas para que descubram minha identidade. Sou uma pessoa importante, tenho que me proteger, neste mundo de hoje as pessoas vivem fazendo mexericos pelo celular.

"chegamos ao terreiro da ialorixá ou mãe de santo, a sacerdotisa-chefe daquele terreiro de candomblé" Foto: Mario Tama / GettyImages

Fomos de carro, andamos um longo tempo por uma estrada barrenta até que chegamos ao terreiro da ialorixá ou mãe de santo, a sacerdotisa-chefe daquele terreiro de candomblé. Não existe mais o babalaô, o sacerdote supremo masculino, depois da morte do último deles, Martiniano do Bonfim, também conhecido como Ojé L’adê, que procurou reforçar o conceito de pureza nagô consultando os babalorixás através dos candomblés do povo kelu, da nação ioruba.

“O povo brasileiro é muito supersticioso, talvez porque a maioria seja de mestiços, e os mestiços, os negros em geral, temem coisas inócuas, depositam confiança em coisas absurdas, sei que você não é mestiço, é cético, mas o povo brasileiro…”, dizia Maria.

Afinal chegamos no terreiro. A mãe de santo, dona Dida, era uma mulher velha, gorda, que estava vestida de branco. No centro do terreiro, ao som dos tambores, várias mulheres, também de branco, dançavam em círculo. Ela olhou para Maria e disse:

“Misifia…” só entendi isso, o resto devia ser em ioruba, língua creio que congolesa.

Maria sussurrou no meu ouvido:

“Esses negros brasileiros são muito primitivos, ignorantes, aliás, na verdade, acho que o povo brasileiro em geral…”

O som dos atabaques não deixou que eu entendesse o resto. A roda de macumbeiras começou a dançar e a cantar, ao som dos atabaques e tambores, em torno de mim e de Maria. Então, inesperadamente, dona Dida apareceu perto de mim e de Maria e disse:

“Misifia…”

Como sempre, não entendi o resto. Então a mãe de santo tirou o colar, depois os anéis de esmeralda, depois a pulseira de ouro, depois os sapatos da Maria, que não esboçou qualquer reação, parecia embriagada. Descalça, Maria começou a dançar seguindo a roda das macumbeiras, todas negras, destacando-se com sua cabeleira loura como se fosse um tocha de fogo.

As macumbeiras e Maria dançaram por algum tempo. Depois os tambores silenciaram. Abracei Maria que, lentamente, voltou a si.

A mãe de santo, dona Dida, entregou as joias e os sapatos para Maria dizendo “Misifia” etc.

Voltamos para casa, passamos pela estrada barrenta, chegamos no asfalto. Eu e Maria em silêncio. Ela fingia que nada havia ocorrido.

Nunca tocamos nesse assunto.

Como eu disse, só acredito no saci-pererê.

Maria voltou para a Alemanha. Mas enviamos e-mails, um para o outro, quase que diariamente. Isso durante mais de dez anos. Um dia recebi uma mensagem que me deixou muito animado. Maria dizia que estava vindo ao Brasil e queria me ver.

Ela chegaria dentro de dez dias. Na véspera de sua chegada, não consegui dormir, nervoso, ansioso, tive medo de ter um ataque cardíaco.

Afinal, depois de muito sofrimento ela chegou. Me ligou do aeroporto.

“Meu amor, cheguei, estou indo para sua casa.”

Fui ver a minha cara no espelho. Escolhi a roupa que devia usar, minhas mãos tremiam.

Tocaram a campainha.

Fui atender.

Abri a porta, não era Maria. Era uma mulher gorda, enorme.

“Sim?”, eu disse.

“Sou eu, não está me reconhecendo?”

Fiquei calado.

“Sou eu, Maria.”
Rubem Fonseca,93 anos, publica nova coletânea de contos, "Carne crua" (Nova Fronteira)

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