(quatro pelotões de atiradores)
mandadas conter os guerrilheiros numa agitação absurda e constante, e mais um morto aqui, e mais um morto acolá, mal alimentados, mal instalados, cheios de cansaço e revolta. De longe em longe o Comando enviava o capelão a amansar-nos a alma com umas missinhas, às vezes ao jantar
(jantar às seis horas porque quase noite já e, a seguir, chatices bélicas)
onde os quatro oficiais que éramos comiam quase merda numa quase cabana, o nosso vocabulário tornava-se mais pesado, às vezes tanto que eu aconselhava o padre
– Vá até lá fora um bocadinho que a conversa não está para saias
(os mecânicos eram tratados por Rodas)
mandei vir uma cadeira para o doente se sentar, um pedaço de lençol para o amarrarem à cadeira, uma tira no peito, outra na barriga, outra nos tornozelos a fim de evitar pontapés, uma última nos pulsos destinada a obviar possíveis azevias na pantufa, chamei o atirador com menos pontaria, expliquei-lhe
– Daqui em diante és dentista
entreguei-lhe uma turquês e proporcionei-lhe o curso após uma aula teórica densa e complexa:
– Estás a ver esta tenaz? É canja: apontas o instrumento à boca, apanhas o que estiver a chatear, puxas para fora e acabam-se os incómodos. Se por acaso o doente protestar enfias-lhe o joelho nas costelas, que é como se faz lá em Portugal e aquilo cai-te logo na mãozinha que é uma beleza.
Pedi uma bata velha a um maqueiro
– E andas com isto vestido porque a partir de agora és doutor
o Rodas, a partir daí, além de Rodas ficou doutor também e a tenaz tornou-se a sua companhia favorita. Só houve um problema: os restantes camaradas começaram a afastar-se dele mas as dores de dentes desataram a diminuir de forma considerável, para além do dentista se haver transformado de súbito num solitário porque, incompreensivelmente, os restantes heróis quase não lhe falavam, o que entristecia o doutor embora eu lhe aclarasse as meninges argumentando que a solidão era o destino dos génios mas que depois de defunto seria admiradíssimo, perspectiva que, não sei porquê, feitios, não me pareceu tê-lo alegrado muito. Quem o veio salvar da melancolia, na qual principiavam a notar-se impulsos suicidas, foi o capelão, enviado pelo Comando para nos encher a alma de Avé Marias libertadoras. O capelão, que desembarcou da avioneta agarrado à bochecha, disse-me logo
– Trago um problema num molar que não vejo nada
informei-o
– Descanse que daqui a dez minutos está porreirinho da Silva, tenho cá um dentista do caneco à sua espera.
Chamou-se o doutor, que veio de tenaz em punho, pedi ao capelão que se sentasse na cadeira, amarrámo-lo como um chouriço, solicitei com bons modos ao santo sacerdote
– Abra a boca e reze
solicitei ao Rodas
– E tu vê lá se me fazes isso como deve ser
o Rodas para o padre, cheio de delicadezas uma vez que os verdadeiros cientistas são uma joia de pessoas
– Abra a boca senhor prior
com o capelão a olhar-me aterrado, sem poder falar porque a tenaz lhe enchia a boca enquanto o dentista puxava, esmagando o joelho naquilo que, a pouco e pouco, ia deixando de ser o torax. Mas o facto é que o dente saiu. Não sei qual, espero que aquele que doía
(sou um homem de Fé)
mas saiu. Posso jurar, tive-o na mão. Só não percebo o motivo que fez com que o santo homem nunca mais nos aparecesse. Tornei a vê-lo ao mudarmos para a Baixa do Cassanje, mas não pude conversar com a bondosa criatura visto que desatou logo a fugir. É triste que haja pessoas mal agradecidas.António Lobo Antunes
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