quinta-feira, janeiro 31
Assim começa o livro....
Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se. Como se teria formado a arreigada superstição, ou convicção firme, que é, em muitos casos, a expressão alternativa paralela, ninguém hoje o recorda, embora, por obra e fortuna daquele conhecido jogo de ouvir o conto e repeti-lo com vírgula nova, usassem distrair as avós francesas a seus netinhos com a fábula de que, naquele mesmo lugar, comuna de Cerbère, departamento dos Pirenétis Orientais, ladrara, nas gregas e mitológicas eras, um cão de três cabeças que ao dito nome de Cerbère respondia, se o chamava o barqueiro Caronte, seu tratador. Outra coisa que igualmente não se sabe é por que mutações orgânicas teria passado o famoso e altissonante canídeo até chegar à mudez histórica e comprovada dos seus descendentes de uma cabeça só, degenerados. Porém, e este ponto de doutrina só raros o desconhecem, sobretudo se pertencem à geração veterana, o cão Cérbero, que assim em nossa portuguesa língua se escreve e deve dizer, guardava terrivelmente a entrada do inferno, para que dele não ousassem sair as almas, e então, quiçá por misericórdia final de deuses já moribundos, calaram-se os cães futuros para a toda restante eternidade, a ver se com o silêncio se apagava da memória a ínfera região. Mas, não podendo o sempre durar sempre, como explicitamente nos tem ensinado a idade moderna, bastou que nestes dias, a centenas de quilómetros de Cerbère, em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde, bastou que a mulher chamada Joana Carda riscasse o chão com a vara de negrilho, para que todos os cães de além saíssem à rua vociferantes, eles que, repete-se, nunca tinham ladrado. Se a Joana Carda alguém vier a perguntar que ideia fora aquela sua de riscar o chão com um pau, gesto antes de adolescente lunática do que de mulher cabal, se não pensara nas consequências de um acto que parecia não ter sentido, e esses, recordai-vos, são os que maior perigo comportam, talvez ela responda, Não sei o que me aconteceu, o pau estava no chão, agarrei-o e fiz o risco, Nem lhe passou pela ideia que poderia ser uma varinha de condão, Para varinha de condão pareceu-me grande, e as varinhas de condão sempre eu ouvi dizer que são feitas de ouro e cristal, com um banho de luz e uma estrela na ponta, Sabia que a vara era de negrilho, Eu de árvores conheço pouco, disseram-me depois que negrilho é o mesmo que ulmeiro, sendo ulmeiro o mesmo que olmo, nenhum deles com poderes sobrenaturais, mesmo variando os nomes, mas, para o caso, estou que um pau de fósforo teria causado o mesmo efeito, Por que diz isso, O que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, não se pode resistir -lhe, mil vezes o ouvi à gente mais velha, Acredita na fatalidade, Acredito no que tem de ser.
quarta-feira, janeiro 30
Sou provinciano
Tiago Galo |
Manuel Bandeira , "Andorinha, Andorinha"
terça-feira, janeiro 29
Foi assim
Susa Monteiro |
(porquê em cifra Santo Deus?)
a anunciar que me nascera uma menina. É difícil descrever o que senti. Lembro-me que me apeteceu matar os cabrões de Lisboa que me haviam mandado para ali. Matá-los mesmo, juro, matá-los mesmo. Fui sozinho para a beira do arame, o mais longe possível dos meus camaradas porque me apetecia chorar. E aí fiquei que tempos, voltado para a chama numa mistura de sentimentos que não sei descrever, embrulhado em lágrimas de alegria, desespero e ódio, repetindo
– Cabrões cabrões cabrões
e depois, à medida que o tempo corria, os abraços apertados e tristes
(tão apertados e tão tristes)
dos outros rapazes. Sem palavras: de que serviam as palavras? Andei para ali que tempos na areia, a cambalear como um tonto. Isto não perdoo. Não perdoarei nunca. Mas continuo a sentir a carne viva da amizade deles, que sempre foi tão importante para mim. Isto no Chiúme, no sítio pior do batalhão, era junho. Até um mês como junho pode ser tristíssimo. O meu camarada Eleutério, que sempre que ia para a mata regressava cadavérico, colocou-me a palma no ombro. E não podem imaginar o que uma palma ajuda, com os falcões por cima e as folhas das árvores a tremerem, tremerem, quase tanto como eu tremia. Depois nada, salvo eu sozinho sentado na cama, a olhar a G3 encostada à parede. O Eleutério olhou para mim e olhou para ela sem dizer nada, claro, para quê falar? Recordo-me de haver pensado
– E se eu não chego a vê-la?
Como aconteceu ao meu primo Quim Zé, e nisto eis-me outra vez na Vespa do Quim Zé, sempre com paciência para o miúdo que eu era, a passear-me em Benfica, agarrado às costas dele, todo vaidoso. Gostava de ti, primo, eras bom e paciente para mim, não te esqueci nunca, nunca te esquecerei, fui com os meus pais assistir à chegada do teu caixão, a pensar
– Oxalá a Ana Maria
(a irmã dele de que eu gostava tanto, ainda gosto)
a pensar
– Oxalá a Ana Maria saiba mexer na Vespa.
Demorei quase cinco meses a espreitar o meu bebé ao vir de licença a Lisboa, onde passei trinta dias quase sempre deitado na cama, mirando o tecto, a contar os dias que faltavam para regressar àquele inferno, com uma criança loira, de olhos claros, a dormir no meu quarto. A minha laranjinha, como eu lhe chamava, a minha laranjinha, eu sempre de olhos cheios de Angola, tão aflito, tão tenso de raiva. O Quim Zé morreu de um tiro só, pensava-se que do Pedro Afamado, o Mata-Alferes. Pode ser, pode não ser, o que importa? De qualquer maneira não foi o Pedro Afamado, foram os tais cabrões de Lisboa que o mataram, o Pedro Afamado fazia o que lhe mandavam, tal como nós, só que ele lutava pela sua terra, em relação à qual tinha mais direito do que eu. Pronto, foi assim. Mas para quê tanta violência, tanta injustiça, tanto sofrimento? Voltei ao fim de vinte e sete meses daquilo a que o meu camarada e amigo de coração Ernesto Melo Antunes chamava um erro formidável, um erro de uma maldade atroz. Meu Deus as lágrimas que apesar de tudo consegui congelar na parte de trás dos olhos. Lembro-me do capitão
– Matei um homem de costas, doutor, matei um homem de costas para nós
numa perplexidade e num sofrimento que se palpava. E eu a ouvi-lo engolindo-me a mim mesmo, porque era eu quem se atravessava na minha própria garganta. Passaram anos sobre isto tudo e de vez em quando estou lá, palavra de honra, de vez em quando estou lá. Não era apenas um erro formidável, Ernesto, era uma estupidez formidável. Porquê, porquê, porquê? E tudo isto no país mais bonito que visitei, sob estrelas que não conhecia, negros miseráveis perto dos brancos miseráveis que éramos, miúdos atirados para um espaço que não nos pertencia com a estação das chuvas a crescer, a crescer.
Agora eis-me aqui em Lisboa a escrever isto. Eis-me aqui em Lisboa mas nunca saí inteiramente de lá. Já não tenho camuflado, já não tenho arma, já não tenho cabelo loiro. O que tenho eu então? O que aconteceu à minha G3, o que me aconteceu a mim? Se contasse isto ao Quim Zé aposto que ele me respondia
– Senta-te aí atrás na Vespa
e me levava a passear por Benfica até as lágrimas me secarem todas no interior das pálpebras.
segunda-feira, janeiro 28
Um poema
Joe Coffey |
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...
Miguel Torga
Assim começa o livro...
Havia três noites que eu não dormia. Na quarta, por volta de meia‑noite, peguei uma tesoura, uma lanterna, uma alavanca e penetrei sem ruído numa igreja, decidido a ver o esqueleto e a tocar as ossadas que havia seis anos minha imaginação revestia de uma forma celeste e que minha razão ia restituir ao eterno vazio contemplando‑as com calma.
Cheguei à pedra do Hic est, ergui‑a sem muito esforço e comecei a descer a escada; lembrava‑me de que havia doze degraus. Mas não havia descido cinco e minha cabeça já estava perturbada. Ignoro o que acontecia dentro de mim: se eu não tivesse passado por isso, nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tanto terror covarde. Fui tomado pelo frio da febre, o medo fez tremer meus dentes; deixei cair a lanterna; senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo.
Um espírito sincero não teria tentado superar essa aflição. Ele teria desistido de perseguir uma provação acima de suas forças; teria adiado seu encontro para um momento mais favorável; teria esperado com paciência e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais. Mas eu não queria desmentir a mim mesmo. Estava indignado com minha fraqueza; queria romper e atrofiar minha imaginação. Continuei a descer nas trevas, mas meu espírito esvaneceu e me tornei vítima das ilusões e dos fantasmas.
Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Érebo. Enfim, cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz lúgubre pronunciar estas palavras que parecia confiar às entranhas da terra:
“Ele não subirá a escada.”
Nesse instante, ouvi erguer‑se em minha direção, do fundo de abismos invisíveis, mil vozes que cantavam num ritmo estranho:
“Vamos destruí‑lo! Que ele seja destruído! O que ele vem fazer no meio dos mortos? Que seja levado de volta ao sofrimento! Reconduzido à vida! ”
Então uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no último degrau de uma escada tão vasta como a base de uma montanha. Atrás de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho; à minha frente, apenas o vazio, o abismo do éter, o azul sombrio da noite sob meus pés e sobre minha cabeça. Fui tomado por uma vertigem e, saindo da escada, sem pensar que fosse possível subir por ela, lancei‑me no vazio, blasfemando. Mas mal pronunciara as sentenças de maldição, o vazio se encheu de formas e cores confusas; aos poucos, percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria, e avancei tremendo. A escuridão ainda reinava ao meu redor; mas o fundo da abóbada iluminava‑se com um clarão vermelho, revelando formas estranhas e terríveis da arquitetura. Todo esse monumento parecia, por sua força e tamanho gigantesco, ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras. Não distinguia os objetos mais próximos de mim; mas à medida que avançava, adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro, e meu terror aumentava a cada passo. Os enormes pilares que sustentavam a abóbada, e até mesmo os ornatos desta, representavam homens de um tamanho sobrenatural, todos entregues a torturas espantosas: uns, suspensos pelos pés e espremidos por serpentes monstruosas, mordiam o solo, e seus dentes penetravam no mármore; outros, afundados no chão até a cintura, eram puxados de cima, uns pelos braços com a cabeça no alto, outros, de cabeça para baixo, voltavam‑se para capitéis compostos por figuras humanas debruçadas sobre eles e obstinadas a torturá‑los. Outros pilares representavam um enlaçamento de figuras que se devoravam, e cada uma delas mostrava apenas um tronco roído até os joelhos ou ombros, mas cuja cabeça furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto. Havia os que, esfolados pela metade, se esforçavam, com a parte superior do corpo, para desprender a pele da outra metade, presa ao capitel ou retida na base; e ainda outros, que, ao se debaterem, haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressão de ódio e sofrimento indizíveis. Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos, revestidos de forma humana, mas de uma feiúra espantosa, ocupados em decepar cadáveres, devorar membros de corpos humanos, torcer vísceras, refestelar‑se de despojos sanguinolentos. Da abóbada pendiam, no lugar de fechos e rosáceas, crianças mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes, ou que, fugindo atemorizadas dos devoradores de carne humana, se precipitavam com a cabeça para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo
Cheguei à pedra do Hic est, ergui‑a sem muito esforço e comecei a descer a escada; lembrava‑me de que havia doze degraus. Mas não havia descido cinco e minha cabeça já estava perturbada. Ignoro o que acontecia dentro de mim: se eu não tivesse passado por isso, nunca poderia acreditar que a coragem da vaidade pudesse superar tanta fraqueza e tanto terror covarde. Fui tomado pelo frio da febre, o medo fez tremer meus dentes; deixei cair a lanterna; senti que minhas pernas dobravam‑se sob meu corpo.
Um espírito sincero não teria tentado superar essa aflição. Ele teria desistido de perseguir uma provação acima de suas forças; teria adiado seu encontro para um momento mais favorável; teria esperado com paciência e simplicidade a serenidade de suas faculdades mentais. Mas eu não queria desmentir a mim mesmo. Estava indignado com minha fraqueza; queria romper e atrofiar minha imaginação. Continuei a descer nas trevas, mas meu espírito esvaneceu e me tornei vítima das ilusões e dos fantasmas.
Pareceu‑me que continuava a descer e que mergulhava nas profundezas do Érebo. Enfim, cheguei lentamente a um lugar plano e escutei uma voz lúgubre pronunciar estas palavras que parecia confiar às entranhas da terra:
“Ele não subirá a escada.”
Nesse instante, ouvi erguer‑se em minha direção, do fundo de abismos invisíveis, mil vozes que cantavam num ritmo estranho:
“Vamos destruí‑lo! Que ele seja destruído! O que ele vem fazer no meio dos mortos? Que seja levado de volta ao sofrimento! Reconduzido à vida! ”
Então uma fraca claridade perfurou as trevas e percebi que estava no último degrau de uma escada tão vasta como a base de uma montanha. Atrás de mim havia milhares de degraus de ferro vermelho; à minha frente, apenas o vazio, o abismo do éter, o azul sombrio da noite sob meus pés e sobre minha cabeça. Fui tomado por uma vertigem e, saindo da escada, sem pensar que fosse possível subir por ela, lancei‑me no vazio, blasfemando. Mas mal pronunciara as sentenças de maldição, o vazio se encheu de formas e cores confusas; aos poucos, percebi que estava no mesmo plano de uma imensa galeria, e avancei tremendo. A escuridão ainda reinava ao meu redor; mas o fundo da abóbada iluminava‑se com um clarão vermelho, revelando formas estranhas e terríveis da arquitetura. Todo esse monumento parecia, por sua força e tamanho gigantesco, ter sido talhado numa montanha de ferro ou numa caverna de lavas negras. Não distinguia os objetos mais próximos de mim; mas à medida que avançava, adquiriam um aspecto cada vez mais sinistro, e meu terror aumentava a cada passo. Os enormes pilares que sustentavam a abóbada, e até mesmo os ornatos desta, representavam homens de um tamanho sobrenatural, todos entregues a torturas espantosas: uns, suspensos pelos pés e espremidos por serpentes monstruosas, mordiam o solo, e seus dentes penetravam no mármore; outros, afundados no chão até a cintura, eram puxados de cima, uns pelos braços com a cabeça no alto, outros, de cabeça para baixo, voltavam‑se para capitéis compostos por figuras humanas debruçadas sobre eles e obstinadas a torturá‑los. Outros pilares representavam um enlaçamento de figuras que se devoravam, e cada uma delas mostrava apenas um tronco roído até os joelhos ou ombros, mas cuja cabeça furiosa era viva o suficiente para morder e devorar o que estava por perto. Havia os que, esfolados pela metade, se esforçavam, com a parte superior do corpo, para desprender a pele da outra metade, presa ao capitel ou retida na base; e ainda outros, que, ao se debaterem, haviam arrancado lanhos de carne que os mantinham pendurados com uma expressão de ódio e sofrimento indizíveis. Ao longo do friso havia em cada lado uma fileira de seres imundos, revestidos de forma humana, mas de uma feiúra espantosa, ocupados em decepar cadáveres, devorar membros de corpos humanos, torcer vísceras, refestelar‑se de despojos sanguinolentos. Da abóbada pendiam, no lugar de fechos e rosáceas, crianças mutiladas que pareciam soltar gritos lancinantes, ou que, fugindo atemorizadas dos devoradores de carne humana, se precipitavam com a cabeça para baixo e pareciam prestes a se estatelar no solo
George Sand, "Esperidião"
domingo, janeiro 27
'O trabalho de um romancista é sonhar acordado'
Escritor best-seller e favorito nas apostas do Nobel, com seus 69 anos o japonês Haruki Murakami calcula que sua literatura lhe permitirá continuar perseguindo “vidas diferentes” durante mais uma década. Avesso a entrevistas, recebeu com exclusividade o El País Semanal no Equador para falar do poder da imaginação, dos medos, das maratonas, do casamento e da vontade de experimentar coisas novas. Desde agosto apresenta em Tóquio um programa de rádio no qual cultiva outra de suas paixões: a música.
"Todos vivemos em uma espécie de jaula. Pode ser de ouro e bonita, mas é a jaula que cabe a cada um”, diz ele, que vende livros aos milhões e cujo nome soa sem falta como candidato ao Nobel há uma década. Haruki Murakami, autor de romances como Tokio blues, Dance, dance, dance e 1Q84, e escritor japonês traduzido para 50 idiomas, fez da literatura um salvo-conduto para burlar essa prisão. E não conceder entrevistas faz parte de sua lenda.
Murakami, aquele que corre uma maratona por ano há 37 anos, escreve improvisando como um jazzista e tem uma coleção de 10.000 vinis? O que pontua suas histórias com personagens sem nome, canções, túneis, gatos, solidões, espectros, sonhos, crueldades e volta ao amor e ao desamor —várias vezes— como se na verdade pudéssemos entendê-los?
Esse mesmo Murakami (Quioto, 1949), fã dos Beatles e casado como Lennon há 47 anos com uma mulher chamada Yoko, acaba de entrar no salão do quarto andar do hotel que ocupa hoje o solar da primeira casa construída no centro colonial de Quito, fundada por Francisco Pizarro no século XVI. O narrador que imagina romances por encomenda com livros iniciais de 600 páginas e tem os leitores ligados como viciados, esperando as próximas 400, visita a América do Sul pela primeira vez para a comemoração de um século de relações entre Equador e Japão. “É perigoso correr aqui por causa da altitude, mas visitei Galápagos, que é muito bonito. Falei também em um teatro onde umas 2.000 pessoas me fizeram sentir um Bruce Springsteen”, brinca.
Usa barba grisalha de vários dias e calça tênis esportivos pretos com cadarços cor-de-laranja chamativos, que fazem temer que sairá correndo se as perguntas o incomodarem. Confirma no papo o que foi lido: tempos atrás comprou a casa no Havaí onde o filme Perdidos foi rodado. “Foi por acaso, não conhecia; quando vi, gostei, mas foram outros que disseram: ‘É a sua casa!’. Não consegui reconhecer”.
Cortês, ao falar em inglês, cultiva um tique: antes de responder, alonga os silêncios como se os degustasse, e desvia os olhos para a direita buscando palavras que o expliquem nesse idioma alheio. Seu décimo quarto romance é a desculpa para este encontro: O assassinato do comendador se refere a uma cena da ópera Don Giovanni, de Mozart, e a uma pintura encontrada pelo protagonista, um retratista em plena crise existencial. Será publicado em dois volumes (o primeiro saiu em novembro, pela Companhia das Letras, no Brasil) e só no Japão vendeu 1.800.000 exemplares.
Isso é mais do que suficiente para imaginar toda a cidade de Barcelona (bebês incluídos) lendo ao mesmo tempo o homem que agora sorri, enquanto lembra de sua visita a Santiago de Compostela em 2009. “Os alunos de um colégio [IES Rosalía de Castro] escolheram Kafka à beira-mar como o livro do ano e viajei para receber o prêmio. Sempre me lembro disso: eram garotos muito inteligentes. Gostei da Galícia; os mariscos e o vinho são maravilhosos”.
sexta-feira, janeiro 25
Assim começa o livro...
Os mestres da Cidadela que registram as histórias de Westeros usaram a Conquista de Aegon como marco de toque ao longo dos últimos trezentos anos. As datas de nascimentos, mortes, batalhas e outras ocasiões são classificadas ora como dc (Depois da Conquista), ora como ac (Antes da Conquista).
Eruditos genuínos sabem que essa datação está longe de ser precisa. A conquista dos sete reinos por Aegon Targaryen não ocorreu em um único dia. Passaram-se mais de dois anos entre o desembarque de Aegon e sua coroação em Vilavelha... e mesmo nesse momento a Conquista continuava ncompleta, visto que Dorne permaneceu insubmissa. Tentativas esporádicas de trazer os dorneses ao domínio persistiram durante todo o reinado de Aegon e por boa parte do reinado de seus filhos, de modo que é impossível determinar uma data exata para o fim das Guerras da Conquista.
Até mesmo a data de início é alvo de equívocos. Muitos presumem, erroneamente, que o reinado de Aegon i Targaryen começou no dia em que ele desembarcou na foz da Torrente da Água Negra, sob as três colinas que viriam a se tornar a cidade de Porto Real. Não é verdade. O dia do Desembarque de Aegon foi celebrado pelo rei e por seus descendentes, porém, na realidade, o Conquistador considerava o início de seu reinado o dia em que ele foi coroado e ungido no Septo Estrelado de Vilavelha pelo Alto Septão da Fé. Essa coroação ocorreu dois anos após o Desembarque de Aegon, muito depois de todas as três maiores batalhas das Guerras da Conquista terem sido travadas e vencidas. Assim, pode-se considerar que a maior parte da verdadeira conquista de Aegon aconteceu entre 2 e 1 ac, Antes da Conquista.
Os Targaryen tinham puro sangue valiriano, eram senhores de dragões de linhagem ancestral. Doze anos antes da Destruição de Valíria (114 ac), Aenar Targaryen vendeu suas propriedades na Cidade Franca e nas Terras do Longo Verão e se mudou, com suas esposas, sua fortuna, seus escravos, dragões, irmãos, parentes e filhos para Pedra do Dragão, uma cidadela insular desolada sob uma montanha fumegante no mar estreito.
Em seu auge, Valíria foi a maior cidade do mundo conhecido, o centro da civilização. Atrás de seus muros reluzentes, dezenas de casas rivais disputavam o poder e a glória na corte e no conselho, ascendendo e caindo em uma luta interminável, sutil e muitas vezes selvagem pela dominação. Os Targaryen estavam longe de ser os mais poderosos dentre os senhores dos dragões, e seus rivais encararam a fuga deles para Pedra do Dragão como um ato de rendição e de covardia. Mas Daenys, a filha donzela do lorde Aenar que para sempre viria a ser conhecida como Daenys, a Sonhadora,
havia antevisto a ruína de Valíria pelo fogo. E, com o advento da Destruição, doze anos depois, os Targaryen foram os únicos senhores dos dragões a sobreviver.
Eruditos genuínos sabem que essa datação está longe de ser precisa. A conquista dos sete reinos por Aegon Targaryen não ocorreu em um único dia. Passaram-se mais de dois anos entre o desembarque de Aegon e sua coroação em Vilavelha... e mesmo nesse momento a Conquista continuava ncompleta, visto que Dorne permaneceu insubmissa. Tentativas esporádicas de trazer os dorneses ao domínio persistiram durante todo o reinado de Aegon e por boa parte do reinado de seus filhos, de modo que é impossível determinar uma data exata para o fim das Guerras da Conquista.
Até mesmo a data de início é alvo de equívocos. Muitos presumem, erroneamente, que o reinado de Aegon i Targaryen começou no dia em que ele desembarcou na foz da Torrente da Água Negra, sob as três colinas que viriam a se tornar a cidade de Porto Real. Não é verdade. O dia do Desembarque de Aegon foi celebrado pelo rei e por seus descendentes, porém, na realidade, o Conquistador considerava o início de seu reinado o dia em que ele foi coroado e ungido no Septo Estrelado de Vilavelha pelo Alto Septão da Fé. Essa coroação ocorreu dois anos após o Desembarque de Aegon, muito depois de todas as três maiores batalhas das Guerras da Conquista terem sido travadas e vencidas. Assim, pode-se considerar que a maior parte da verdadeira conquista de Aegon aconteceu entre 2 e 1 ac, Antes da Conquista.
Os Targaryen tinham puro sangue valiriano, eram senhores de dragões de linhagem ancestral. Doze anos antes da Destruição de Valíria (114 ac), Aenar Targaryen vendeu suas propriedades na Cidade Franca e nas Terras do Longo Verão e se mudou, com suas esposas, sua fortuna, seus escravos, dragões, irmãos, parentes e filhos para Pedra do Dragão, uma cidadela insular desolada sob uma montanha fumegante no mar estreito.
Em seu auge, Valíria foi a maior cidade do mundo conhecido, o centro da civilização. Atrás de seus muros reluzentes, dezenas de casas rivais disputavam o poder e a glória na corte e no conselho, ascendendo e caindo em uma luta interminável, sutil e muitas vezes selvagem pela dominação. Os Targaryen estavam longe de ser os mais poderosos dentre os senhores dos dragões, e seus rivais encararam a fuga deles para Pedra do Dragão como um ato de rendição e de covardia. Mas Daenys, a filha donzela do lorde Aenar que para sempre viria a ser conhecida como Daenys, a Sonhadora,
havia antevisto a ruína de Valíria pelo fogo. E, com o advento da Destruição, doze anos depois, os Targaryen foram os únicos senhores dos dragões a sobreviver.
quinta-feira, janeiro 24
O sol nas prateleiras
Talvez já aqui tenha falado disto, não me recordo; mas, numa busca rápida, não encontrei nada relacionado com o BiblioSol e, como tal, corro o risco de ser repetitiva, mas paciência. Penso muitas vezes, sobretudo por não ter filhos, o que será da biblioteca que eu e o Manel fomos construindo ao longo do tempo e que se vai perigosamente ampliando todos os dias. Até porque, como muitas outras pessoas, sei de gente que se pelaria por ler e consultar alguns dos livros que ali estão, sobretudo os que já são muito difíceis de encontrar em livrarias e até em bibliotecas mais pequenas. Pois bem, Renato Soeiro e César Silva propuseram que as bibliotecas privadas passassem a ser "abertas" ao público (com o acordo dos proprietários, bem entendido), no sentido em que muitos estudantes têm se calhar de percorrer grandes distâncias para ir a uma biblioteca ler um determinado ensaio quando, provavelmente, um dos seus vizinhos o tem na estante de casa e não se importaria de lho emprestar. O BiblioSol (é este o nome do projecto) funcionaria então como uma rede de bibliotecas aberta à comunidade: cada dono de biblioteca inscrever-se-ia num site, disponibilizando-se para ser abordado por leitores à procura de obras específicas. Os leitores fariam o mesmo. E o livro procurado apareceria, provavelmente, com umas trocas de mensagens por e-mail. O BiblioSol estava inscrito no Orçamento Participativo de 2018 e, francamente, não sei se vingou porque nunca mais ouvi falar do assunto (e esta notícia que encontrei lá em casa a arrumar a secretária é de Agosto, pelo que me cheira que não tenha passado nas votações). Mas lá que era bonito, era. Até porque nos permitia falar de vez em quando com gente interessante e interessada e até poder aconselhar outros livros e autores ou receber sugestões. Enquanto, porém, nada acontece, que bata o sol nas nossas prateleiras.
quarta-feira, janeiro 23
Amanhecer em Copacabana
Amanhece, em Copacabana, e estamos todos cansados. Todos, no mesmo banco da praia. Todos, que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. O coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Ah, que coisa insuportável, a lucidez das pessoas fatigadas! Mil vezes a obtusidade dos que amam, dos que cegam de ciúmes, dos que sentem falta e saudade. Nós somos um imenso vácuo, que o pensamento ocupa friamente. E, isto, no amanhecer de Copacabana..
As pessoas e as coisas começaram a movimentar-se. A moça feia, com o seu caniche de olhos ternos. O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca. O bêbado, que vem caminhando, com um esparadrapo na boca e a lapela suja de sangue. Automóveis, com oficiais do Exército Nacional, a caminho da batalha. Ônibus colegiais e, lá dentro, os nossos filhos, com cara de sono. O banhista gordo, de pernas brancas, vai ao mar cedinho, porque as pessoas da manhã são poucas e enfrentam, sem receios, o seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos – pelo estado em que se encontra a maquillage, andou fazendo o que não devia. Os ruídos crescem e se misturam. Bondes, lotações, lambretas e, do mar, que se vinha escutando algum rumor, já não se tem o que ouvir.
Enerva-me o tom de ironia que não consigo evitar nestas anotações. Em vezes outras, quando aqui estive, no lugar destas censuras, achei sempre que tudo estava lindo e não descobri os receios do homem gordo, que vem à praia de manhã cedinho. E Copacabana é a mesma. Nós é que estamos burríssimos aqui, neste banco de praia. Nós é que estamos velhíssimos, à beira-mar. Nós é que estamos sem ressonância para a beleza e perdemos o poder de descobrir o lado interessante de cada banalidade. Um homem assim não tem direito ao amanhecer de sua cidade. Deve levantar-se do banco de praia e ir-se embora, para não entediar os outros, com a descabida má-vontade dos seus ares.
As pessoas e as coisas começaram a movimentar-se. A moça feia, com o seu caniche de olhos ternos. O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca. O bêbado, que vem caminhando, com um esparadrapo na boca e a lapela suja de sangue. Automóveis, com oficiais do Exército Nacional, a caminho da batalha. Ônibus colegiais e, lá dentro, os nossos filhos, com cara de sono. O banhista gordo, de pernas brancas, vai ao mar cedinho, porque as pessoas da manhã são poucas e enfrentam, sem receios, o seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos – pelo estado em que se encontra a maquillage, andou fazendo o que não devia. Os ruídos crescem e se misturam. Bondes, lotações, lambretas e, do mar, que se vinha escutando algum rumor, já não se tem o que ouvir.
Enerva-me o tom de ironia que não consigo evitar nestas anotações. Em vezes outras, quando aqui estive, no lugar destas censuras, achei sempre que tudo estava lindo e não descobri os receios do homem gordo, que vem à praia de manhã cedinho. E Copacabana é a mesma. Nós é que estamos burríssimos aqui, neste banco de praia. Nós é que estamos velhíssimos, à beira-mar. Nós é que estamos sem ressonância para a beleza e perdemos o poder de descobrir o lado interessante de cada banalidade. Um homem assim não tem direito ao amanhecer de sua cidade. Deve levantar-se do banco de praia e ir-se embora, para não entediar os outros, com a descabida má-vontade dos seus ares.
Antonio Maria
terça-feira, janeiro 22
Na biblioteca
O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.Manuel António Pina
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.Manuel António Pina
Coisas que causam prazer
Em um de seus ensaios mais conhecidos, Jorge Luís Borges menciona a existência de uma enciclopédia chinesa chamada Empório celestial de conhecimentos benévolos , em que os animais se dividem em (a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vira-latas, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam feito loucos, (j) inumeráveis (k) desenhados com um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o vaso, (n) que de longe parecem moscas. Ninguém até hoje conseguiu encontrar um exemplar dessa enciclopédia, mas não importa; o que importa é a conclusão a que chega Borges: “não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo.” Não, não sabemos, mas o impulso de querer ordená-lo, catalogá-lo, é irresistível. Aí deve estar a origem da ciência; e, quem sabe, também da literatura.
Corria o ano de 994 d. C. e o Alto-Conselheiro Fujiwarano Korechika, irmão da imperatriz Sadako, presenteou o casal imperial com alguns pacotes de papéis em branco de alta qualidade. A imperatriz perguntou a uma de suas damas de honra, Sei Shônagon, o que deveriam fazer com os papéis. Ela respondeu: “Talvez, nestas folhas, pudéssemos fazer um ‘Travesseiro’...” A imperatriz então entregou a ela os papéis, dizendo: “São seus. Escreva o que quiser.”
Até hoje se discute o que Sei Shônagon queria dizer com “Travesseiro”. Talvez ela estivesse se referindo ao costume de guardar anotações pessoais no compartimento de um travesseiro de madeira, talvez estivesse fazendo um trocadilho cujo sentido se perdeu no tempo. Seja como for, essa é a origem, segundo a própria autora, da obra que chegou até nós com o nome de O livro do travesseiro .
“Coisas distantes que parecem próximas. O paraíso. A travessia de um barco. A relação entre um homem e uma mulher." Mil anos depois de escritas, essas palavras aparentemente tão simples não perderam um grama da sua força poética e filosófica. E essa é apenas uma das muitas listas presentes no livro de Sei Shônagon, abarcando os tópicos mais diversos, desde “Coisas que fazem palpitar o coração” até “Coisas agora inúteis que fazem lembrar seu passado glorioso”. São catalogações breves e surpreendentes, quase tão caprichosas quanto a enciclopédia de Borges, mas também precisas e certeiras: “Coisas que são desdenhadas: muros danificados, pessoas conhecidas por seu coração bom demais”.
Essa ambiguidade taxonômica se estende também a nossas noções de “arcaico” e “moderno”. Não consigo pensar em uma realidade mais distante de nós do que o dia a dia da elite japonesa durante a dinastia Heian; e, no entanto, o estilo híbrido do livro, sua prosa transparente e os insights por ele revelados soam muitas vezes mais contemporâneos do que boa parte da literatura que se produz hoje. Em uma mesma página, podemos ser transportados do Japão pré-medieval até lugares desconhecidos dentro de nós mesmos. Na seção “Coisas que causam prazer”, por exemplo, estão incluídos itens exóticos como “poemas escritos com traços de pincel não muito finos, em puríssimo papel branco Michinoku”; mas também observações tão atemporais quanto imprevisíveis, como esta: "É muito prazeroso, em momentos de tédio, receber uma visita não tão íntima que fala comedidamente sobre as coisas da vida relacionadas a acontecimentos recentes, divertidos, desagradáveis ou inacreditáveis desta ou daquela pessoa, discernindo com firmeza o social do particular".
Prosseguindo na analogia com o umami, vejo outro elemento em comum com O livro do travesseiro : seu gosto residual suave, porém duradouro. Quando terminei de ler, não me lembrava de personagens nem de episódios, nem mesmo de alguma das várias listas memoráveis; e, no entanto, muito tempo depois eu continuava me lembrando bem do estilo, da atmosfera, do estado de espírito em que fiquei. E é em busca desse estado de espírito que eu me vejo, de tempos em tempos, retornando a esse livro notável.
Durante a dinastia Heian, os japoneses de elite, para se comunicarem por escrito, usavam os caracteres chineses; eu disse os japoneses, não as japonesas. As mulheres, mesmo as damas da corte imperial, tinham que se contentar com o sistema de transcrição fonética chamado hiragana, também conhecido como onnade (literalmente, “mão de mulher”, escrita de mulher). Esse sistema, a princípio relegado às mulheres, mais tarde se expandiu até se tornar um dos pilares do japonês moderno. Essa circunstância ajuda a entender por que algumas das mais importantes obras clássicas da literatura japonesa foram escritas por mulheres, como é o caso de O livro do travesseiro .
No Japão, O livro do travesseiro faz parte do currículo escolar obrigatório; só posso imaginar a relação ambígua que os japoneses devem ter com o livro por causa disso. Felizmente, estamos livres desse fardo. Não é a obrigação, e sim o mais soberano prazer, que nos leva a abrir as páginas e ler: “Coisas que simplesmente passam e... passam. O barco à vela. A idade das pessoas. A primavera, o verão, o outono, o inverno.”
Corria o ano de 994 d. C. e o Alto-Conselheiro Fujiwarano Korechika, irmão da imperatriz Sadako, presenteou o casal imperial com alguns pacotes de papéis em branco de alta qualidade. A imperatriz perguntou a uma de suas damas de honra, Sei Shônagon, o que deveriam fazer com os papéis. Ela respondeu: “Talvez, nestas folhas, pudéssemos fazer um ‘Travesseiro’...” A imperatriz então entregou a ela os papéis, dizendo: “São seus. Escreva o que quiser.”
Até hoje se discute o que Sei Shônagon queria dizer com “Travesseiro”. Talvez ela estivesse se referindo ao costume de guardar anotações pessoais no compartimento de um travesseiro de madeira, talvez estivesse fazendo um trocadilho cujo sentido se perdeu no tempo. Seja como for, essa é a origem, segundo a própria autora, da obra que chegou até nós com o nome de O livro do travesseiro .
“Coisas distantes que parecem próximas. O paraíso. A travessia de um barco. A relação entre um homem e uma mulher." Mil anos depois de escritas, essas palavras aparentemente tão simples não perderam um grama da sua força poética e filosófica. E essa é apenas uma das muitas listas presentes no livro de Sei Shônagon, abarcando os tópicos mais diversos, desde “Coisas que fazem palpitar o coração” até “Coisas agora inúteis que fazem lembrar seu passado glorioso”. São catalogações breves e surpreendentes, quase tão caprichosas quanto a enciclopédia de Borges, mas também precisas e certeiras: “Coisas que são desdenhadas: muros danificados, pessoas conhecidas por seu coração bom demais”.
Sei Shonagon, autora de O Livro do Travesseiro, gravura de Katsushika Hokusai (1760-1849) |
Para o leitor de hoje, O livro do travesseiro tem um sabor difícil de classificar, pois não se encaixa em nenhuma das categorias que geralmente usamos para as obras literárias. A analogia que me vem à cabeça é com o umami, o “quinto gosto”, descoberto (por pesquisadores japoneses) muito tempo depois dos tradicionais salgado, doce, azedo e amargo. Lembro-me da dificuldade de um amigo ao tentar me explicar em que consistia o tal gosto, e dizendo, por fim: “Quando você não souber bem que gosto é, então é umami”. Pois bem, O livro do travesseiro é uma espécie de livro umami. É uma reunião de mais de trezentos textos independentes, de tamanho e conteúdo variáveis, que vão desde relatos de acontecimentos da corte, com várias páginas de extensão, até opiniões sucintas sobre um tema, com apenas uma ou duas frases ("Quanto ao inverno, o bem frio. Quanto ao verão, o de calor sem igual"). Esses textos às vezes estão próximos da poesia, às vezes da narrativa, às vezes do ensaio, às vezes do discurso filosófico, sem chegar a ser nenhuma dessas coisas. Vejam por exemplo, este trecho: “Coisas que são iguais embora soem diferentes. A fala do religioso. A fala do homem, a fala da mulher. Na fala dos medíocres sempre sobram palavras. O comedimento, sim, soa elegante”. Como catalogar essas frases?
Essa ambiguidade taxonômica se estende também a nossas noções de “arcaico” e “moderno”. Não consigo pensar em uma realidade mais distante de nós do que o dia a dia da elite japonesa durante a dinastia Heian; e, no entanto, o estilo híbrido do livro, sua prosa transparente e os insights por ele revelados soam muitas vezes mais contemporâneos do que boa parte da literatura que se produz hoje. Em uma mesma página, podemos ser transportados do Japão pré-medieval até lugares desconhecidos dentro de nós mesmos. Na seção “Coisas que causam prazer”, por exemplo, estão incluídos itens exóticos como “poemas escritos com traços de pincel não muito finos, em puríssimo papel branco Michinoku”; mas também observações tão atemporais quanto imprevisíveis, como esta: "É muito prazeroso, em momentos de tédio, receber uma visita não tão íntima que fala comedidamente sobre as coisas da vida relacionadas a acontecimentos recentes, divertidos, desagradáveis ou inacreditáveis desta ou daquela pessoa, discernindo com firmeza o social do particular".
Prosseguindo na analogia com o umami, vejo outro elemento em comum com O livro do travesseiro : seu gosto residual suave, porém duradouro. Quando terminei de ler, não me lembrava de personagens nem de episódios, nem mesmo de alguma das várias listas memoráveis; e, no entanto, muito tempo depois eu continuava me lembrando bem do estilo, da atmosfera, do estado de espírito em que fiquei. E é em busca desse estado de espírito que eu me vejo, de tempos em tempos, retornando a esse livro notável.
Durante a dinastia Heian, os japoneses de elite, para se comunicarem por escrito, usavam os caracteres chineses; eu disse os japoneses, não as japonesas. As mulheres, mesmo as damas da corte imperial, tinham que se contentar com o sistema de transcrição fonética chamado hiragana, também conhecido como onnade (literalmente, “mão de mulher”, escrita de mulher). Esse sistema, a princípio relegado às mulheres, mais tarde se expandiu até se tornar um dos pilares do japonês moderno. Essa circunstância ajuda a entender por que algumas das mais importantes obras clássicas da literatura japonesa foram escritas por mulheres, como é o caso de O livro do travesseiro .
No Japão, O livro do travesseiro faz parte do currículo escolar obrigatório; só posso imaginar a relação ambígua que os japoneses devem ter com o livro por causa disso. Felizmente, estamos livres desse fardo. Não é a obrigação, e sim o mais soberano prazer, que nos leva a abrir as páginas e ler: “Coisas que simplesmente passam e... passam. O barco à vela. A idade das pessoas. A primavera, o verão, o outono, o inverno.”
segunda-feira, janeiro 21
Sem culpar o livro
Quando o som do choque entre um livro e uma cabeça é oco, o livro nem sempre é o culpadoGeorg Christoph Lightenberg
Uma casa na escuridão
Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.José Luís Peixoto, "Uma Casa na Escuridão"
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.José Luís Peixoto, "Uma Casa na Escuridão"
domingo, janeiro 20
Os livros
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo "eu"entre nós e nós?
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo "eu"entre nós e nós?
Manuel António Pina
sexta-feira, janeiro 18
A moça tecelã
Daniel F. Gerhartz |
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
Marina Colassanti
quinta-feira, janeiro 17
Momento único
Uma casa na escuridão
Marlene Boonstra |
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.
José Luís Peixoto, "Uma Casa na Escuridão"
quarta-feira, janeiro 16
Uma vida de aventuras
Mina Kawai |
Mais tarde descobri que as fronteiras são linhas inventadas que só existem nos mapas. E que o Mundo é só um e não tem linhas a separar uns países dos outros a não ser dentro da cabeça das pessoas.
A verdade é que, por causa da profissão de meu pai, vivi (depois de ter nascido, antes não me lembro…) em muitas diferentes terras e, por isso, não tenho só uma terra, tenho muitas. Uma delas é o Porto, onde vivi mais tempo do que em qualquer outra, onde nasceram as minhas filhas e onde provavelmente morrerei um dia.
Como fui durante muitos anos jornalista, mais de trinta, viajei um pouco por todo o Mundo, da América ao Japão, da China ao Brasil, da África ao Alaska. E como sou escritor tenho viajado também por dentro de mim mesmo. E por dentro das palavras. Assim, apesar de ter nascido numa terra com um grande castelo, nas margens de um pequeno rio, não pertenço a lugar nenhum, ou pertenço a muitos lugares ao mesmo tempo. Alguns desses lugares só existem na minha imaginação. Porque a imaginação, descobri-o também, é o modo mais fantástico que há de viajar.
De facto, os lugares mais distantes e mais belos onde eu alguma vez estive não vêm nos mapas. Quando tinha a tua idade, viajei pelo fundo dos mares, e desci ao centro da Terra, e fui à Lua, e aos pólos, e ao passado, e ao futuro, dentro dos livros de Júlio Verne, de Jack London, de Emílio Salgari. À noite, quando todos se iam deitar e a casa silenciosamente adormecia, partia eu para as mais emocionantes aventuras, às vezes só regressando já de madrugada. Combati nos mares do Sul contra piratas e flibusteiros ao lado de Sandokan; persegui Moby Dick, a baleia branca, no tempestuoso barco do Capitão Acab; desci o Mississipi na jangada de Huckleberry Finn; cacei búfalos nas imensas pradarias do Oeste; e, com Tintin fui preso e condenado à morte em Chicago, na China, nos Andes, e salvei-me sempre no último momento, e com ele e com o Capitão Haddock, e com a cadela Milou, perdi-me nas neves do Tibet e nos desertos da Arábia, e fui à Lua e voltei…
Como vês, tenho tido uma vida emocionante e aventurosa. Hoje lembro-me das grandes viagens e das aventuras que todas as noites começavam no meu quarto e tenho medo de não ser já capaz de vencer tantos perigos e tantas emoções. De qualquer maneira, continuo a ter livros na mesa de cabeceira, e quando saio de casa gosto sempre de levar um comigo. Porque me pode apetecer voltar a partir…
Manuel António Pina
segunda-feira, janeiro 14
Grande companhia
Aqueles que andam por aí
As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes as sinto à minha volta, não apenas a presença, o cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso
- Não fui eu quem disse isto
e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis
(invisíveis?)
densas de humanidade, tão próximas. Umas alturas muitas, outras uma ou duas apenas por terem que fazer noutro lado, no caso de saírem não vale a pena preocuparmo-nos: têm a chave e a prova que têm a chave está em que entram, silenciosas, amigas, penduram os casacos no bengaleiro, sorriem. Onde se encontra o pai? Na cadeira do costume. Onde se encontra a avó? Lá fora, no quintal, a alinhar a roupa no frio, ou a fazer festas à cadela com a mão leve de sempre. Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Para quê visitar ausências? Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto. Segredam-nos
- Não faleci, sabes?
e não faleceram, é verdade, continuam, não na nossa lembrança, continuam de facto, pertinho. Quase sem ruído mas, tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixámos de estar juntos. Nunca deixámos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. Na época em que andei muito doente houve sempre palmas no meu ombro, a ajudarem. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem. O meu avô
- Não te aborrece escrever?
ele, a quem nunca vi ler um livro, instalava-se diante dos canteiros, em silêncio, a olhar as árvores, suponho que a olhar o Brasil da sua infância. Avôzinho. Tão diferente de mim: muito moreno, de cabelo encaracolado, lindo. Continua por aí, não deixe de continuar por aí. Um amigo meu, que disse a missa de corpo presente da mãe, contou-me que, ao voltar a casa semanas depois, a primeira pergunta que fez foi
- A mãe?
seguro de a achar num compartimento qualquer. E, de certeza
(isto já não me contou)
que deu com ela. Que dá com ela a cada passo. Nem é preciso interrogar seja quem for, a mãe encarrega-se de resolver o problema, haverá algum problema que uma mãe não resolva? Não é infantilidade da minha parte afirmar isto: é assim. Frase da minha, ontem
- A gente tem que se divertir ao divertir as crianças, porque se a gente não se divertir elas não se divertem
e eu de boca aberta. É que não há coisa mais séria que o divertimento. Os nossos brinquedos foram uma coisa importantíssima para o meu pai. Confiscava-nos alguns para seu gozo pessoal, secreto. A gravidade apaixonada com que ele jogava. Tenho os postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, derramados de ternura para um garotinho de dois anos. O paizinho gostava que o Janjão, etc. Andam os dois por aí agora, o Janjão e o paizinho. E, se calhar, o Janjão continua a receber postais. E de certeza que o Janjão continua a receber postais. É verdade não é, senhor, que continua a receber postais? Mesmo de bata, no hospital, mesmo professor, mesmo importante? Postais. Há quanto tempo não recebo postais. Uma carta de vez em quando, papelada da agência, das editoras, dos tradutores mas postais, postais-postais, népia. E aqueles que andam por aí, sei lá porquê, não me mandam nenhum. Ou mandam-se a si mesmas e acham que chega. E, em certo sentido, chega. Mas umas palavrinhas, num cartão, caíam bem, há alturas em que umas palavrinhas num cartão caem bem. Não sei porquê mas caem bem. Não faço nenhum livro agora, ando vazio, e o vazio começa a inquietar-me. E se isto acabou? Terei secado? Apareceu-me uma coisa mas não dava, de maneira que fiquei sem nada. As falsas partidas, os equívocos, pensar que se consegue e não se consegue. O que julgarão desta impotência aqueles que andam por aí? Não lhes falo nisso, claro, é o género de assuntos que guardo para mim, guardo quase tudo para mim. A casa frente ao mar que nunca tive, por exemplo, tenho prédios feios. Algumas árvores e prédios feios. Que silêncio. A minha filha, no computador, entretem-se com o que chama um jogo de estratégia, em lugar de se sentar no meu colo. Olho para o écran e não percebo raspas, deve ser uma estratégia complicadíssima. Afirma que está a construir coisas. Ao menos que haja alguém ao pé de mim a construir seja o que for, compenetrada, solene. Se olhar bem o seu ombro vejo a palma que poisou nela. Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. Basta um bocadinho de atenção para a ouvir cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.António Lobo Antunes
- Não fui eu quem disse isto
e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis
(invisíveis?)
densas de humanidade, tão próximas. Umas alturas muitas, outras uma ou duas apenas por terem que fazer noutro lado, no caso de saírem não vale a pena preocuparmo-nos: têm a chave e a prova que têm a chave está em que entram, silenciosas, amigas, penduram os casacos no bengaleiro, sorriem. Onde se encontra o pai? Na cadeira do costume. Onde se encontra a avó? Lá fora, no quintal, a alinhar a roupa no frio, ou a fazer festas à cadela com a mão leve de sempre. Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Para quê visitar ausências? Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto. Segredam-nos
- Não faleci, sabes?
e não faleceram, é verdade, continuam, não na nossa lembrança, continuam de facto, pertinho. Quase sem ruído mas, tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixámos de estar juntos. Nunca deixámos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. Na época em que andei muito doente houve sempre palmas no meu ombro, a ajudarem. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem. O meu avô
- Não te aborrece escrever?
ele, a quem nunca vi ler um livro, instalava-se diante dos canteiros, em silêncio, a olhar as árvores, suponho que a olhar o Brasil da sua infância. Avôzinho. Tão diferente de mim: muito moreno, de cabelo encaracolado, lindo. Continua por aí, não deixe de continuar por aí. Um amigo meu, que disse a missa de corpo presente da mãe, contou-me que, ao voltar a casa semanas depois, a primeira pergunta que fez foi
- A mãe?
seguro de a achar num compartimento qualquer. E, de certeza
(isto já não me contou)
que deu com ela. Que dá com ela a cada passo. Nem é preciso interrogar seja quem for, a mãe encarrega-se de resolver o problema, haverá algum problema que uma mãe não resolva? Não é infantilidade da minha parte afirmar isto: é assim. Frase da minha, ontem
- A gente tem que se divertir ao divertir as crianças, porque se a gente não se divertir elas não se divertem
e eu de boca aberta. É que não há coisa mais séria que o divertimento. Os nossos brinquedos foram uma coisa importantíssima para o meu pai. Confiscava-nos alguns para seu gozo pessoal, secreto. A gravidade apaixonada com que ele jogava. Tenho os postais que o meu avô lhe mandava da guerra em França, derramados de ternura para um garotinho de dois anos. O paizinho gostava que o Janjão, etc. Andam os dois por aí agora, o Janjão e o paizinho. E, se calhar, o Janjão continua a receber postais. E de certeza que o Janjão continua a receber postais. É verdade não é, senhor, que continua a receber postais? Mesmo de bata, no hospital, mesmo professor, mesmo importante? Postais. Há quanto tempo não recebo postais. Uma carta de vez em quando, papelada da agência, das editoras, dos tradutores mas postais, postais-postais, népia. E aqueles que andam por aí, sei lá porquê, não me mandam nenhum. Ou mandam-se a si mesmas e acham que chega. E, em certo sentido, chega. Mas umas palavrinhas, num cartão, caíam bem, há alturas em que umas palavrinhas num cartão caem bem. Não sei porquê mas caem bem. Não faço nenhum livro agora, ando vazio, e o vazio começa a inquietar-me. E se isto acabou? Terei secado? Apareceu-me uma coisa mas não dava, de maneira que fiquei sem nada. As falsas partidas, os equívocos, pensar que se consegue e não se consegue. O que julgarão desta impotência aqueles que andam por aí? Não lhes falo nisso, claro, é o género de assuntos que guardo para mim, guardo quase tudo para mim. A casa frente ao mar que nunca tive, por exemplo, tenho prédios feios. Algumas árvores e prédios feios. Que silêncio. A minha filha, no computador, entretem-se com o que chama um jogo de estratégia, em lugar de se sentar no meu colo. Olho para o écran e não percebo raspas, deve ser uma estratégia complicadíssima. Afirma que está a construir coisas. Ao menos que haja alguém ao pé de mim a construir seja o que for, compenetrada, solene. Se olhar bem o seu ombro vejo a palma que poisou nela. Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. Basta um bocadinho de atenção para a ouvir cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.António Lobo Antunes
domingo, janeiro 13
O passageiro clandestino
O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa claraboia do convés, sob a qual havia espaço suficiente para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha de pão; a fome roía-o, e, depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna, a morrer de fome e frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrava os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restava-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele de palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado.
Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.
José Rodrigues Miguéis, "O Passageiro Clandestino"
Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.
José Rodrigues Miguéis, "O Passageiro Clandestino"
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