Às sete da manhã, a terra ainda está fresca. O capim fura uma neblina rasteira que não ultrapassa a base dos troncos. As árvores sabem muito, desenham uma paisagem de riscos que se estende até onde os olhos aguentam ver. No ar limpo e no silêncio, o cheiro fértil da terra e o som de uma enorme multidão de insectos, aves que dispõem deste céu sem fim. O início do dia parece o início do mundo e, no entanto, há rastos que o vento apagou nos caminhos, mas que ainda se sentem.
Patrícia Santos Pinto |
Quando passamos pela casa dos leões, são estas memórias que se distinguem naquelas ruínas sujas.
Às vezes, quando passamos, há animais que ficam parados a olhar para nós. Fixam-nos com a mesma curiosidade com que os fixamos a eles. Há tanto que queremos dizer-lhes, mas esse instante dura pouco. Distinguem-nos um gesto, visível ou invisível, e estremecem numa corrida que parece sem fim ou direção. Com pena, ficamos a vê-los afastarem-se. Talvez um dia, voltemos a merecer a confiança dos animais.
A tarde é tingida por um calor seco. Como uma nuvem de pó, ar espesso e amarelecido pelo sol. O som dos insetos que marcam o horizonte é agora diferente. As raízes dos embondeiros continuam a segurar a terra.
Quando seremos capazes de dar valor ao que é realmente importante? É fácil esquecê-la, subestimá-la, mas é sempre a terra que está lá, por baixo de tudo o que fomos capazes de construir, por baixo de todo o alcatrão ou cimento. Quando seremos capazes de ser consequentes com aquilo que é inegável? A terra não depende de nós, a água não depende de nós, a luz não depende de nós; somos nós que dependemos da terra, da água, da luz. Somos nós que dependemos da natureza.
O sol vermelho desce atrás das árvores. Os ramos são veias e artérias de encontro a um céu de cores que vão mudando muito devagar. Tudo parece acontecer a essa velocidade. Este silêncio está por baixo de todos os sons com que enchemos o planeta.
A Gorongosa é esperança. Envolvendo as comunidades locais, contribuindo para o seu desenvolvimento e restaurando a vida selvagem no parque, o projeto de recuperação da Gorongosa é esperança em Moçambique, mas não só; é esperança em África, mas não só; é esperança no mundo inteiro.
A noite chega com todas as estrelas. O céu imenso, polvilhado. Medimos o nosso tamanho a olhar para este céu.
A vida é muito maior do que apenas a nossa vida.
A terra prepara-se para um novo dia. Os animais sentem-na debaixo das patas, sabem que dependem dela para tudo. Da mesma maneira, sentem a noite. Sabem que têm de sobreviver-lhe, porque os animais não esqueceram. Os leões não querem guerra. Os gnus não querem guerra. Os javalis-africanos não querem guerra. Os pala-pala não querem guerra. Os elefantes não querem guerra. Os animais, todos eles, só querem viver. Os animais não esqueceram.
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