Minha avó e François Mauriac
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François Mauriac |
Não era vistosa a biblioteca de minha avó. Ficava na sala, à esquerda de quem entrava, e não atraía propriamente visitantes. Ficava assimilada à casa, assentada ali, camuflada na sombra, de frente para o velho piano. Uma discreta biblioteca de livros lidos, cheirando às mãos de quem os folheou. Entre os autores de maior incidência, um dia percebi, estava François Mauriac em muitos diferentes títulos, que depois vieram para minha biblioteca e que eu agora leio como quem investiga, como quem sonda onde alguém uma vez esteve, por onde passou seu pensamento, onde se guardaram as coisas não ditas que eram somente suas. Terá minha avó concordado mentalmente quando leu, lá pela página sessenta de um dos livros, que “as mulheres não se lembram do que não sentem”? Ou que “a morte é o sal do amor”? Os “humores acerbos”, que vêm de pressentimentos, também ela os tinha, sem dúvida. Mas será que alguma vez, como uma das personagens de frieza ou cólera inconfessável, também ela em pensamento “se desfez da sua ninhada”? Qual era a ferida secreta da avó? Quais os demônios dela? Se cada personagem de François Mauriac tem os seus… Haveria nela um silêncio capaz de transbordar para a sala, e da sala para a casa, da casa para o mundo? Será que aprendeu com Mauriac a gerir torvelinhos de alma e decisões tomadas na surdina ou apenas viu espelhadas nos livros essas coisas já muito sabidas das famílias? Ilhas de segredos, olhos de lobo, olhos das fechaduras, tecidos de intrigas. Passo por essas páginas herdadas de uma muito discreta biblioteca (agora assimilada por outra) como se penetrasse o tempo mais velado da vida da avó e espreitasse seu prazer pelas perdições mentais, corrupções e redenções invisíveis. Não há nada que se revele a partir dessa leitura e, no entanto, sim: está tudo ali.
Mariana Ianelli
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