Respondi que aquela palavra tanto pode magoar quanto celebrar ou acarinhar. O que magoa é o sentimento que nela coloca quem a utiliza. Os etimologistas divergem quanto à origem do termo mulato. Uma corrente acredita que a mesma vem de “mula”, com forte carga pejorativa. Outros defendem uma tese infinitamente mais interessante: mulato viria de uma antiga palavra árabe, mowallad , usada durante os oito séculos de domínio africano da península ibérica, para nomear os filhos de muçulmanos com cristãos. Não havendo consenso entre os especialistas, cada um é livre de escolher a tese que lhe parecer mais sensata, ou mais bonita. Eu prefiro a última.
Na última vez que visitei Marrocos, o funcionário da Alfândega começou a rir quando lhe mostrei o passaporte.
— Onde você arranjou este nome e este passaporte? — perguntou-me em francês, meio a sério, meio a brincar, depois de ter tentado falar comigo em árabe. — Você é igual a nós. Você é daqui!
Quase retorqui: “Descendo de mowallads ” — mas tive receio que ele não entendesse a minha pronúncia, ou de que a palavra já nem exista mais.
Pensei nisto há poucos dias, em Berlim, enquanto escutava a psicóloga e artista portuguesa Grada Kilomba, com quem partilhei uma mesa num festival literário. Grada esteve na Flip este ano. O seu livro, “Memórias da plantação”, foi o mais vendido em Paraty durante o evento. Grada está em guerra contra a língua portuguesa, que considera moldada por um pensamento racista, colonial e machista. A palavra mulato seria apenas um exemplo deste pensamento. Gostei de a ouvir. O discurso de Grada inquieta, perturba, desarruma convicções. Uma língua é tanto o resultado de um pensamento dominante, com a soma de todos os seus preconceitos, quanto ajuda a firmá-los. Entendo isso, Grada. Concordo. Só que mulato talvez não seja o melhor exemplo.
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