terça-feira, abril 1
A bordo do cargueiro
O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa clarabóia do convés, sob a qual havia espaço suficiente para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha de pão; a fome roía-o, e, depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu: Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna, a morrer de fome e frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrava os parcos haveres. Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restava-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele de palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade. Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado.
Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.
José Rodrigues Miguéis, "O Passageiro Clandestino"
Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora a pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo, tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má - morte, um calhambeque a desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.
José Rodrigues Miguéis, "O Passageiro Clandestino"
Bons livros ruins
Não faz muito tempo, uma editora me incumbiu de escrever a introdução para a reimpressão de um romance de Leonard Merrick. Essa editora, ao que parece, vai relançar uma série de romances menores e até certo ponto esquecidos do século xx. Trata-se de um serviço valioso nestes tempos carentes de livros, e invejo muito a pessoa cujo trabalho será vasculhar as caixas de livros, baratos, à caça de seus exemplares preferidos da meninice.
Mas, afora thrillers, havia os escritores bem-humorados menores do período. Por exemplo, Pett Ridge — embora eu reconheça que seus livros já não pareçam de todo legíveis —, Edith Nesbit (The treasure seekers [Os caçadores de tesouro]), George Birmingham, que foi bom enquanto permaneceu longe da política, o pornográfico Arthur Binstead (o “Pitcher” de Pink ’Un and the pelican [O rosado e o pelicano]) e, se livros americanos podem ser incluídos, as histórias do menino Penrod, de Newton Booth Tarkington. Superior a esses era Barry Pain. Creio que ainda se encontram alguns dos escritos bem-humorados de Pain, mas, para quem topar com ele, recomendo um livro que hoje deve ser raríssimo: The octave of Claudius [A oitava de Cláudio], um brilhante exercício do macabro. De uma época um pouco posterior, houve Peter Blundell, que escreveu na veia de William Wymark Jacobs sobre cidades portuárias do Extremo Oriente e que de forma inexplicável parece bastante esquecido, apesar de ter recebido um elogio de H. G. Wells em texto publicado.
No entanto, todos os livros a que me referi são abertamente literatura de “escapismo”. Constituem agradáveis refúgios em nossa memória, cantos sossegados por onde a mente pode vagar curiosa de vez em quando, mas que quase não pretendem ter algo a ver com a vida real. Existe outro tipo de bom livro ruim com intenções mais sérias que acho que nos fala alguma coisa sobre a natureza do romance e os motivos de sua decadência atual. Durante os últimos cinquenta anos, houve uma série de escritores — alguns deles continuam a escrever — que é totalmente impossível chamar de “bons” de acordo com qualquer padrão literário, mas que são romancistas genuínos e parecem alcançar sinceridade em parte por não se deixarem inibir pelo bom gosto. Nessa categoria coloco o próprio Leonard Merrick, W. L. George, John Davys Beresford, Ernest Raymond, May Sinclair e — num nível um pouco mais baixo, mas ainda essencialmente semelhante — Arthur Stuart-Menteith Hutchinson.
Muitos deles foram escritores prolíficos, com uma produção de qualidade certamente variada. Em cada caso, penso em um ou dois livros excepcionais: por exemplo, Cynthia, de Merrick; A candidate for truth [Um candidato à verdade], de John Davys Beresford; Caliban, de W. L. George; The combined maze [O labirinto combinado], de May Sinclair; e We, the accused [Nós, os acusados], de Ernest Raymond. Em cada um desses, o autor foi capaz de se identificar com os personagens que imaginou, sentir com eles e solicitar compreensão em nome deles, com uma espécie de abandono que pessoas mais hábeis teriam dificuldade de alcançar. Eles ressaltam o fato de que o refinamento intelectual pode ser uma desvantagem para um romancista, assim como seria para um comediante do teatro de variedades.
Tomemos, por exemplo, We, the accused, de Ernest Raymond — uma história de homicídio estranhamente sórdida e convincente, baseada talvez no caso Crippen [médico londrino que em 1910 matou a mulher, Cora Crippen]. Acho que se beneficia bastante do fato de que o autor capta apenas em parte a patética vulgaridade das pessoas sobre quem escreve e por isso não as despreza. Talvez até — como An american tragedy [Uma tragédia americana], de Theodore Dreiser — se beneficie um pouco da forma canhestra e prolixa como é escrito; detalhes se acumulam sobre detalhes, quase nem há uma só tentativa de seleção, e com isso se constrói pouco a pouco um efeito de crueldade terrível e excruciante. O mesmo ocorre em A candidate for truth. Nesse caso não há mesmo caráter canhestro, mas há a mesma capacidade de encarar com seriedade os problemas das pessoas comuns. O mesmo ocorre em Cynthia e na primeira parte de Caliban. Grande parte do que W. L. George escreveu eram tolices da pior qualidade, mas neste livro específico, baseado na carreira do britânico Alfred Northcliffe, conseguiu fazer algumas descrições memoráveis e verdadeiras da vida da classe média baixa de Londres. Partes do livro são provavelmente autobiográficas, e uma das vantagens dos bons escritores ruins é não terem vergonha de escrever autobiografia. O exibicionismo e a autocomiseração são as perdições do romancista, mas se ele tiver muito medo disso o talento criativo pode sofrer.
A existência da boa literatura ruim — o fato de podermos nos entreter, ficar irrequietos ou mesmo emocionados com um livro que nosso intelecto simplesmente se recusa a levar a sério — é um lembrete de que arte não é a mesma coisa que cerebração. Imagino que, por qualquer critério que se possa conceber, Carlyle seria considerado mais inteligente do que Trollope. No entanto Trollope continua legível, e Carlyle não: apesar de toda a sua engenhosidade, não teve sequer a perspicácia de escrever num inglês direto e de fácil compreensão. Nos romancistas, quase tanto quanto nos poetas, é difícil identificar a ligação entre inteligência e força criativa. Um bom romancista pode ser um prodígio de autodisciplina como Flaubert ou um intelectual disperso como Dickens. Talento suficiente para originar dezenas de escritores comuns foi despejado nos pretensos romances de Wyndham Lewis, por exemplo Tarr ou Snooty baronet [O baronete arrogante]. No entanto, exigiria um esforço enorme ler um desses livros do começo ao fim. Falta-lhes uma qualidade indefinível, uma espécie de vitamina literária que existe até num livro como If winter comes [Se o inverno chegar, de Hutchinson].
Talvez o exemplo máximo do bom livro ruim seja A cabana do pai Tomás [de Harriet Beecher Stowe]. É um livro risível sem essa intenção, cheio de incidentes melodramáticos absurdos; é também profundamente emocionante e essencialmente verdadeiro; difícil dizer qual qualidade pesa mais do que a outra. Mas A cabana do pai Tomás tenta, afinal, ser sério e tratar do mundo real. Que tal os escritores francamente escapistas, os fornecedores de sensações fortes e humor “leve”? Que tal Sherlock Holmes, Vice-versa [de F. Anstey], Drácula [de Bram Stoker], Helen’s babies [de John Habberton] ou As minas do rei Salomão [de Henry Rider Haggard]? São todos livros absurdos, é indiscutível, livros que nos predispõem a caçoar deles, e não a nos entreter com eles, e que mal foram levados a sério mesmo pelos autores; mas sobreviveram e talvez continuem a sobreviver. Tudo o que podemos dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que precisemos de distração de vez em quando, a literatura “leve” tem lugar reservado; e também podemos dizer que existe a pura habilidade, ou graça inata, que pode ter mais valor de sobrevivência do que a erudição ou o poder intelectual. Existem canções do teatro de variedades que são poemas melhores do que a quase totalidade do conteúdo que integra as antologias:
Vem pra onde beber custa quase nada,
Vem pra onde a caneca é quase uma tina,
Vem pra onde o patrão é mais camarada,
Vem pro bar que fica logo ali na esquina!
Ou também:
Dois olhos bem roxinhos —
Oh, mas que maçada!
Só por falar com a pessoa errada,
Dois olhos bem roxinhos!
Eu preferiria ter escrito um desses versos a, digamos, “The blessed damozel” [A donzela abençoada, de Dante Gabriel Rossetti] ou “Love in the valley” [Amor no vale, de George Meredith]. E como prova do que digo, aposto que A cabana do pai Tomás sobreviverá às obras completas de Virginia Woolf ou de George Moore, embora não conheça critério estritamente literário que mostre onde reside a superioridade.
Tribune, novembro de 1945.
George Orwell, "Dentro da baleia e outros ensaios"
Um tipo de livro que dificilmente produzimos nos dias de hoje, mas que floresceu com enorme riqueza no fim do século XIX e início do século XX, é o que Chesterton chamou de “bom livro ruim”: ou seja, o tipo de livro sem pretensões literárias, mas que continua legível depois de obras mais sérias terem perecido. Com certeza, livros notáveis nessa linha são Raffles [nome do ladrão “cavalheiro”, personagem de uma série de romances de Ernest William Hornung] e as histórias de Sherlock Holmes, cujos lugares foram preservados, enquanto inúmeros “romances desajustados”, “documentos humanos” e “denúncias terríveis” disso e daquilo caíram no merecido esquecimento. (Quem envelheceu melhor: Conan Doyle ou George Meredith?) Quase na mesma classificação coloco os primeiros contos de Richard Austin Freeman — “The singing bone” [O osso canoro] e “The eye of Osiris” [O olho de Osíris], entre outros —, Max Carrados, de Ernest Bramah, e, baixando um pouco o nível, o thriller tibetano de Guy Boothby, Dr. Nikola, uma espécie de versão escolar de Travels in Tartary [Viagens na Tartária], de Evariste-Regis Huc, que provavelmente faria de uma visita real à Ásia Central um anticlímax desolador.
Mas, afora thrillers, havia os escritores bem-humorados menores do período. Por exemplo, Pett Ridge — embora eu reconheça que seus livros já não pareçam de todo legíveis —, Edith Nesbit (The treasure seekers [Os caçadores de tesouro]), George Birmingham, que foi bom enquanto permaneceu longe da política, o pornográfico Arthur Binstead (o “Pitcher” de Pink ’Un and the pelican [O rosado e o pelicano]) e, se livros americanos podem ser incluídos, as histórias do menino Penrod, de Newton Booth Tarkington. Superior a esses era Barry Pain. Creio que ainda se encontram alguns dos escritos bem-humorados de Pain, mas, para quem topar com ele, recomendo um livro que hoje deve ser raríssimo: The octave of Claudius [A oitava de Cláudio], um brilhante exercício do macabro. De uma época um pouco posterior, houve Peter Blundell, que escreveu na veia de William Wymark Jacobs sobre cidades portuárias do Extremo Oriente e que de forma inexplicável parece bastante esquecido, apesar de ter recebido um elogio de H. G. Wells em texto publicado.
No entanto, todos os livros a que me referi são abertamente literatura de “escapismo”. Constituem agradáveis refúgios em nossa memória, cantos sossegados por onde a mente pode vagar curiosa de vez em quando, mas que quase não pretendem ter algo a ver com a vida real. Existe outro tipo de bom livro ruim com intenções mais sérias que acho que nos fala alguma coisa sobre a natureza do romance e os motivos de sua decadência atual. Durante os últimos cinquenta anos, houve uma série de escritores — alguns deles continuam a escrever — que é totalmente impossível chamar de “bons” de acordo com qualquer padrão literário, mas que são romancistas genuínos e parecem alcançar sinceridade em parte por não se deixarem inibir pelo bom gosto. Nessa categoria coloco o próprio Leonard Merrick, W. L. George, John Davys Beresford, Ernest Raymond, May Sinclair e — num nível um pouco mais baixo, mas ainda essencialmente semelhante — Arthur Stuart-Menteith Hutchinson.
Muitos deles foram escritores prolíficos, com uma produção de qualidade certamente variada. Em cada caso, penso em um ou dois livros excepcionais: por exemplo, Cynthia, de Merrick; A candidate for truth [Um candidato à verdade], de John Davys Beresford; Caliban, de W. L. George; The combined maze [O labirinto combinado], de May Sinclair; e We, the accused [Nós, os acusados], de Ernest Raymond. Em cada um desses, o autor foi capaz de se identificar com os personagens que imaginou, sentir com eles e solicitar compreensão em nome deles, com uma espécie de abandono que pessoas mais hábeis teriam dificuldade de alcançar. Eles ressaltam o fato de que o refinamento intelectual pode ser uma desvantagem para um romancista, assim como seria para um comediante do teatro de variedades.
Tomemos, por exemplo, We, the accused, de Ernest Raymond — uma história de homicídio estranhamente sórdida e convincente, baseada talvez no caso Crippen [médico londrino que em 1910 matou a mulher, Cora Crippen]. Acho que se beneficia bastante do fato de que o autor capta apenas em parte a patética vulgaridade das pessoas sobre quem escreve e por isso não as despreza. Talvez até — como An american tragedy [Uma tragédia americana], de Theodore Dreiser — se beneficie um pouco da forma canhestra e prolixa como é escrito; detalhes se acumulam sobre detalhes, quase nem há uma só tentativa de seleção, e com isso se constrói pouco a pouco um efeito de crueldade terrível e excruciante. O mesmo ocorre em A candidate for truth. Nesse caso não há mesmo caráter canhestro, mas há a mesma capacidade de encarar com seriedade os problemas das pessoas comuns. O mesmo ocorre em Cynthia e na primeira parte de Caliban. Grande parte do que W. L. George escreveu eram tolices da pior qualidade, mas neste livro específico, baseado na carreira do britânico Alfred Northcliffe, conseguiu fazer algumas descrições memoráveis e verdadeiras da vida da classe média baixa de Londres. Partes do livro são provavelmente autobiográficas, e uma das vantagens dos bons escritores ruins é não terem vergonha de escrever autobiografia. O exibicionismo e a autocomiseração são as perdições do romancista, mas se ele tiver muito medo disso o talento criativo pode sofrer.
A existência da boa literatura ruim — o fato de podermos nos entreter, ficar irrequietos ou mesmo emocionados com um livro que nosso intelecto simplesmente se recusa a levar a sério — é um lembrete de que arte não é a mesma coisa que cerebração. Imagino que, por qualquer critério que se possa conceber, Carlyle seria considerado mais inteligente do que Trollope. No entanto Trollope continua legível, e Carlyle não: apesar de toda a sua engenhosidade, não teve sequer a perspicácia de escrever num inglês direto e de fácil compreensão. Nos romancistas, quase tanto quanto nos poetas, é difícil identificar a ligação entre inteligência e força criativa. Um bom romancista pode ser um prodígio de autodisciplina como Flaubert ou um intelectual disperso como Dickens. Talento suficiente para originar dezenas de escritores comuns foi despejado nos pretensos romances de Wyndham Lewis, por exemplo Tarr ou Snooty baronet [O baronete arrogante]. No entanto, exigiria um esforço enorme ler um desses livros do começo ao fim. Falta-lhes uma qualidade indefinível, uma espécie de vitamina literária que existe até num livro como If winter comes [Se o inverno chegar, de Hutchinson].
Talvez o exemplo máximo do bom livro ruim seja A cabana do pai Tomás [de Harriet Beecher Stowe]. É um livro risível sem essa intenção, cheio de incidentes melodramáticos absurdos; é também profundamente emocionante e essencialmente verdadeiro; difícil dizer qual qualidade pesa mais do que a outra. Mas A cabana do pai Tomás tenta, afinal, ser sério e tratar do mundo real. Que tal os escritores francamente escapistas, os fornecedores de sensações fortes e humor “leve”? Que tal Sherlock Holmes, Vice-versa [de F. Anstey], Drácula [de Bram Stoker], Helen’s babies [de John Habberton] ou As minas do rei Salomão [de Henry Rider Haggard]? São todos livros absurdos, é indiscutível, livros que nos predispõem a caçoar deles, e não a nos entreter com eles, e que mal foram levados a sério mesmo pelos autores; mas sobreviveram e talvez continuem a sobreviver. Tudo o que podemos dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que precisemos de distração de vez em quando, a literatura “leve” tem lugar reservado; e também podemos dizer que existe a pura habilidade, ou graça inata, que pode ter mais valor de sobrevivência do que a erudição ou o poder intelectual. Existem canções do teatro de variedades que são poemas melhores do que a quase totalidade do conteúdo que integra as antologias:
Vem pra onde beber custa quase nada,
Vem pra onde a caneca é quase uma tina,
Vem pra onde o patrão é mais camarada,
Vem pro bar que fica logo ali na esquina!
Ou também:
Dois olhos bem roxinhos —
Oh, mas que maçada!
Só por falar com a pessoa errada,
Dois olhos bem roxinhos!
Eu preferiria ter escrito um desses versos a, digamos, “The blessed damozel” [A donzela abençoada, de Dante Gabriel Rossetti] ou “Love in the valley” [Amor no vale, de George Meredith]. E como prova do que digo, aposto que A cabana do pai Tomás sobreviverá às obras completas de Virginia Woolf ou de George Moore, embora não conheça critério estritamente literário que mostre onde reside a superioridade.
Tribune, novembro de 1945.
George Orwell, "Dentro da baleia e outros ensaios"
Aconteceu na ilha de Cat
Conversa de mulher que diz que vem, mas não vem, e talvez ainda venha, deixa um homem completamente no ora-veja, olhando a cara preta do telefone, sem cabeça para trabalhar nem coragem de sair. Liguei o rádio, coisa que raramente faço. Numa estação qualquer, um sujeito com voz de evangelista se dirigia a mim, querido irmão, e tomava intimidades, dizia que eu estava atolado em pecados, principalmente em concupiscência. Ah, quem me dera! Quem me dera concupiscenciar a esmo nesta sexta-feira chuventa e quase fria. Será que o telefone não vai tocar? Abri a carta de uma leitora. Ela me perguntava se resolver palavras cruzadas era bom para enriquecer o vocabulário. Não sei; também não sei se vale a pena enriquecer o vocabulário, talvez seja melhor a gente reduzi-lo, usar somente poucas palavras e usá-las muito pouco. Mas a carta me deu uma inspiração doentia: matar o tempo com palavras cruzadas. Fui à esquina, comprei três revistinhas especializadas. Quando eu ia chegando de volta, o telefone estava tocando.
Quando consegui abrir a porta e corri para atender, ele parou de tocar; bolas! Peguei um dicionário, entreguei-me de corpo e alma às palavras cruzadas.
Enfrentei cerca de 20 problemas; isto não é vantagem, porque as tais revistinhas trazem no fim, para ajudar a gente, uma lista de palavras difíceis. Estimada leitora: decifrar palavras cruzadas ajuda muito a enriquecer o vocabulário... de decifrador de palavras cruzadas.
Explico-me: as pessoas que fazem palavras cruzadas têm um vocabulário especial, e não apenas um vocabulário como uma História, uma Geografia e todo um tipo de cultura. Para elas as palavras não têm o sentido comum que nós, os leigos, entendemos, mas um sentido especial, cavado no dicionário, de preferência em um dicionário especializado em palavras cruzadas. A princípio a gente acha difícil — antigo navio de combate é ram; arrieira é má; filho de Jacó é Gad; rio da Sibéria é Om; da Polônia é Ros; da Holanda é Aa; afluente do Reno é Aar; 10? letra do alfabeto árabe é ra; medida de Amsterdã para líquidos é aam; medida sueca é só am; e — coisa espantosa! — luz que emana da ponta dos dedos é od; dificílimo, como se vê. Mas não tanto: porque os rios são sempre aqueles mesmos, o cabo do Canadá, Or, a cidade da Caldéia é sempre Ur, a antiga cidade da ilha de Creta é sempre Aso, por mais cretinizante que isto possa parecer. Em matéria de tecidos, tudo o que você precisa saber é que um tecido fino como escumilha chama-se ló; provavelmente você sabe que pedra de moinho é mó, mas esta palavra só aparece nos problemas mais fáceis, nos outros o que se usa é cano de moinho, cal. No terreno da coreografia, não quebre a cabeça: espécie de dança é sempre ril; e porco é sempre to, uma das ilhas Lucaias é exatamente, infalivemente, Cat. Imagino que haja outras Lucaias, mas só aquela é usada, assim como do calendário hebreu só usamos o derradeiro mês, Adar, e de todo o material de guerra antigo dos turcos só enfrentamos uma flecha denominada oc; o único abrigo para o gado é ramada; gato selvagem é marisco; nadar é remar; e folha de palma é ola. Enfim, adquiri preciosos conhecimentos e pensei mesmo em escrever um conto começando assim: “Na ilha de Cat, vestida de ló, ela dançava o ril, e das pontas de seus dedos emanava o od, quando chegou um ram vindo de Or com turcos atirando ocs...” Mas felizmente o telefone tocou.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Quando consegui abrir a porta e corri para atender, ele parou de tocar; bolas! Peguei um dicionário, entreguei-me de corpo e alma às palavras cruzadas.
Enfrentei cerca de 20 problemas; isto não é vantagem, porque as tais revistinhas trazem no fim, para ajudar a gente, uma lista de palavras difíceis. Estimada leitora: decifrar palavras cruzadas ajuda muito a enriquecer o vocabulário... de decifrador de palavras cruzadas.
Explico-me: as pessoas que fazem palavras cruzadas têm um vocabulário especial, e não apenas um vocabulário como uma História, uma Geografia e todo um tipo de cultura. Para elas as palavras não têm o sentido comum que nós, os leigos, entendemos, mas um sentido especial, cavado no dicionário, de preferência em um dicionário especializado em palavras cruzadas. A princípio a gente acha difícil — antigo navio de combate é ram; arrieira é má; filho de Jacó é Gad; rio da Sibéria é Om; da Polônia é Ros; da Holanda é Aa; afluente do Reno é Aar; 10? letra do alfabeto árabe é ra; medida de Amsterdã para líquidos é aam; medida sueca é só am; e — coisa espantosa! — luz que emana da ponta dos dedos é od; dificílimo, como se vê. Mas não tanto: porque os rios são sempre aqueles mesmos, o cabo do Canadá, Or, a cidade da Caldéia é sempre Ur, a antiga cidade da ilha de Creta é sempre Aso, por mais cretinizante que isto possa parecer. Em matéria de tecidos, tudo o que você precisa saber é que um tecido fino como escumilha chama-se ló; provavelmente você sabe que pedra de moinho é mó, mas esta palavra só aparece nos problemas mais fáceis, nos outros o que se usa é cano de moinho, cal. No terreno da coreografia, não quebre a cabeça: espécie de dança é sempre ril; e porco é sempre to, uma das ilhas Lucaias é exatamente, infalivemente, Cat. Imagino que haja outras Lucaias, mas só aquela é usada, assim como do calendário hebreu só usamos o derradeiro mês, Adar, e de todo o material de guerra antigo dos turcos só enfrentamos uma flecha denominada oc; o único abrigo para o gado é ramada; gato selvagem é marisco; nadar é remar; e folha de palma é ola. Enfim, adquiri preciosos conhecimentos e pensei mesmo em escrever um conto começando assim: “Na ilha de Cat, vestida de ló, ela dançava o ril, e das pontas de seus dedos emanava o od, quando chegou um ram vindo de Or com turcos atirando ocs...” Mas felizmente o telefone tocou.
Rubem Braga, "Recado de primavera"
Guardador
A rua ruim de novo.
Abafava, de quente, depois de umas chuvadas de vento, desastrosas e medonhas, em janeiro. Desregulava. Um calorão azucrinava o tumulto, o movimento, o rumor das ruas. Mesmo de dia, as baratas saíam de tocas escondidas, agitadas. Suor molhava a testa e escorria na camisa dos que tocavam pra baixo e pra cima.
O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra vez, a gente sentia. Ia arriar feio.
Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco da árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações que a praça vem sofrendo. Tenta a vida naquelas calçadas.
Pisando quase de lado, vai tropicando, um pedaço de flanela balanga no punho, seu boné descorado lembra restos de Carnaval. E assim sai do oco e baixa na praça.
Só no domingo, pela missa da manhã, oito fregueses dão a partida sem lhe pagar. Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a direita ou para a esquerda, três motoristas lhe escapam a um só tempo.
Flagrado na escapada, um despachou paternal, tirando o carro do ponto morto:
— Chefe, hoje estou sem trocado.
Disse na próxima lhe dava a forra.
Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim. Daquela santa mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí — o marido da ilustríssima. Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom de vida. Chefe, chefe... Que é que vocês estão pensando? Mais amor e menos confiança.
Mas um guardador de carros encena bastante de mágico, paciente, lépido ou resignado. Pensa duas, três vezes. E fala manso. Por isso, Jacarandá procura um botequim e vai entornando, goela abaixo, com a lentidão necessária à matutação. Chefe... O quê? Estão pensando que paralelepípedo é pão-de-ló? — Assim não dá.
Que dão, dão. Beberica e escarafuncha. Difícil saber. Por que as pessoas dão esmola? Cabeça branquejando, o boné pendido do lado reflete dúvidas. Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria — ninguém espere outro motivo — dá esmola por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público — são uns duros, uns tesos. Para eles, não ter cai mal. Se é domingo, pior. Domingo é ruim para os bem-comportados. Apesar da pinga, esses pensamentos não o distraem de suas necessidades cada vez mais ruças, imediatas. Se trabalhou, guardando-lhes os carros, por que resistem ao pagamento da gorjeta? Eles rezando na Catedral e, depois, saindo para flanar. Teriam dois jeitos de piedade — um na Catedral, outro cá fora? Chamou nova uca para abrir o entendimento.
Muita vez, batalhando rápido nas praças e ruas, camelando nos arredores dos hotéis e dos prédios grandes do centro, no aeroporto, na rodoviária, notou. Ele era o único que trabalhava.
Muquiras, muquiranas. Aos poucos, ondas do álcool rondando a cabeça, capiscou. Os motoristas caloteiros e fujões, bem-vestidinhos, viveriam atolados e amargando dívidas de consórcio, prestações, correções monetárias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos difíceis de entender. Mas tinham de pagar e não lhes sobrava o algum com que soltar gorjeta ao guardador. Isso. O automóvel sozinho comia-lhes a provisão. Jacarandá calculou. Motorista que faça umas quatro estacionadas por dia larga, picado e aí no barato, um tufo de dinheiro no fim do mês.
Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão.
Tomar outra, não enveredar por esses negrumes. Nada. Corria o risco de desistir de guardador. Ele sabia, na pele, que quem ama não fica rico. E, se vacilar, nem sobrevive. Para afastar más inclinações, pediu outra dose. À tarde, houve futebol; suaram debaixo de um sol sem brisa. Ele mais um magrelo de uns oito anos, cara de quinze. A sorte lhes sorriu um tanto; guardando uma fileira de carros no estádio, levantaram uns trocos, o crioulinho vivaço levou algum e o homem foi beber. Havia se feito um ganho.
Quando a peça não tem o que fazer, não tem nada o que fazer. Já não tem gana, gosto. E nem capricho; acabou a paciência para amigo ou auditórios. Distrações suas, se há, vêm da necessidade e dos apertos. Não que o distraiam; certo é que o aporrinham. Depois, não é de lamentações; antes, de campanar. Nem joga dominó ou dama, a dinheiro, com os outros, enfiados na febre dos tabuleiros da praça na sombra das mangueiras. Mas que espia, espia, vivo entendedor. Goza com os olhos os lances errados dos parceirinhos bobos.
Nem sustentava a vitalidade dos guardadores. Bebia, lerdeava, e depois da hora do almoço largava-se cochilando no oco da figueira. Era acordado pela molecagem de motoristas gritalhões. Nada de grana e ainda desciam a língua: -Pé-de-cana! Velho vagabundo!
Os cabelos pretos idos e, de passagem, a vivacidade, a espertice, o golpe de vista, o parentesco que guardadores têm com a trucagem dos camelôs e dos jogadores de chapinha, dos ventanistas, dos embromadores e mágicos, dos equilibristas e pingentes urbanos. Surgir nos lugares mais insuspeitados e imprevistos, pular à frente do motorista no momento em que o freguês não espera. Miraculosamente, como de dentro de um bueiro, de um galho de árvore, de dentro do chão ou do vão de alguma escadaria. Saltar rápido e eficiente, limpando com flanela úmida o pára-brisa, impedindo a escapada e cobrando com cordialidade. Ironizar até, com humildade e categoria, tratando o cara de doutor. E de distinto.
Aos trompaços dos anos e minado pelo estrepe dos botequins, ele emperrara a sua parte dessa picardia levípede.
Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões lá de cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade disfarçada para receber turistas e visitantes ilustres. Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. Quando em quando, o camburão da polícia cantava na curva da praça e arrastava o herói, na limpeza da vagabundagem, toda essa gente sem registro. A gente do pé inchado. Ele seguia, de cambulhada, em turminha. Lá dentro do carrão, escuro e mais abafado.
Cambaio, sapatos comidos, amuava e já se achava homem que não precisava de leros, nem tinha paciência para mulher, patrão ou amizadinha. De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo bobeava, o metiam num arrastão. Lá vai para o xilindró. — Chegou o velho chué.
Se entre o pessoal, se os mais moços, se os mais fortes não o aporrinhavam com humilhações, desintoxicava ali, quieto nos cantos que lhe permitiam.
E tem que, não bebido, volta. E outro. Os movimentos do seu corpo ainda magro de agora lembram os movimentos do corpo antigo. O verde das árvores descansa, ah, assobia fino e bem, ensaia brincar com as crianças da praça. Dias sem cachaça, as cores outra vez na cara, concentra um esforço, arruma ajudante, junta dinheiro. Quando quer, ganha; organizado, desempenha direitinho. Nas pernas, opa, uma agilidade que lembra coisa, a elegância safa de um passista de escola de samba. Vem carro acolá: — Deixa comigo.
Mas na continuação, nem semana depois, derrapava. A cana, à uca, ao mata-bicho. Ao pingão. Fazia um carro; molhava o pé. Fazia mais, bebia a segunda e demorava o umbigo encostado ao balcão. Dia depois de dia entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. Ia longe o tempo em que dormia em quarto de pensão. E nem se lembrava de olhar o mar. Enfiava-se, se encafuava no oco do tronco da árvore velha, tão esquecida de trato. Fizera o esconderijo e, então, o mulherio rezadeiro das segundas e sextas-feiras ia acender suas velas para as almas e para os santos ao pé de outras árvores. E xingavam quem lhes tomara o espaço. Dizia-se. Miséria pouca é bobagem.
A praça aninhava um miserê feio, ruim de se ver. A praça em Copacabana tinha de um tudo. De igreja à viração rampeira de mulheres desbocadas, de ponto de jogo de bicho a parque infantil nas tardes e nas manhãs. Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos bancos encangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores. Dormiam ali mesmo, à noite, encolhidos como bichos, enquanto ratos enormes corriam ariscos ou faziam paradinhas inesperadas perscrutando os canteiros. Passeavam cachorros de apartamento e seus donos solitários e, à tarde, velhos aposentados se reuniam e tomavam a fresca, limpinhos e direitos. Também candinhas faladeiras, pegajosas e de olhar mau, vestidas fora de moda, figuras de pardieiro descidas à rua para a fuxicaria, de uma gordura precoce e desonesta, que as fazia parecer sempre sujas e mais velhas do que eram, tão mulheres mal amadas e expostas ao contraste cruel do número imenso das garotinhas bonitas no olhar, na ginga, nos meneios, passando para a praia, bem dormidas e em tanga, corpos formosos, enxutos, admiráveis no todo... também comadres faladeiras, faziam rodinhas do ti-ti-ti, do pó-pó-pó, do diz-que-diz-que novidadeiro e da fofocalha no mexericar, à boca pequena, chafurdando como porcas gordas naquilo que entendiam e mal como vida alheia, falsamente boêmia ou colorida pelo sol e pela praia, tão aparentemente livre mas provisória, precária, assustada, naqueles enfiados de Copacabana. Rodas de jogadores de cavalos nas corridas noturnas se misturavam a religiosos e a cantarias do Nordeste. Muito namoro e atracações de babás e empregadinhas com peões das construtoras. Batia o tambor e se abria a sanfona nas noites de sábado e domingo. Ou o couro do surdo cantava solene na batucada, havia tamborim, algum ganzá e a ginga das vozes mulatas comiam o ar. Aquilo lhe bulia — se a gente repara, a batida do pandeiro é triste. Ia-lhe no sangue. Os niquelados agitavam o ritmo, que o tarol e o tamborim lapidam na armação de um diálogo.
O vento vindo do mar varria a praia e chegava manso ao arvoredo noturno. Refrescava.
Os olhos brilhavam, quanto, ficavam longe, antigos e quase infantis numa lembrança ora peralta, ora magnífica. O samba. Era como se ele soubesse. Lá no fundo. O que marca no som e o que prende e o que importa é a percussão. Mas meneava a cabeça, como se dissesse para dentro: “deixa pra lá”.
Outra vez. Na noite, o bacana enternado, banhado de novo, estacionou o carro importado, desceu. Entrou na boate ali defronte, ficou horas. Saiu, madrugada, lambuzado das importâncias, empolado e com mulher a tiracolo.
O menino já tinha se mandado, pegara o rumo do morro e, não estivesse no aceso de um pagode, sambando, estaria dormindo no barraco. Era hora. Jacarandá, cabeça alta, falou-lhe como se ele estivesse:
— Xará, eu ganho mais dinheiro que ele. É que não saio do botequim. Aí, foi para dentro do oco da árvore, encostou a cabeça e olhou a lua.
Abafava, de quente, depois de umas chuvadas de vento, desastrosas e medonhas, em janeiro. Desregulava. Um calorão azucrinava o tumulto, o movimento, o rumor das ruas. Mesmo de dia, as baratas saíam de tocas escondidas, agitadas. Suor molhava a testa e escorria na camisa dos que tocavam pra baixo e pra cima.
O toró, cavalo do cão, se arrumava lá no céu. Ia castigar outra vez, a gente sentia. Ia arriar feio.
Dera, nesse tempo, para morar ou se esconder no oco do tronco da árvore, figueira velha, das poucas ancestrais, resistente às devastações que a praça vem sofrendo. Tenta a vida naquelas calçadas.
Pisando quase de lado, vai tropicando, um pedaço de flanela balanga no punho, seu boné descorado lembra restos de Carnaval. E assim sai do oco e baixa na praça.
Só no domingo, pela missa da manhã, oito fregueses dão a partida sem lhe pagar. Final da missa, aflito ali, não sabe se corre para a direita ou para a esquerda, três motoristas lhe escapam a um só tempo.
Flagrado na escapada, um despachou paternal, tirando o carro do ponto morto:
— Chefe, hoje estou sem trocado.
Disse na próxima lhe dava a forra.
Chefe, meus distintos, é o marido daquela senhora. Sim. Daquela santa mulher que vocês deixaram em casa. Isso aí — o marido da ilustríssima. Passeiam e mariolam de lá pra cá num bem-bom de vida. Chefe, chefe... Que é que vocês estão pensando? Mais amor e menos confiança.
Mas um guardador de carros encena bastante de mágico, paciente, lépido ou resignado. Pensa duas, três vezes. E fala manso. Por isso, Jacarandá procura um botequim e vai entornando, goela abaixo, com a lentidão necessária à matutação. Chefe... O quê? Estão pensando que paralelepípedo é pão-de-ló? — Assim não dá.
Havia erro. Talvez devesse se valer de ajudante, um garoto molambento mas esperto dos descidos das favelas, que mendigam debaixo do sol da praça, apanham algum trocado, pixulé, caraminguá ocioso e sem serventia estendido pela caridade, inda mais num domingo.
Que dão, dão. Beberica e escarafuncha. Difícil saber. Por que as pessoas dão esmola? Cabeça branquejando, o boné pendido do lado reflete dúvidas. Três tipos de pessoas dão. Só uma minoria — ninguém espere outro motivo — dá esmola por entender o miserê. Há a maior parte, no meio, querendo se ver livre do pedinte. O terceiro grupo, otários da classe média, escorrega trocados a esmoleiros já que, vestidos direitinhamente, encabulariam ao tomar o flagra em público — são uns duros, uns tesos. Para eles, não ter cai mal. Se é domingo, pior. Domingo é ruim para os bem-comportados. Apesar da pinga, esses pensamentos não o distraem de suas necessidades cada vez mais ruças, imediatas. Se trabalhou, guardando-lhes os carros, por que resistem ao pagamento da gorjeta? Eles rezando na Catedral e, depois, saindo para flanar. Teriam dois jeitos de piedade — um na Catedral, outro cá fora? Chamou nova uca para abrir o entendimento.
Muita vez, batalhando rápido nas praças e ruas, camelando nos arredores dos hotéis e dos prédios grandes do centro, no aeroporto, na rodoviária, notou. Ele era o único que trabalhava.
Muquiras, muquiranas. Aos poucos, ondas do álcool rondando a cabeça, capiscou. Os motoristas caloteiros e fujões, bem-vestidinhos, viveriam atolados e amargando dívidas de consórcio, prestações, correções monetárias e juros, arrocho, a prensa de taxas e impostos difíceis de entender. Mas tinham de pagar e não lhes sobrava o algum com que soltar gorjeta ao guardador. Isso. O automóvel sozinho comia-lhes a provisão. Jacarandá calculou. Motorista que faça umas quatro estacionadas por dia larga, picado e aí no barato, um tufo de dinheiro no fim do mês.
Vamos e venhamos. Se não podiam, por que diabo tinham carro? O portuga diz que quem não tem competência não se estabelece. Depois, a galinha come é com o bico no chão.
Tomar outra, não enveredar por esses negrumes. Nada. Corria o risco de desistir de guardador. Ele sabia, na pele, que quem ama não fica rico. E, se vacilar, nem sobrevive. Para afastar más inclinações, pediu outra dose. À tarde, houve futebol; suaram debaixo de um sol sem brisa. Ele mais um magrelo de uns oito anos, cara de quinze. A sorte lhes sorriu um tanto; guardando uma fileira de carros no estádio, levantaram uns trocos, o crioulinho vivaço levou algum e o homem foi beber. Havia se feito um ganho.
Quando a peça não tem o que fazer, não tem nada o que fazer. Já não tem gana, gosto. E nem capricho; acabou a paciência para amigo ou auditórios. Distrações suas, se há, vêm da necessidade e dos apertos. Não que o distraiam; certo é que o aporrinham. Depois, não é de lamentações; antes, de campanar. Nem joga dominó ou dama, a dinheiro, com os outros, enfiados na febre dos tabuleiros da praça na sombra das mangueiras. Mas que espia, espia, vivo entendedor. Goza com os olhos os lances errados dos parceirinhos bobos.
Nem sustentava a vitalidade dos guardadores. Bebia, lerdeava, e depois da hora do almoço largava-se cochilando no oco da figueira. Era acordado pela molecagem de motoristas gritalhões. Nada de grana e ainda desciam a língua: -Pé-de-cana! Velho vagabundo!
Os cabelos pretos idos e, de passagem, a vivacidade, a espertice, o golpe de vista, o parentesco que guardadores têm com a trucagem dos camelôs e dos jogadores de chapinha, dos ventanistas, dos embromadores e mágicos, dos equilibristas e pingentes urbanos. Surgir nos lugares mais insuspeitados e imprevistos, pular à frente do motorista no momento em que o freguês não espera. Miraculosamente, como de dentro de um bueiro, de um galho de árvore, de dentro do chão ou do vão de alguma escadaria. Saltar rápido e eficiente, limpando com flanela úmida o pára-brisa, impedindo a escapada e cobrando com cordialidade. Ironizar até, com humildade e categoria, tratando o cara de doutor. E de distinto.
Aos trompaços dos anos e minado pelo estrepe dos botequins, ele emperrara a sua parte dessa picardia levípede.
Havia cata-mendigos limpando a cidade por ordem dos mandões lá de cima. Assim, no verão; os majorengos queriam a cidade disfarçada para receber turistas e visitantes ilustres. Os jornais, as rádios e a televisão berravam e não se sabia se estavam denunciando ou atiçando os assaltantes e a violência das ruas. Quando em quando, o camburão da polícia cantava na curva da praça e arrastava o herói, na limpeza da vagabundagem, toda essa gente sem registro. A gente do pé inchado. Ele seguia, de cambulhada, em turminha. Lá dentro do carrão, escuro e mais abafado.
Cambaio, sapatos comidos, amuava e já se achava homem que não precisava de leros, nem tinha paciência para mulher, patrão ou amizadinha. De bobeira, tomava cadeia; saía, de novo bobeava, o metiam num arrastão. Lá vai para o xilindró. — Chegou o velho chué.
No chiqueiro da polícia mofava quinze dias, um mês. Velho conhecido e cadeeiro, sim, era salvado com zombaria que parecia consideração na fala dos freges e dos cafofos. Banguelê: — Chegou o velho cachaça!
Se entre o pessoal, se os mais moços, se os mais fortes não o aporrinhavam com humilhações, desintoxicava ali, quieto nos cantos que lhe permitiam.
E tem que, não bebido, volta. E outro. Os movimentos do seu corpo ainda magro de agora lembram os movimentos do corpo antigo. O verde das árvores descansa, ah, assobia fino e bem, ensaia brincar com as crianças da praça. Dias sem cachaça, as cores outra vez na cara, concentra um esforço, arruma ajudante, junta dinheiro. Quando quer, ganha; organizado, desempenha direitinho. Nas pernas, opa, uma agilidade que lembra coisa, a elegância safa de um passista de escola de samba. Vem carro acolá: — Deixa comigo.
Mas na continuação, nem semana depois, derrapava. A cana, à uca, ao mata-bicho. Ao pingão. Fazia um carro; molhava o pé. Fazia mais, bebia a segunda e demorava o umbigo encostado ao balcão. Dia depois de dia entornando, perdia fregueses e encardia, não tomava banho. Ia longe o tempo em que dormia em quarto de pensão. E nem se lembrava de olhar o mar. Enfiava-se, se encafuava no oco do tronco da árvore velha, tão esquecida de trato. Fizera o esconderijo e, então, o mulherio rezadeiro das segundas e sextas-feiras ia acender suas velas para as almas e para os santos ao pé de outras árvores. E xingavam quem lhes tomara o espaço. Dizia-se. Miséria pouca é bobagem.
A praça aninhava um miserê feio, ruim de se ver. A praça em Copacabana tinha de um tudo. De igreja à viração rampeira de mulheres desbocadas, de ponto de jogo de bicho a parque infantil nas tardes e nas manhãs. Pivetes de bermudas imundas, peitos nus, se arrumavam nos bancos encangalhados e ficavam magros, descalços, ameaçadores. Dormiam ali mesmo, à noite, encolhidos como bichos, enquanto ratos enormes corriam ariscos ou faziam paradinhas inesperadas perscrutando os canteiros. Passeavam cachorros de apartamento e seus donos solitários e, à tarde, velhos aposentados se reuniam e tomavam a fresca, limpinhos e direitos. Também candinhas faladeiras, pegajosas e de olhar mau, vestidas fora de moda, figuras de pardieiro descidas à rua para a fuxicaria, de uma gordura precoce e desonesta, que as fazia parecer sempre sujas e mais velhas do que eram, tão mulheres mal amadas e expostas ao contraste cruel do número imenso das garotinhas bonitas no olhar, na ginga, nos meneios, passando para a praia, bem dormidas e em tanga, corpos formosos, enxutos, admiráveis no todo... também comadres faladeiras, faziam rodinhas do ti-ti-ti, do pó-pó-pó, do diz-que-diz-que novidadeiro e da fofocalha no mexericar, à boca pequena, chafurdando como porcas gordas naquilo que entendiam e mal como vida alheia, falsamente boêmia ou colorida pelo sol e pela praia, tão aparentemente livre mas provisória, precária, assustada, naqueles enfiados de Copacabana. Rodas de jogadores de cavalos nas corridas noturnas se misturavam a religiosos e a cantarias do Nordeste. Muito namoro e atracações de babás e empregadinhas com peões das construtoras. Batia o tambor e se abria a sanfona nas noites de sábado e domingo. Ou o couro do surdo cantava solene na batucada, havia tamborim, algum ganzá e a ginga das vozes mulatas comiam o ar. Aquilo lhe bulia — se a gente repara, a batida do pandeiro é triste. Ia-lhe no sangue. Os niquelados agitavam o ritmo, que o tarol e o tamborim lapidam na armação de um diálogo.
O vento vindo do mar varria a praia e chegava manso ao arvoredo noturno. Refrescava.
Os olhos brilhavam, quanto, ficavam longe, antigos e quase infantis numa lembrança ora peralta, ora magnífica. O samba. Era como se ele soubesse. Lá no fundo. O que marca no som e o que prende e o que importa é a percussão. Mas meneava a cabeça, como se dissesse para dentro: “deixa pra lá”.
Outra vez. Na noite, o bacana enternado, banhado de novo, estacionou o carro importado, desceu. Entrou na boate ali defronte, ficou horas. Saiu, madrugada, lambuzado das importâncias, empolado e com mulher a tiracolo.
Jacarandá, bebido e de olho torto, vivia um momento em que fantasiava grandezas, tomando um ar cavalheiresco. O rico, no volante, lhe estendeu uma moeda. A peça, altaneira no porre, nem o olhou:
— Doutor, isso aí eu não aceito. Trabalho com dinheiro; com esse produto, não.
Avermelhado, fulo, o homem deu partida, a mulher a seu lado sacudiu, o carrão raspou uma árvore e sumiu. Pneus cantaram.
Avermelhado, fulo, o homem deu partida, a mulher a seu lado sacudiu, o carrão raspou uma árvore e sumiu. Pneus cantaram.
O menino já tinha se mandado, pegara o rumo do morro e, não estivesse no aceso de um pagode, sambando, estaria dormindo no barraco. Era hora. Jacarandá, cabeça alta, falou-lhe como se ele estivesse:
— Xará, eu ganho mais dinheiro que ele. É que não saio do botequim. Aí, foi para dentro do oco da árvore, encostou a cabeça e olhou a lua.
João Antônio, "Os cem melhores contos brasileiros do século"
segunda-feira, março 31
Conselho dos velhos sábios astecas
Agora que já olhas com teus olhos, percebe.
Aqui, é assim: não há alegria,
não há felicidade.
Aqui na terra é o lugar de muito pranto,
o lugar onde se rende o fôlego
e onde bem se concebe
o abatimento e a amargura.
Um vento de pedra sopra e se abate sobre nós.
A terra é lugar de alegria penosa,
de alegria que fere.
Mas ainda que assim fosse,
ainda que fosse verdade que só se sofre,
ainda que fossem assim as coisas na terra,
haverá que estar sempre com medo?
haverá que estar sempre tremendo?
haverá que viver sempre chorando?
Para que não andemos sempre gemendo,
para que nunca nos sature a tristeza,
o Senhor Nosso nos deu
o riso, o sonho, os alimentos,
nossa força,
e finalmente
o ato de amor
que semeia gentes.
Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"
Aqui, é assim: não há alegria,
não há felicidade.
Aqui na terra é o lugar de muito pranto,
o lugar onde se rende o fôlego
e onde bem se concebe
o abatimento e a amargura.
Um vento de pedra sopra e se abate sobre nós.
A terra é lugar de alegria penosa,
de alegria que fere.
Mas ainda que assim fosse,
ainda que fosse verdade que só se sofre,
ainda que fossem assim as coisas na terra,
haverá que estar sempre com medo?
haverá que estar sempre tremendo?
haverá que viver sempre chorando?
Para que não andemos sempre gemendo,
para que nunca nos sature a tristeza,
o Senhor Nosso nos deu
o riso, o sonho, os alimentos,
nossa força,
e finalmente
o ato de amor
que semeia gentes.
Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"
Carta
Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade”. E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos!
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de ideias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?
Mário Quintana, "Caderno H"
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade”. E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as digressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?” A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de ideias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?
Mário Quintana, "Caderno H"
O primeiro livro de cada uma de minhas vidas
Perguntaram-me uma vez qual fora o primeiro livro de minha vida. Prefiro falar do primeiro livro de cada uma de minhas vidas. Busco na memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. Eu lia e relia as duas histórias, criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo quase sabendo de cor, relê com muito da excitação da primeira vez.
Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres.” Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.
Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha amanhã.” Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.
Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne. Essa história me fez meditar muito, e identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio – quem sabe se eu era um cisne?
Quanto a Aladim, soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível naquela época estava ao meu alcance. A ideia do gênio que dizia: pede de mim o que quiseres, sou teu servo – isso me fazia cair em devaneio. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: “Pede de mim o que quiseres.” Mas desde então revelava-se que sou daqueles que têm que usar os próprios recursos para terem o que querem, quando conseguem.
Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado porque era muito caro: Reinações de Narizinho. Já contei o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei, pois, já pronta para ler Monteiro Lobato, o livro grosso pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e muito sardenta se vingara tornando-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de “amanhã venha em casa que eu empresto”. Quando eu ia, com o coração literalmente batendo de alegria, ela me dizia: “Hoje não posso emprestar, venha amanhã.” Depois de cerca de um mês de venha amanhã, o que eu, embora altiva que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele mesmo momento me fosse emprestado o livro. Não o li de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez para não gastar. Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.
Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca popular de aluguel. Sem guia, escolhia os livros pelo título. E eis que escolhi um dia um livro chamado O lobo da estepe, de Hermann Hesse. O título me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, sim, mas outras aventuras. E eu, que já escrevia pequenos contos, dos 13 aos 14 anos fui germinada por Hermann Hesse e comecei a escrever um longo conto imitando-o: a viagem interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.
Em outra vida que tive, aos 15 anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva porque tinha dinheiro, numa livraria, que me pareceu o mundo onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E, contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima, sendo, ao contrário, considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Criança, passarinhos e andarilhos
Três personagens me ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a pré-ciência da natureza de Deus.
Quero falar primeiro dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava uma linguagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos.
Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza um dia voltam para ela.
Aprendi com os passarinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor nas costas. E são livres para pousar em qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – em se machucarem. E aprendi com eles ser disponível e sonhar.
O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve.
Os pássaros, os andarilhos e a criança em mim são meus colaboradores destas Memórias inventadas e doadores de suas fontes.
Manoel de Barros, in "Memórias Inventadas"
Quero falar primeiro dos andarilhos, do uso em primeiro lugar que eles faziam da ignorância. Sempre eles sabiam tudo sobre o nada. E ainda multiplicavam o nada por zero – o que lhes dava uma linguagem de chão. Para nunca saber onde chegavam. E para chegar sempre de surpresa. Eles não afundavam estradas, mas inventavam caminhos.
Essa a pré-ciência que sempre vi nos andarilhos. Eles me ensinaram a amar a natureza. Bem que eu pude prever que os que fogem da natureza um dia voltam para ela.
Aprendi com os passarinhos a liberdade. Eles dominam o mais leve sem precisar ter motor nas costas. E são livres para pousar em qualquer tempo nos lírios ou nas pedras – em se machucarem. E aprendi com eles ser disponível e sonhar.
O outro parceiro de sempre foi a criança que me escreve.
Os pássaros, os andarilhos e a criança em mim são meus colaboradores destas Memórias inventadas e doadores de suas fontes.
Manoel de Barros, in "Memórias Inventadas"
domingo, março 30
Chega a ter gosto
Chega a ter gosto
a chuva
vista dos cafés
caindo sobre as estátuas
e a nostalgia
chega a ser morna
com fumo e álcool
na garganta
Até os homens
passarem junto aos vidros
Reais Molhados
Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações
grisalhos
sem serem velhos
e falando sós
sem serem loucos.
António Reis, "Poemas Quotidianos"
a chuva
vista dos cafés
caindo sobre as estátuas
e a nostalgia
chega a ser morna
com fumo e álcool
na garganta
Até os homens
passarem junto aos vidros
Reais Molhados
Sem emoções instruídas
Pensando em remédios
e prestações
grisalhos
sem serem velhos
e falando sós
sem serem loucos.
António Reis, "Poemas Quotidianos"
Uma mentira
Uma mentira, fina como um cabelo, perturba para sempre a ordem do mundo.
Aquilo que sabemos tem muita importância. Tomamos decisões, vamos por aqui ou por ali, consoante aquilo que sabemos. E tudo o que virá a seguir, o futuro até ao fim dos tempos, será diferente se formos por um lado em vez de irmos por outro. Nascem pessoas devido a insignificâncias, morrem pessoas pelo mesmo motivo. Uma pessoa é uma máquina de coisas a acontecer, possibilidades multiplicadas por possibilidades em todos os instantes do seu tempo. Uma mentira, mesmo que transparente, perturba o entendimento que os outros têm da realidade, leva-os a acreditar que é aquilo que não é. Essa poluição vai turvar-lhes a lógica do mundo. As conclusões a que forem capazes de chegar serão calculadas a partir de um dado falso e, desse ponto em diante, todas as contas serão multiplicações de erros. Uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo. É por isso que uma mentira precisa sempre de mentiras novas para se suster. O mundo não lhe dá cobertura. Para alcançar coerência, cada mentira requer a criação apressada de um mundo de mentira que a suporte.
É assim que a mentira vai avançando pela verdade adentro, como uma toupeira cega a abrir túneis e câmaras no interior da terra. Quando se abre a boca para libertar uma mentira, a primeira, filha de nada que a justifique, nunca se consegue ter noção completa de onde chegará. Nesse momento, na inocência aparente, com voz de gatinho acabado de nascer, está a soltar-se um predador voraz, não há fronteiras marcadas para a sua fome. Uma mentira pode construir edifícios imensos, levantar cidades; uma mentira pode colocar em movimento milhares de pessoas, pode dar propósito a multidões incalculáveis, cada pontinho a ser uma cabeça com história; uma só mentira pode manter em cativeiro gerações inteiras de pessoas que ainda não nasceram, netos que os avós não são capazes de imaginar, ignorantes da mentira original que os domina.
José Luís Peixoto, "Em Teu Ventre"
José Luís Peixoto, "Em Teu Ventre"
Eu conheço o mestre
Quando eu era jovem, era um escritor que passava fome. O fato de que a fome poderia me levar à morte não me incomodava muito, uma vez que a vida não me parecia interessante, e morrer não parecia uma má perspectiva – talvez uma nova embaralhada nas cartas? Laborei, de tempos em tempos, como um trabalhador comum, mas por curtos períodos. Um ou dois contracheques e eu pulava fora, mantendo-me afastado de empregos o quanto fosse possível. Tudo o que eu precisava era de dinheiro para o aluguel e para comprar bebidas, e também para os selos, os envelopes e uma máquina de escrever. Escrevia de dois a seis contos por semana e todos eram recusados pela Atlantic Monthly, Harper’s e The New Yorker. Para mim isso era difícil de entender porque os contos que eu lia nessas revistas eram escritos com cuidado, bem-trabalhados talvez seja o termo. Mas, em essência, os contos eram inermes e chatos, e o pior de tudo: não tinham humor. Era como se tudo não passasse de uma mentira e quanto mais trabalhada fosse essa mentira mais você era aceito.
Eu escrevia e bebia à noite. Durante o dia eu ficava na Biblioteca Pública de LA e lia todos os escritores e era uma leitura difícil, os escritores usavam parágrafos longos e páginas de descrição, construindo a trama e desenvolvendo os personagens, mas os personagens não eram nada interessantes e o que as histórias finalmente revelavam não era lá grande coisa. Pouco se dizia das vidas desperdiçadas da maioria das pessoas, da tristeza, de toda tristeza, da loucura, da risada vencedora da dor. Boa parte dos escritores escrevia sobre as experiências da vida da alta classe média. Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar de palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever quando na verdade não pode.
E, claro, quando se está comprando tempo com um salário de trabalhador de meio turno há outras coisas das quais você abre mão além da comida. Refiro-me a mulheres jovens e carros. Você caminha, acaba por encontrar uma puta de ocasião. Além disso, você usa os mesmos sapatos por tanto tempo que as solas se enchem de furos e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, as unhas encravam de uma maneira tão feia que quase já não se pode calçar os sapatos. E também não sobrou, a essa altura, nem um traje domingueiro, nem convites para jantares gratuitos de Ação de Graças e de Natal. Escritores famintos levam uma vida pior do que a dos vagabundos da favela. E isto porque há duas coisas de que precisam: quatro paredes, e estar sozinhos.
...Mas numa tarde na Biblioteca Pública de LA alguma coisa aconteceu. Quanto a ser uma pessoa lida, eu já estava estufado, ao extremo: D. H. Lawrence, todos os russos, Huxley, Thurber, Chesterton, Dante, Shakespeare, Villon, todos os Shaws, O’Neil, Blake, Dos Passos, Hem, por que seguir? Centenas de escritores conhecidos e centenas de desconhecidos... E todos eles me feriam porque eram ótimos por um tempo, mas por breves instantes, em lampejos, para depois retornarem à sua pesada monotonia literária. Isto era mais do que desencorajador, pois significava que séculos, SÉCULOS de literatura e escritores não podiam me ajudar. No mínimo, falharam em me oferecer o que eu precisava para me virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo, nessa tarde eu matava o meu dia com o costumeiro baixar de livros das prateleiras, o abrir de páginas, ler uma ou duas de cada volume, devolvê-los aos seus lugares. Bem, peguei mais um Sporting Times? Yeah?, de um tal John Bante. Abri numa das páginas, esperando o de sempre, mas as palavras, sim, as palavras pularam sobre mim, assim mesmo. Saíram do papel e me perfuraram. As palavras eram simples, concisas, e falavam de alguma coisa que estava acontecendo agora! Até mesmo a fonte parecia diferente. As palavras eram legíveis. Havia alguns espaços e então mais palavras. As palavras eram quase como uma voz na sala. Peguei o livro e fui me sentar a uma mesa.
Eu tinha um cartão da biblioteca e tirei John Bante de lá. Levei-o comigo de volta para meu quarto e comecei a ler do início. Ele chegava a ser engraçado às vezes, mas era um tipo estranho e calmo de humor, como um homem queimado até a morte que ainda assim acena com um piscar de olhos para o primeiro homem que ateou as chamas ou Para O Homem Que Está Lá Em Cima. Bante possuía uma inclinação religiosa mesmo que fosse coroada por um estranho sorriso. Eu não tinha qualquer inclinação, mas eu gostava da dele. E ele escrevia sobre um escritor que passava fome e que circulava pela Biblioteca Pública de LA e pelo Grande Mercado Central, que era o que eu fazia. Jesus Cristo. Mas mais do que essa similaridade de vidas, o que me tocava era o modo como expressava as ocorrências mais tolas da existência. Reparei que ele vivia de laranjas. Minha dieta era outra: batatas, pepinos e tomates. Quando podia me dar a esse luxo. Batatas primeiro. Contando grama a grama, as batatas me pareciam mais baratas e mais satisfatórias. Mas Bante viera do Colorado. Sendo californiano, eu sempre olhara as laranjas quase como pulgas no pelo de um gato. Mas isso é má escrita. Bante nunca escrevia mal: cada palavra estava no seu devido lugar e cada palavra expressava o que devia com perfeição.
Ele havia sido descoberto pelo grande editor L. H. Renkin, que dirigia a revista The American Calamity. Renkin também trabalhou como editor para uma das editoras de Nova York, além de ser um escritor bem razoável. Eu acabaria por voltar à biblioteca para retirar todos os livros de John Bante. Havia mais três outros, mas Sporting Times? Yeah? continuava sendo meu favorito.
Acabei por memorizar todas as descrições da vizinhança em Sporting Times. Eu morava num barraco de tapume nos fundos de uma pensão por dois dólares a semana. A vizinhança se chamava Bunker Hill. E fui em busca do lugar onde Bante tinha morado. Segui a Angel’s Flight e descobri o local exato do hotel que ele tinha descrito e fiquei ali do lado de fora, olhando-o. Senti correr por mim uma das sensações mais poderosas de toda a minha vida. Eu estava, de fato, pasmado. Era o hotel. Aquela era a janela pela qual sua estranha namorada, Carmen, havia escalado para entrar. Estranha e trágica Carmen.
Olá, sr. Bante? Eu também escrevo. Não tão bem quanto o senhor. Só gostaria de dizer o quanto suas palavras estão vivas dentro de mim e ao meu redor e que tive muita sorte de ler o senhor. Bem, agora já estou de saída, adeus...
Mas eu sabia que jamais poderia perturbar um deus. Os deuses tinham seus afazeres. Mesmo quando estavam dormindo, dormiam de um modo diferente. Além disso, eu sabia que Bante não estava lá. No seu último livro de contos, ele mencionara em uma das histórias que vivia num quarto em Hollywood, que o aluguel era sete dólares por semana e a senhoria estava pronta para lhe dar um chute na bunda, e ele só fazia rezar para a Virgem Maria. Não era do meu perfil adorar heróis. Bante era o primeiro. Eram suas palavras, a simplicidade e a clareza delas. Faziam com que eu quisesse chorar, mas, ao mesmo tempo, me davam a impressão de ser capaz de atravessar as paredes.
Quarto 3. Ergui minha mão para bater, hesitei, e então bati. Três golpes curtos. Esperei. Nada. Bati outra vez, com mais força, golpes fortes, mas, ainda assim, batidas cheias de reverência. Ouvi algum som no quarto. Então a porta se abriu. Houve uma lufada de calor – era o Inferno de Dante. Era uma tarde quente de junho, mas havia uma estufa a gás acesa a todo vapor. Uma velha parou ali, enrolada num cobertor. Era muito pequena e quase careca, mas vários fios de cabelo branco continuavam crescendo, longos, descendo ao redor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.
– Com licença, mas estou procurando por um amigo que costumava viver aqui, John Bante...?
– Não – disse a velha.
Tinha olhos incrivelmente lindos, como se tudo mais que fora consumido tivesse se concentrado ali, a esperar pelo fim.
– Ele era escritor...
A velha ficou apenas me olhando. Ficamos assim por um tempo.
Então ela disse:
– Vá à merda!
E bateu a porta…
Charles Bukowski, "Pedaços de um caderno manchado de vinhos"
Eu escrevia e bebia à noite. Durante o dia eu ficava na Biblioteca Pública de LA e lia todos os escritores e era uma leitura difícil, os escritores usavam parágrafos longos e páginas de descrição, construindo a trama e desenvolvendo os personagens, mas os personagens não eram nada interessantes e o que as histórias finalmente revelavam não era lá grande coisa. Pouco se dizia das vidas desperdiçadas da maioria das pessoas, da tristeza, de toda tristeza, da loucura, da risada vencedora da dor. Boa parte dos escritores escrevia sobre as experiências da vida da alta classe média. Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar de palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever quando na verdade não pode.
Eu passava fome e escrevia. Baixei de 95 para 65 quilos. Meus dentes ficaram frouxos na boca. Podia empurrar meus incisivos com os dedos para a frente e para trás. Estavam frouxos na gengiva. Certa noite, enquanto dava uma volta, senti que algo se desprendia e logo estava com um dente na mão. Lá estava ele: virado para cima. Coloquei-o sobre a mesa e bebi em sua homenagem.
E, claro, quando se está comprando tempo com um salário de trabalhador de meio turno há outras coisas das quais você abre mão além da comida. Refiro-me a mulheres jovens e carros. Você caminha, acaba por encontrar uma puta de ocasião. Além disso, você usa os mesmos sapatos por tanto tempo que as solas se enchem de furos e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, as unhas encravam de uma maneira tão feia que quase já não se pode calçar os sapatos. E também não sobrou, a essa altura, nem um traje domingueiro, nem convites para jantares gratuitos de Ação de Graças e de Natal. Escritores famintos levam uma vida pior do que a dos vagabundos da favela. E isto porque há duas coisas de que precisam: quatro paredes, e estar sozinhos.
...Mas numa tarde na Biblioteca Pública de LA alguma coisa aconteceu. Quanto a ser uma pessoa lida, eu já estava estufado, ao extremo: D. H. Lawrence, todos os russos, Huxley, Thurber, Chesterton, Dante, Shakespeare, Villon, todos os Shaws, O’Neil, Blake, Dos Passos, Hem, por que seguir? Centenas de escritores conhecidos e centenas de desconhecidos... E todos eles me feriam porque eram ótimos por um tempo, mas por breves instantes, em lampejos, para depois retornarem à sua pesada monotonia literária. Isto era mais do que desencorajador, pois significava que séculos, SÉCULOS de literatura e escritores não podiam me ajudar. No mínimo, falharam em me oferecer o que eu precisava para me virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo, nessa tarde eu matava o meu dia com o costumeiro baixar de livros das prateleiras, o abrir de páginas, ler uma ou duas de cada volume, devolvê-los aos seus lugares. Bem, peguei mais um Sporting Times? Yeah?, de um tal John Bante. Abri numa das páginas, esperando o de sempre, mas as palavras, sim, as palavras pularam sobre mim, assim mesmo. Saíram do papel e me perfuraram. As palavras eram simples, concisas, e falavam de alguma coisa que estava acontecendo agora! Até mesmo a fonte parecia diferente. As palavras eram legíveis. Havia alguns espaços e então mais palavras. As palavras eram quase como uma voz na sala. Peguei o livro e fui me sentar a uma mesa.
Cada página era poderosa. Não podia acreditar naquilo. Era como se as páginas fossem pular do livro e começar a caminhar por ali, voar ao meu redor. Possuíam uma força notável, um realismo total. Por que esse homem nunca tinha sido mencionado antes? Eu também estava lendo crítica literária, Winters, todos aqueles vigaristas, os queridinhos da Kenyon Review e da Sewanee Review, e nunca haviam mencionado este homem. O mesmo ocorreu nos meus dois anos de coma profundo no LA City College, nem uma menção sequer. Ergui os olhos da minha mesa. Bem, não era minha, pertencia à cidade, aos contribuintes, e eu não podia me enquadrar propriamente nessa categoria. Mas eu tinha o livro de John Bante diante de mim e eu olhava para as pessoas nas outras mesas, para as pessoas que caminhavam por ali ou que estavam apenas sentadas, muitos vagabundos como eu e nenhum deles sabia sobre John Bante... ou teriam começado a brilhar, a se sentir melhor, não teriam se importado em ser o que eram ou que deveriam ser.
Eu tinha um cartão da biblioteca e tirei John Bante de lá. Levei-o comigo de volta para meu quarto e comecei a ler do início. Ele chegava a ser engraçado às vezes, mas era um tipo estranho e calmo de humor, como um homem queimado até a morte que ainda assim acena com um piscar de olhos para o primeiro homem que ateou as chamas ou Para O Homem Que Está Lá Em Cima. Bante possuía uma inclinação religiosa mesmo que fosse coroada por um estranho sorriso. Eu não tinha qualquer inclinação, mas eu gostava da dele. E ele escrevia sobre um escritor que passava fome e que circulava pela Biblioteca Pública de LA e pelo Grande Mercado Central, que era o que eu fazia. Jesus Cristo. Mas mais do que essa similaridade de vidas, o que me tocava era o modo como expressava as ocorrências mais tolas da existência. Reparei que ele vivia de laranjas. Minha dieta era outra: batatas, pepinos e tomates. Quando podia me dar a esse luxo. Batatas primeiro. Contando grama a grama, as batatas me pareciam mais baratas e mais satisfatórias. Mas Bante viera do Colorado. Sendo californiano, eu sempre olhara as laranjas quase como pulgas no pelo de um gato. Mas isso é má escrita. Bante nunca escrevia mal: cada palavra estava no seu devido lugar e cada palavra expressava o que devia com perfeição.
Ele havia sido descoberto pelo grande editor L. H. Renkin, que dirigia a revista The American Calamity. Renkin também trabalhou como editor para uma das editoras de Nova York, além de ser um escritor bem razoável. Eu acabaria por voltar à biblioteca para retirar todos os livros de John Bante. Havia mais três outros, mas Sporting Times? Yeah? continuava sendo meu favorito.
Acabei por memorizar todas as descrições da vizinhança em Sporting Times. Eu morava num barraco de tapume nos fundos de uma pensão por dois dólares a semana. A vizinhança se chamava Bunker Hill. E fui em busca do lugar onde Bante tinha morado. Segui a Angel’s Flight e descobri o local exato do hotel que ele tinha descrito e fiquei ali do lado de fora, olhando-o. Senti correr por mim uma das sensações mais poderosas de toda a minha vida. Eu estava, de fato, pasmado. Era o hotel. Aquela era a janela pela qual sua estranha namorada, Carmen, havia escalado para entrar. Estranha e trágica Carmen.
Fiquei ali parado, olhando para a janela. Era cedo da tarde e o quarto estava escuro. A persiana estava a meio palmo e uma leve brisa a balançava levemente. Ali Bante escrevera Sporting Times. Tudo havia saído daquele quarto, um quarto pelo qual eu tinha passado por meses no meu caminho até o Grande Mercado Central, até o meu bar verde preferido ou mesmo a caminho das minhas pernadas pelo centro. Fiquei ali parado, me perguntando quem ocuparia o quarto naquele momento. Talvez Bante ainda estivesse ali! Quem sabe eu não pudesse dar um pulo ali e bater à porta?
Olá, sr. Bante? Eu também escrevo. Não tão bem quanto o senhor. Só gostaria de dizer o quanto suas palavras estão vivas dentro de mim e ao meu redor e que tive muita sorte de ler o senhor. Bem, agora já estou de saída, adeus...
Mas eu sabia que jamais poderia perturbar um deus. Os deuses tinham seus afazeres. Mesmo quando estavam dormindo, dormiam de um modo diferente. Além disso, eu sabia que Bante não estava lá. No seu último livro de contos, ele mencionara em uma das histórias que vivia num quarto em Hollywood, que o aluguel era sete dólares por semana e a senhoria estava pronta para lhe dar um chute na bunda, e ele só fazia rezar para a Virgem Maria. Não era do meu perfil adorar heróis. Bante era o primeiro. Eram suas palavras, a simplicidade e a clareza delas. Faziam com que eu quisesse chorar, mas, ao mesmo tempo, me davam a impressão de ser capaz de atravessar as paredes.
Decidi que queria ver o quarto de qualquer jeito, o quarto onde o livro fora escrito. Apanhei o trem funicular até a rua de cima, dei uma soltada nas pernas e desci na calçada mais próxima ao hotel. Caminhei em frente à fachada e entrei. Ali estava o saguão, exatamente como descrito por ele. E ali estava a pequena mesa de centro, sobre a qual ele espalhara diversas cópias de The American Calamity, que trazia publicado o primeiro conto de sua autoria, O cachorrinho riu com força e de verdade. Caminhei pelo corredor, peguei a esquerda e parei junto ao quarto cuja janela dava para a Angel’s Flight.
Quarto 3. Ergui minha mão para bater, hesitei, e então bati. Três golpes curtos. Esperei. Nada. Bati outra vez, com mais força, golpes fortes, mas, ainda assim, batidas cheias de reverência. Ouvi algum som no quarto. Então a porta se abriu. Houve uma lufada de calor – era o Inferno de Dante. Era uma tarde quente de junho, mas havia uma estufa a gás acesa a todo vapor. Uma velha parou ali, enrolada num cobertor. Era muito pequena e quase careca, mas vários fios de cabelo branco continuavam crescendo, longos, descendo ao redor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.
– Com licença, mas estou procurando por um amigo que costumava viver aqui, John Bante...?
– Não – disse a velha.
Tinha olhos incrivelmente lindos, como se tudo mais que fora consumido tivesse se concentrado ali, a esperar pelo fim.
– Ele era escritor...
A velha ficou apenas me olhando. Ficamos assim por um tempo.
Então ela disse:
– Vá à merda!
E bateu a porta…
Charles Bukowski, "Pedaços de um caderno manchado de vinhos"
Casa tomada
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, uma sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d´água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, uma sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d´água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
Julio Cortázar
sábado, março 29
O quero-quero
Natureza será que preparou o quero-quero para o mister de avisar? No meio-dia, se você estiver fazendo sesta completa, ele interrompe. Se está o vaqueiro armando laço por perto, em lugar despróprio, ele bronca. Se está o menino caçando inseto no brejo, ele grita naquele som arranhado que tem parte com arara. Defende-se como touro. E faz denúncias como um senador romano.
Quero-quero tem uma vida obedecida, contudo. Ele cumpre Jesus. Cada dia com sua tarefa. Tempo de comer é tempo de comer. Tempo de criar, de criar.
É pássaro mais de amar que de trabalhar.
De forma que não sobra ócio ao quero-quero para arrumar o ninho. Que faz em beira de estrada, em parcas depressões de terreno, e mesmo aproveitando sulcos deixados por cascos de animal.
Gosta de aproveitar os sulcos da natureza e da vida. Assim, nesses recalques, se estabelece o quero-quero, já de oveira plena, depois de amar pelos brejos perdida e avoadoramente.
E porque muito amou e se ganhou de amar desperdiçadamente, seu lar não construiu. E vai conceber no chão limpo. No limpo das campinas. Num pedaço de trampa enluaçada. Ou num aguaçal de estrelas.
Em tempo de namoro quero-quero é boêmio. Não aprecia galho de árvore para o idílio. Só conversa no chão. No chão e no largo. Qualquer depressãozinha é cama.
Não usa o silêncio como arte.
Quero-quero no amor é desbocado. Passarinho de intimidades descobertas. Tem uma filosofia nua, de vida muito desabotoada e livre.
Depois de achado o ninho e posto o ovo porém, vira um guerreiro o quero-quero. Se escuta passo de gente se espeta em guarda. Tem parenteza com sentinela.
Disse que pula bala. Sei que ninguém o desfolha. Tem misca de carrapato em sua carne exígua. Debaixo da asa guarda esse ocarino redoleiro pra de-comer dos filhotes.
De olhos ardidos, as finas botas vermelhas, não pode ver ninguém perto do ninho, que se arrepia e – enfeza, como um ferrabrás.
Passarinho de topete na nuca, esse!
Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"
Quero-quero tem uma vida obedecida, contudo. Ele cumpre Jesus. Cada dia com sua tarefa. Tempo de comer é tempo de comer. Tempo de criar, de criar.
É pássaro mais de amar que de trabalhar.
De forma que não sobra ócio ao quero-quero para arrumar o ninho. Que faz em beira de estrada, em parcas depressões de terreno, e mesmo aproveitando sulcos deixados por cascos de animal.
Gosta de aproveitar os sulcos da natureza e da vida. Assim, nesses recalques, se estabelece o quero-quero, já de oveira plena, depois de amar pelos brejos perdida e avoadoramente.
E porque muito amou e se ganhou de amar desperdiçadamente, seu lar não construiu. E vai conceber no chão limpo. No limpo das campinas. Num pedaço de trampa enluaçada. Ou num aguaçal de estrelas.
Em tempo de namoro quero-quero é boêmio. Não aprecia galho de árvore para o idílio. Só conversa no chão. No chão e no largo. Qualquer depressãozinha é cama.
Nem varre o lugar para o amor. Faz que nem boliviana. Que se jogue a cama na rua na hora do prazer, para que todos vejam e todos participem. Pra que todos escutem.
Não usa o silêncio como arte.
Quero-quero no amor é desbocado. Passarinho de intimidades descobertas. Tem uma filosofia nua, de vida muito desabotoada e livre.
Depois de achado o ninho e posto o ovo porém, vira um guerreiro o quero-quero. Se escuta passo de gente se espeta em guarda. Tem parenteza com sentinela.
Investe de esporão sobre os passantes. E avisa os semoventes de redores.
Disse que pula bala. Sei que ninguém o desfolha. Tem misca de carrapato em sua carne exígua. Debaixo da asa guarda esse ocarino redoleiro pra de-comer dos filhotes.
De olhos ardidos, as finas botas vermelhas, não pode ver ninguém perto do ninho, que se arrepia e – enfeza, como um ferrabrás.
Passarinho de topete na nuca, esse!
Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"
A maldição de Babel
Uma história, em particular, me atraiu a atenção durante a leitura dos Contos filosóficos do mundo inteiro, antologia organizada pelo historiador francês Jean-Claude Carrière (Ediouro, tradução de Cordélia Magalhães). Uma história simples que traça um retrato aflitivo do mundo contemporâneo e da relação funcional e vulgar que temos, em geral, com as palavras.
Nos primeiros anos do século XX, nos Bálcãs, havia um homem que viajava negociando palavras. Ele recolhia palavras em uma cidade, pagava por elas e as oferecia na cidade seguinte. Preferia comprar palavras fluidas, que não se referissem a um objeto fixo ou conhecido. Nomes de plantas ignoradas, de seres obscuros ou de animais inexistentes. Palavras que, precariamente, perseguem coisas que as repelem, como as emoções vagas, os assombros e os estados sutis do espírito.
Em seu caderno de viajante, o negociante dispunha as palavras por rubricas, mas nunca encontrava uma classificação adequada. Na verdade, duvidava que tal classificação existisse. Mesmo assim, acreditava que, negociando palavras, ajudava os homens a viver melhor. Nós, seres falantes, nos sentimos desprovidos daquilo que não conseguimos nomear. Muitas vezes, experimentamos algo que queremos capturar e transmitir, mas as palavras nos faltam. Nessas horas, um buraco se abre em nosso peito.
A partir da metade do século, o negócio de nosso viajante entrou em decadência.
Certa vez, Carrière perguntou ao neurologista Oliver Sacks o que é, afinal, um homem normal. A resposta se refere mais à literatura que à neurologia: “Um homem normal é, talvez, aquele capaz de contar sua própria história”. Para viver, precisamos habitar uma narrativa. O homem que nada pode narrar sobre si, diz Carrière, “não sabe mais nada, nem quem é, nem o que deve fazer”. Não narramos, porém, para chegar ao verdadeiro – esse reino de pedra onde se guardam as certezas categóricas. Uma palavra não precisa ter um significado para ter força. A verdade, para as palavras, vem de outra esfera. É sua capacidade de surpreender e de agitar o espírito que define se uma palavra é verdadeira ou não.
O cineasta Alfred Hitchcock, lembra Carrière em outra história, detestava revelar os segredos guardados em seus filmes. Em Notorius, de 1946, intitulado no Brasil Interlúdio, toda a ação se desenrola em torno da luta pela posse de uma maleta. O que a mala contém? Terminamos o filme sem saber. Mas é justamente essa ausência de conteúdo que lhe confere poder. Para dar um nome ao que não pode ser nomeado, Hitchcock chama o segredo guardado na maleta de “McGuffin”. Quando insistiam que ele explicasse o que isso significa, o cineasta costumava contar uma história.
Dois desconhecidos viajam em um trem. Um deles leva uma maleta. “O que há dentro dela?”, o outro pergunta. “É um McGuffin”, seu companheiro diz. O companheiro pede que ele explique melhor. Ouve, então, uma resposta sem sentido: “É um aparelho que serve para capturar leões nos Adirondacks”. Os Adirondacks são um maciço, sem grande importância, localizado no Estado de Nova York. Todos sabem que lá não existem leões, o homem rebate, aborrecido. “Então pode ser que não seja um McGuffin”, o outro se limita a dizer. Toda resposta esbarra em um desconhecimento que, sem sucesso, ela sem empenha em encobrir.
Jean-Claude Carrière é um admirador de histórias que nos deixam em alerta. Relatos que trabalham não com as “belas mensagens” ou respostas adequadas, mas com o casual, o brusco e o fortuito. Inimigo dos relatos categóricos, ele privilegia as histórias que guardam a fluidez e a desordem das narrativas que, secretamente, contamos para nós mesmos. Estas podem ser desconcertantes, incoerentes e até mentirosas. Mas são as mais verdadeiras das histórias: porque são vivas.
As histórias reunidas nesses Contos filosóficos revelam, antes de tudo, e para usar uma expressão grata a Carrière, nossa “essência de vidro”. Como não existem “explicações finais”, nos sentimos sempre despedaçados pelos acontecimentos.
Em um mundo dominado pela maldição de Babel, no qual tudo se explica e se demonstra, nos sentimos muitas vezes – como os psicóticos – acorrentados ao real. É bom recordar, aqui, as sábias palavras de Virginia Woolf: “Fatos são uma forma de ficção bastante inferior”.
José Castello, "Sábados inquietos"
Nos primeiros anos do século XX, nos Bálcãs, havia um homem que viajava negociando palavras. Ele recolhia palavras em uma cidade, pagava por elas e as oferecia na cidade seguinte. Preferia comprar palavras fluidas, que não se referissem a um objeto fixo ou conhecido. Nomes de plantas ignoradas, de seres obscuros ou de animais inexistentes. Palavras que, precariamente, perseguem coisas que as repelem, como as emoções vagas, os assombros e os estados sutis do espírito.
Em seu caderno de viajante, o negociante dispunha as palavras por rubricas, mas nunca encontrava uma classificação adequada. Na verdade, duvidava que tal classificação existisse. Mesmo assim, acreditava que, negociando palavras, ajudava os homens a viver melhor. Nós, seres falantes, nos sentimos desprovidos daquilo que não conseguimos nomear. Muitas vezes, experimentamos algo que queremos capturar e transmitir, mas as palavras nos faltam. Nessas horas, um buraco se abre em nosso peito.
A partir da metade do século, o negócio de nosso viajante entrou em decadência.
Com o pós-guerra, as línguas se dissolveram no mundo homogêneo do pragmatismo. A era do ready-made e do prêt-à-porter transformou a linguagem em um instrumento banal – como uma chave de fenda ou abridor de latas. A busca do funcional massacrou a beleza do singular. A maldição de Babel – uma infernal mistura de línguas incompreensíveis – se realizava ao contrário. No mundo de hoje, todos dizemos as mesmas coisas, usando quase sempre as mesmas palavras. A clareza é nosso deus. Com isso, temos a ilusão de nos entender; quando, na verdade, nunca estivemos tão distantes uns dos outros.
Contos filosóficos do mundo inteiro é uma espécie de segundo volume de O círculo dos mentirosos, editado no Brasil em 2004 pela Conex. Nele, Jean-Claude Carrière se afirma, ele também, como um notável comerciante de histórias. Ele as recolhe em suas andanças pelo mundo e depois as oferece aos leitores. Foge, porém, das histórias míticas (que contêm explicações fechadas do mundo) e das moralistas (que se baseiam em princípios e certezas). Busca, ao contrário, relatos que – marca fundamental da ficção – digam aquilo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira.
Contos filosóficos do mundo inteiro é uma espécie de segundo volume de O círculo dos mentirosos, editado no Brasil em 2004 pela Conex. Nele, Jean-Claude Carrière se afirma, ele também, como um notável comerciante de histórias. Ele as recolhe em suas andanças pelo mundo e depois as oferece aos leitores. Foge, porém, das histórias míticas (que contêm explicações fechadas do mundo) e das moralistas (que se baseiam em princípios e certezas). Busca, ao contrário, relatos que – marca fundamental da ficção – digam aquilo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira.
Certa vez, Carrière perguntou ao neurologista Oliver Sacks o que é, afinal, um homem normal. A resposta se refere mais à literatura que à neurologia: “Um homem normal é, talvez, aquele capaz de contar sua própria história”. Para viver, precisamos habitar uma narrativa. O homem que nada pode narrar sobre si, diz Carrière, “não sabe mais nada, nem quem é, nem o que deve fazer”. Não narramos, porém, para chegar ao verdadeiro – esse reino de pedra onde se guardam as certezas categóricas. Uma palavra não precisa ter um significado para ter força. A verdade, para as palavras, vem de outra esfera. É sua capacidade de surpreender e de agitar o espírito que define se uma palavra é verdadeira ou não.
O cineasta Alfred Hitchcock, lembra Carrière em outra história, detestava revelar os segredos guardados em seus filmes. Em Notorius, de 1946, intitulado no Brasil Interlúdio, toda a ação se desenrola em torno da luta pela posse de uma maleta. O que a mala contém? Terminamos o filme sem saber. Mas é justamente essa ausência de conteúdo que lhe confere poder. Para dar um nome ao que não pode ser nomeado, Hitchcock chama o segredo guardado na maleta de “McGuffin”. Quando insistiam que ele explicasse o que isso significa, o cineasta costumava contar uma história.
Dois desconhecidos viajam em um trem. Um deles leva uma maleta. “O que há dentro dela?”, o outro pergunta. “É um McGuffin”, seu companheiro diz. O companheiro pede que ele explique melhor. Ouve, então, uma resposta sem sentido: “É um aparelho que serve para capturar leões nos Adirondacks”. Os Adirondacks são um maciço, sem grande importância, localizado no Estado de Nova York. Todos sabem que lá não existem leões, o homem rebate, aborrecido. “Então pode ser que não seja um McGuffin”, o outro se limita a dizer. Toda resposta esbarra em um desconhecimento que, sem sucesso, ela sem empenha em encobrir.
Jean-Claude Carrière é um admirador de histórias que nos deixam em alerta. Relatos que trabalham não com as “belas mensagens” ou respostas adequadas, mas com o casual, o brusco e o fortuito. Inimigo dos relatos categóricos, ele privilegia as histórias que guardam a fluidez e a desordem das narrativas que, secretamente, contamos para nós mesmos. Estas podem ser desconcertantes, incoerentes e até mentirosas. Mas são as mais verdadeiras das histórias: porque são vivas.
As histórias reunidas nesses Contos filosóficos revelam, antes de tudo, e para usar uma expressão grata a Carrière, nossa “essência de vidro”. Como não existem “explicações finais”, nos sentimos sempre despedaçados pelos acontecimentos.
Ficções nos ajudam a suportar a rispidez dos fatos. Muitas vezes, não precisamos sequer mudar de palavras, mas só de perspectiva. Como ensina uma das mais célebres histórias de Nasreddin Hodja, o lendário fabulista turco do século XIII.
Nasreddin sai de casa à noite, de camisolão, com os braços estendidos para a frente. Um vizinho, espantado, pergunta o que ele está fazendo. “Minha mulher contou para todo mundo que sou sonâmbulo. Eu quis verificar”, responde. O vizinho, curioso, pede que ele explique o que conseguiu descobrir. “Psiu! Você pode me fazer correr um grave perigo! Sobretudo, não me acorde!”.
Nasreddin sai de casa à noite, de camisolão, com os braços estendidos para a frente. Um vizinho, espantado, pergunta o que ele está fazendo. “Minha mulher contou para todo mundo que sou sonâmbulo. Eu quis verificar”, responde. O vizinho, curioso, pede que ele explique o que conseguiu descobrir. “Psiu! Você pode me fazer correr um grave perigo! Sobretudo, não me acorde!”.
Em um mundo dominado pela maldição de Babel, no qual tudo se explica e se demonstra, nos sentimos muitas vezes – como os psicóticos – acorrentados ao real. É bom recordar, aqui, as sábias palavras de Virginia Woolf: “Fatos são uma forma de ficção bastante inferior”.
José Castello, "Sábados inquietos"
Os caminhos que tomamos
Vinte milhas para oeste de Tucson o rápido parou ao pé de um depósito para tomar água. Além deste líquido, porém, a máquina daquele comboio adquiriu também outras coisas que lhe não convinham.
Enquanto o fogueiro estava baixando a mangueira de alimentação, o Bob Tidball, o Dodson Tubarão e um índio de raça cruzada chamado João Cão Grande treparam para a máquina e apresentaram ao maquinista os orifícios de três canos de revólver. As possibilidades desses orifícios a tal ponto impressionaram o maquinista que ergueu logo ambas as mãos num gesto do gênero do que acompanha a exclamação: “Conta lá!” ·
À ordem brusca do Dodson Tubarão, que era o comandante da força, o maquinista desceu ao chão e desligou a máquina e o tender. Então o João Cão Grande, empoleirado no carvão, sorriu por trás de dois revólveres apontados ao ajudante e ao fogueiro, lembrando que corressem a máquina cinqüenta metros pela linha abaixo e ali aguardassem novas ordens.
Enquanto o fogueiro estava baixando a mangueira de alimentação, o Bob Tidball, o Dodson Tubarão e um índio de raça cruzada chamado João Cão Grande treparam para a máquina e apresentaram ao maquinista os orifícios de três canos de revólver. As possibilidades desses orifícios a tal ponto impressionaram o maquinista que ergueu logo ambas as mãos num gesto do gênero do que acompanha a exclamação: “Conta lá!” ·
À ordem brusca do Dodson Tubarão, que era o comandante da força, o maquinista desceu ao chão e desligou a máquina e o tender. Então o João Cão Grande, empoleirado no carvão, sorriu por trás de dois revólveres apontados ao ajudante e ao fogueiro, lembrando que corressem a máquina cinqüenta metros pela linha abaixo e ali aguardassem novas ordens.
O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, desdenhando proceder à limpeza de minério tão baixo como os passageiros, dedicaram-se ao veio magnífico que era o vagão de valores. Encontraram o guarda envolto na crença firme de que a máquina não estava tomando nada mais forte que água pura. Enquanto o Bob lhe tirava esta idéia da cabeça por meio de uma coronha de revólver, o Dodson Tubarão ocupava-se em ministrar uma dose de dinamite ao cofre do vagão.
O cofre explodiu no sentido de trinta mil dólares, ouro e notas. Os passageiros espreitaram vagamente pelas janelas a ver de onde vinha a trovoada. O condutor puxou a correia que lhe ficou lassa e caída na mão. O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, com o espólio numa saca de lona forte, saíram do vagão e correram pesadamente, com suas botas altas, até à máquina.
O maquinista, amuado, mas prudente, correu velozmente a máquina, obedecendo às ordens, para longe do comboio parado. Mas antes que isto estivesse feito, o guarda do rápido, tendo despertado do argumento com que o Bob Tidball lhe tinha imposto a neutralidade, saltou do vagão com uma Winchester e entrou no jogo. O sr. João Cão Grande, empoleirado no carvão, perdeu a vasa pelo processo involuntário de imitar perfeitamente um alvo. O guarda caçou-o. Com uma bala exatamente entre as espáduas, o cavalheiro de cor e indústria caiu para o chão, aumentando assim automaticamente em um sexto o quinhão de cada um dos camaradas.
A duas milhas do depósito deu-se ordem ao maquinista que parasse.
Os ladrões gritaram um adeus de desafio e enfiaram pelo declive abaixo para os bosques que marginavam a linha férrea. Cinco minutos de caminho difícil através de uma mata de chaparral trouxe-os a um bosque mais aberto, onde estavam três cavalos, presos a ramos baixos. Um esperava o João Cão Grande, que nunca mais andaria a cavalo de dia ou de noite. A este animal tiraram os ladrões a sela e o freio, e puseram-no em liberdade. Montaram nos outros dois, estendendo o saco sobre a maçã da sela de um deles, e seguiram depressa mas discretamente através da floresta e por uma garganta primitiva e solitária acima. Aqui o animal que levava Bob Tidball escorregou num pedregulho musgoso e partiu uma das pernas dianteiras. Mataram-no com um tiro na cabeça, e sentaram-se para realizar um conselho de fuga. Seguros por enquanto, em virtude do caminho tortuoso que haviam tomado, já a questão de tempo os não apoquentava tanto. Havia já muitas horas e léguas entre eles e a mais rápida perseguição que se pudesse organizar. O cavalo do Dodson Tubarão, de corda arrastada e freio caído, resfolegava e comia com agrado da erva à margem do riacho da garganta. Bob Tidball abriu o saco, tirou às mãos ambas maços de notas e um saco único de ouro, e riu com uma alegria de criança.
— Olha lá, meu grande pirata — disse ele rindo para Dodson —, bem dizias tu que a coisa se conseguia. Tens uma cabe~ a de financeiro que deixa atrás tudo no Arizona.
— O que é que a gente vai fazer a respeito de um cavalo para ti, Bob? A gente não pode esperar aqui muito tempo. Logo de madrugada, com a primeira luz, os tipos estão na nossa pista.
— Oh, aquele teu bicho tem que levar dois um bocado — respondeu Bob com otimismo. Deitamos a mão ao primeiro bicho que encontrarmos por aí. Caramba, que fizemos bom negócio, hein? Aqui pelos sinais nas cintas e no saco temos trinta mil dólares — quinze mil a cada bico!
— É menos do que eu esperava — disse o Dodson Tubarão, dando pontapés leves nos pacotes. Depois olhou meditativamente para os flancos suados da sua montada.
— O Bolívar, coitado, está quase que não pode mais disse ele devagar —. Que pena que o teu bicho se estropiasse!
— Ninguém tem mais pena do que eu — disse o Bob sem abatimento —, mas o que é que se há de fazer? O Bolívar é rijo, e pode bem com nós dois até arranjarmos outras montadas. Raios me partam, ó Tubarão, mas não me passa da idéia a piada que tem um tipo do leste como tu vir para aqui ensinar-nos a nós do oeste a dar cartas no negócio de salteador! De que parte do leste é que és?
— Estado de Nova Iorque — disse o Dodson Tubarão, sentando-se num toro e mastigando um fio de erva —. Nasci numa herdade do distrito de Ulster. Fugi de casa quando tinha dezessete anos. Foi um acaso eu vir para oeste. Eu ia pela estrada fora com a roupa numa trouxa a caminho de Nova Iorque, da cidade. A minha idéia era ir para lá e ganhar muito dinheiro. Uma tarde cheguei a um ponto onde a estrada fazia garfo, e eu não sabia por que caminho havia de tomar, estive para aí meia hora a estudar o caso, e depois tomei pelo da esquerda. Nessa noite mesmo fui dar ao acampamento de um circo do oeste que andava dando espetáculos nas várias terras, e segui para oeste com eles. Muitas vezes tenho pensado se não teria dado em qualquer coisa muito diferente se tivesse tomado o outro caminho.
— Hum, a minha idéia é que davas mais ou menos no mesmo — disse Bob Tidball, com uma filosofia alegre —. Não são os caminhos que a gente toma, é o que está dentro de nós, que faz que a gente dê no que vem a dar.
O Dodson Tubarão levantou-se e encostou-se a uma árvore.
— Tomara eu que aquela tua montada se não tivesse estropiado, Bob — tornou a dizer, com uma certa tristeza.
— E dois! — concordou o Bob —. Era um belo bicho. Mas o Bolívar tira-nos aos dois da alhada. Olha lá, e o melhor é a gente ir-se pondo a mexer, hein? Vou meter isto tudo outra vez no saco, e ala para outra terra!
O Bob Tidball repôs o espólio no saco, e apertou a boca deste, com força, com uma corda. Quando levantou a cabeça, a coisa mais notável que viu foi o cano da pistola do Tubarão visando-lhe sem tremer o centro da testa.
— Deixa-te de piadas, rapaz — disse o Bob sorrindo —. A gente tem é que se pôr a mexer.
— Está quieto — disse o Tubarão —. Tu não te vais pôr a mexer para parte nenhuma, Bob. Tenho pena de te dizer, mas não há saída senão para um de nós. O Bolívar, coitado, está muito cansado, e não pode levar dois.
— Temos sido camaradas, eu e tu, Tubarão, há uns três anos — disse o Bob com sossego —. Muita e muita vezes arriscou a gente a vida juntos. Sempre te tenho tratado às direitas, e julgava que eras um homem. Já ouvi coisas que contavam de ti, de como tinhas matado um ou dois homens de uma maneira esquisita, mas nunca acreditei. Ora agora, se estás a brincar comigo, desvia lã a pistola e vamo-nos embora. Mas se queres atirar, atira, filho de um lacrau!
A cara de Dodson Tubarão tinha uma expressão de profunda mágoa.
— Não imaginas que pena eu tenho — suspirou ele — a respeito daquele desastre que aconteceu ao teu cavalo, Bob. A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.
E, na verdade, nunca Bob Tidball se poria mais a mexer para parte nenhuma. Falou a pistola do amigo falso, enchendo a garganta de um estrondo que os seus muros devolveram indignadamente. E o Bolívar, cúmplice inconsciente, levou depressa para longe o último dos salteadores do rápido sem ter que “levar dois”.
Mas à medida que o Dodson Tubarão galopava parecia que os bosques se esfumavam e desapareciam; o revólver na mão direita converteu-se no braço curvo de uma cadeira de mogno: a sela estava extremamente estofada, e ele abriu os olhos e viu seus pés, não em estribos, mas pousados alto na ponta de uma secretária rica.
Estou contando aos senhores que o Dodson, da Dodson & Decker, corretores de Wall Street, abriu os olhos. Peabody, o empregado de confiança, estava de pé a seu lado, hesitando em falar. Lá em baixo havia um ruído confuso de rodas, e ao pé o sussurro acariciador de uma ventoinha elétrica.
— Hum, Peabody — disse o Dodson, piscando os olhos . Então não adormeci! Tive um sonho muito curioso. O que é que há?
— É o sr. Williams, sr. Dodson, de Tracy & Williams, que está ali fora. Vem liqüidar aquilo daquelas ações. A alta caiu-lhe em cima, lembra-se o sr. Dodson?
— Sim, lembro-me. Como está isso cotado hoje, Peabody?
— Cento e oitenta e cinco, sr. Dodson.
— Então é isso que ele paga.
— O sr. Dodson dá licença… — disse Peabody, com uma certa hesitação —. Desculpe-me falar nisso, mas estive a falar com o Williams. Ele é um velho amigo seu, e o sr. Dodson pode-se dizer que tem na mão todo este papel. Pensei se o sr…., isto é, pensei que o sr. talvez se não lembrasse que ele lhe vendeu o papel a noventa e oito. Se ele líqüida ao preço do mercado, vai-se-lhe tudo quanto tem e ainda por cima, coitado, tem que vender a casa, e a mobília e tudo, para lhe poder entregar as ações.
A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente como uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.
— Cento e oitenta e cinco é que ele paga — disse o Dodson —. O Bolívar não pode levar dois.
O cofre explodiu no sentido de trinta mil dólares, ouro e notas. Os passageiros espreitaram vagamente pelas janelas a ver de onde vinha a trovoada. O condutor puxou a correia que lhe ficou lassa e caída na mão. O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, com o espólio numa saca de lona forte, saíram do vagão e correram pesadamente, com suas botas altas, até à máquina.
O maquinista, amuado, mas prudente, correu velozmente a máquina, obedecendo às ordens, para longe do comboio parado. Mas antes que isto estivesse feito, o guarda do rápido, tendo despertado do argumento com que o Bob Tidball lhe tinha imposto a neutralidade, saltou do vagão com uma Winchester e entrou no jogo. O sr. João Cão Grande, empoleirado no carvão, perdeu a vasa pelo processo involuntário de imitar perfeitamente um alvo. O guarda caçou-o. Com uma bala exatamente entre as espáduas, o cavalheiro de cor e indústria caiu para o chão, aumentando assim automaticamente em um sexto o quinhão de cada um dos camaradas.
A duas milhas do depósito deu-se ordem ao maquinista que parasse.
Os ladrões gritaram um adeus de desafio e enfiaram pelo declive abaixo para os bosques que marginavam a linha férrea. Cinco minutos de caminho difícil através de uma mata de chaparral trouxe-os a um bosque mais aberto, onde estavam três cavalos, presos a ramos baixos. Um esperava o João Cão Grande, que nunca mais andaria a cavalo de dia ou de noite. A este animal tiraram os ladrões a sela e o freio, e puseram-no em liberdade. Montaram nos outros dois, estendendo o saco sobre a maçã da sela de um deles, e seguiram depressa mas discretamente através da floresta e por uma garganta primitiva e solitária acima. Aqui o animal que levava Bob Tidball escorregou num pedregulho musgoso e partiu uma das pernas dianteiras. Mataram-no com um tiro na cabeça, e sentaram-se para realizar um conselho de fuga. Seguros por enquanto, em virtude do caminho tortuoso que haviam tomado, já a questão de tempo os não apoquentava tanto. Havia já muitas horas e léguas entre eles e a mais rápida perseguição que se pudesse organizar. O cavalo do Dodson Tubarão, de corda arrastada e freio caído, resfolegava e comia com agrado da erva à margem do riacho da garganta. Bob Tidball abriu o saco, tirou às mãos ambas maços de notas e um saco único de ouro, e riu com uma alegria de criança.
— Olha lá, meu grande pirata — disse ele rindo para Dodson —, bem dizias tu que a coisa se conseguia. Tens uma cabe~ a de financeiro que deixa atrás tudo no Arizona.
— O que é que a gente vai fazer a respeito de um cavalo para ti, Bob? A gente não pode esperar aqui muito tempo. Logo de madrugada, com a primeira luz, os tipos estão na nossa pista.
— Oh, aquele teu bicho tem que levar dois um bocado — respondeu Bob com otimismo. Deitamos a mão ao primeiro bicho que encontrarmos por aí. Caramba, que fizemos bom negócio, hein? Aqui pelos sinais nas cintas e no saco temos trinta mil dólares — quinze mil a cada bico!
— É menos do que eu esperava — disse o Dodson Tubarão, dando pontapés leves nos pacotes. Depois olhou meditativamente para os flancos suados da sua montada.
— O Bolívar, coitado, está quase que não pode mais disse ele devagar —. Que pena que o teu bicho se estropiasse!
— Ninguém tem mais pena do que eu — disse o Bob sem abatimento —, mas o que é que se há de fazer? O Bolívar é rijo, e pode bem com nós dois até arranjarmos outras montadas. Raios me partam, ó Tubarão, mas não me passa da idéia a piada que tem um tipo do leste como tu vir para aqui ensinar-nos a nós do oeste a dar cartas no negócio de salteador! De que parte do leste é que és?
— Estado de Nova Iorque — disse o Dodson Tubarão, sentando-se num toro e mastigando um fio de erva —. Nasci numa herdade do distrito de Ulster. Fugi de casa quando tinha dezessete anos. Foi um acaso eu vir para oeste. Eu ia pela estrada fora com a roupa numa trouxa a caminho de Nova Iorque, da cidade. A minha idéia era ir para lá e ganhar muito dinheiro. Uma tarde cheguei a um ponto onde a estrada fazia garfo, e eu não sabia por que caminho havia de tomar, estive para aí meia hora a estudar o caso, e depois tomei pelo da esquerda. Nessa noite mesmo fui dar ao acampamento de um circo do oeste que andava dando espetáculos nas várias terras, e segui para oeste com eles. Muitas vezes tenho pensado se não teria dado em qualquer coisa muito diferente se tivesse tomado o outro caminho.
— Hum, a minha idéia é que davas mais ou menos no mesmo — disse Bob Tidball, com uma filosofia alegre —. Não são os caminhos que a gente toma, é o que está dentro de nós, que faz que a gente dê no que vem a dar.
O Dodson Tubarão levantou-se e encostou-se a uma árvore.
— Tomara eu que aquela tua montada se não tivesse estropiado, Bob — tornou a dizer, com uma certa tristeza.
— E dois! — concordou o Bob —. Era um belo bicho. Mas o Bolívar tira-nos aos dois da alhada. Olha lá, e o melhor é a gente ir-se pondo a mexer, hein? Vou meter isto tudo outra vez no saco, e ala para outra terra!
O Bob Tidball repôs o espólio no saco, e apertou a boca deste, com força, com uma corda. Quando levantou a cabeça, a coisa mais notável que viu foi o cano da pistola do Tubarão visando-lhe sem tremer o centro da testa.
— Deixa-te de piadas, rapaz — disse o Bob sorrindo —. A gente tem é que se pôr a mexer.
— Está quieto — disse o Tubarão —. Tu não te vais pôr a mexer para parte nenhuma, Bob. Tenho pena de te dizer, mas não há saída senão para um de nós. O Bolívar, coitado, está muito cansado, e não pode levar dois.
— Temos sido camaradas, eu e tu, Tubarão, há uns três anos — disse o Bob com sossego —. Muita e muita vezes arriscou a gente a vida juntos. Sempre te tenho tratado às direitas, e julgava que eras um homem. Já ouvi coisas que contavam de ti, de como tinhas matado um ou dois homens de uma maneira esquisita, mas nunca acreditei. Ora agora, se estás a brincar comigo, desvia lã a pistola e vamo-nos embora. Mas se queres atirar, atira, filho de um lacrau!
A cara de Dodson Tubarão tinha uma expressão de profunda mágoa.
— Não imaginas que pena eu tenho — suspirou ele — a respeito daquele desastre que aconteceu ao teu cavalo, Bob. A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.
E, na verdade, nunca Bob Tidball se poria mais a mexer para parte nenhuma. Falou a pistola do amigo falso, enchendo a garganta de um estrondo que os seus muros devolveram indignadamente. E o Bolívar, cúmplice inconsciente, levou depressa para longe o último dos salteadores do rápido sem ter que “levar dois”.
Mas à medida que o Dodson Tubarão galopava parecia que os bosques se esfumavam e desapareciam; o revólver na mão direita converteu-se no braço curvo de uma cadeira de mogno: a sela estava extremamente estofada, e ele abriu os olhos e viu seus pés, não em estribos, mas pousados alto na ponta de uma secretária rica.
Estou contando aos senhores que o Dodson, da Dodson & Decker, corretores de Wall Street, abriu os olhos. Peabody, o empregado de confiança, estava de pé a seu lado, hesitando em falar. Lá em baixo havia um ruído confuso de rodas, e ao pé o sussurro acariciador de uma ventoinha elétrica.
— Hum, Peabody — disse o Dodson, piscando os olhos . Então não adormeci! Tive um sonho muito curioso. O que é que há?
— É o sr. Williams, sr. Dodson, de Tracy & Williams, que está ali fora. Vem liqüidar aquilo daquelas ações. A alta caiu-lhe em cima, lembra-se o sr. Dodson?
— Sim, lembro-me. Como está isso cotado hoje, Peabody?
— Cento e oitenta e cinco, sr. Dodson.
— Então é isso que ele paga.
— O sr. Dodson dá licença… — disse Peabody, com uma certa hesitação —. Desculpe-me falar nisso, mas estive a falar com o Williams. Ele é um velho amigo seu, e o sr. Dodson pode-se dizer que tem na mão todo este papel. Pensei se o sr…., isto é, pensei que o sr. talvez se não lembrasse que ele lhe vendeu o papel a noventa e oito. Se ele líqüida ao preço do mercado, vai-se-lhe tudo quanto tem e ainda por cima, coitado, tem que vender a casa, e a mobília e tudo, para lhe poder entregar as ações.
A expressão no rosto do Dodson mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A alma do homem mostrou-se de repente como uma cara sinistra à janela de uma casa honrada.
— Cento e oitenta e cinco é que ele paga — disse o Dodson —. O Bolívar não pode levar dois.
O. Henry
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