quarta-feira, fevereiro 19

Refresque-se

 


Todas as palavras

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.
Manuel António Pina

Assombrações de agosto

Chegamos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana. Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas.

Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias, e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir, perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.

– Ainda bem – disse ela –, porque a casa é assombrada.

Minha esposa e eu, que não acreditamos em aparições de meio-dia, debochamos de sua credulidade. Mas nossos dois filhos, de nove e sete anos, ficaram alvoroçados com a ideia de conhecer um fantasma em pessoa.

Miguel Otero Silva, que além de bom escritor era um anfitrião esplêndido e um comilão refinado, nos esperava com um almoço de nunca esquecer. Como havia ficado tarde não tivemos tempo de conhecer o interior do castelo antes de sentarmos à mesa, mas seu aspecto visto de fora não tinha nada de pavoroso, e qualquer inquietação se dissipava com a visão completa da cidade vista do terraço florido onde almoçávamos.

Era difícil acreditar que naquela colina de casas empoleiradas, onde mal cabiam noventa mil pessoas, houvessem nascido tantos homens de gênio perdurável. Ainda assim, Miguel Otero Silva nos disse com seu humor caribenho que nenhum de tantos era o mais insigne de Arezzo.

– O maior – sentenciou – foi Ludovico.

Assim, sem sobrenome: Ludovico, o grande senhor das artes e da guerra, que havia construído aquele castelo de sua desgraça, e de quem Miguel Otero nos falou durante o almoço inteiro. Falou-nos de seu poder imenso, de seu amor contrariado e de sua morte espantosa. Contou-nos como foi que num instante de loucura do coração havia apunhalado sua dama no leito onde tinham acabado de se amar, e depois atiçou contra si mesmo seus ferozes cães de guerra que o despedaçaram a dentadas. Garantiu-nos, muito a sério, que a partir da meia-noite o espectro de Ludovico perambulava pela casa em trevas tentando conseguir sossego em seu purgatório de amor. O castelo, na realidade, era imenso e sombrio.

Mas em pleno dia, com o estômago cheio e o coração contente, o relato de Miguel só podia parecer outra de suas tantas brincadeiras para entreter seus convidados. Os 82 quartos que percorremos sem assombro depois da sesta tinham padecido de todo tipo de mudanças graças aos seus donos sucessivos. Miguel havia restaurado por completo o primeiro andar e tinha construído para si um dormitório moderno com piso de mármore e instalações para sauna e cultura física, e o terraço de flores imensas onde havíamos almoçado. O segundo andar, que tinha sido o mais usado no curso dos séculos, era uma sucessão de quartos sem nenhuma personalidade, com móveis de diferentes épocas abandonados à própria sorte. Mas no último andar era conservado um quarto intacto por onde o tempo tinha esquecido de passar. Era o dormitório de Ludovico.

Foi um instante mágico. Lá estava a cama de cortinas bordadas com fios de ouro, e o cobre-leito de prodígios de passamanarias ainda enrugado pelo sangue seco da amante sacrificada. Estava a lareira com as cinzas geladas e o último tronco de lenha convertido em pedra, o armário com suas armas bem escovadas, e o retrato a óleo do cavalheiro pensativo numa moldura de ouro, pintado por algum dos mestres florentinos que não teve a sorte de sobreviver ao seu tempo. No entanto, o que mais me impressionou foi o perfume de morangos recentes que permanecia estancado sem explicação possível no ambiente do dormitório.

Os dias de verão são longos e parcimoniosos na Toscana, e o horizonte se mantém em seu lugar até as nove da noite. Quando terminamos de conhecer o castelo eram mais de cinco da tarde, mas Miguel insistiu em levar-nos para ver os afrescos de Piero della Francesca na Igreja de São Francisco, depois tomamos um café com muita conversa debaixo das pérgulas da praça, e quando regressamos para buscar as maletas encontramos a mesa posta. Portanto, ficamos para jantar.

Enquanto jantávamos, debaixo de um céu de malva com uma única estrela, as crianças acenderam algumas tochas na cozinha e foram explorar as trevas nos andares altos. Da mesa ouvíamos seus galopes de cavalos errantes pelas escadarias, os lamentos das portas, os gritos felizes chamando Ludovico nos quartos tenebrosos. Foi deles a má ideia de ficarmos para dormir. Miguel Otero Silva apoiou-os encantado, e nós não tivemos a coragem civil de dizer que não.

Ao contrário do que eu temia, dormimos muito bem, minha esposa e eu num dormitório do andar térreo e meus filhos no quarto contíguo. Ambos haviam sido modernizados e não tinham nada de tenebrosos.

Enquanto tentava conseguir sono contei os doze toques insones do relógio de pêndulo da sala e recordei a advertência pavorosa da pastora de gansos. Mas estávamos tão cansados que dormimos logo, num sono denso e contínuo, e despertei depois das sete com um sol esplêndido entre as trepadeiras da janela. Ao meu lado, minha esposa navegava no mar aprazível dos inocentes. “Que bobagem”, disse a mim mesmo, “alguém continuar acreditando em fantasmas nestes tempos.”, Só então estremeci com o perfume de morangos recém-cortados, e vi a lareira com as cinzas frias e a última lenha convertida em pedra, e o retrato do cavalheiro triste que nos olhava há três séculos por trás na moldura de ouro.

Pois não estávamos na alcova do térreo onde havíamos deitado na noite anterior, e sim no dormitório de Ludovico, debaixo do dossel e das cortinas empoeirentas e dos lençóis empapados de sangue ainda quente de sua cama maldita.
Gabriel Garcia Márquez, "Doze Contos Peregrinos"

Livro faz sonhar

A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.
Fernando Pessoa 

Os sebos resistem e brotam até de buracos na parede

Eles brotam de buracos na parede. Como aquele que, da noite para a dia, surgiu numa ruazinha do Flamengo. Dentro, uma confusão, uma babel imersa em poeira. Mas quem se arriscasse a penetrar na caverna saía de lá com um livro ou um disco que nunca esperaria encontrar. Relíquia há tempos buscada e, por incrível que pareça, em bom estado. O preço, tão prodigioso quanto a descoberta: mais barato que uma mariola.

São os sebos, comércio de livros que resiste ao tempo e transformações do mercado editorial e estão em cartaz numa excelente série de reportagens da Folha. O do Messias chega a ser, pela pujança, uma contradição no país que perdeu quase 7 milhões de leitores desde 2019 e no qual a maioria da população não se dedica à leitura. O maior sebo de São Paulo, há 55 anos na praça, vende mil obras usadas por dia e tem um estoque estimado em 3 milhões de produtos.

Resistência (ou sonho?) é a palavra que move esses comerciantes. O Belle Époque, única loja do gênero num raio de quilômetros na zona norte do Rio, pegou fogo em 2022, mas conseguiu reabrir. Dupla exceção numa atividade que se concentra no centro histórico e nos últimos anos sofreu baixas pesadas. Em 2021, período mais letal da pandemia, morreu a Livraria São José, sebo-modelo da cidade que, em sua fase espetacular, as décadas de 1950 e 60, tinha três endereços e estoque de 100 mil livros.

Ao redor da praça Tiradentes havia um mundo de papéis velhos. Cada loja com sua especialidade: clássicos em francês e espanhol, edições em capa dura de obras completas (Dostoiévski, Dumas, o fabuloso Karl May), revistas de todo o tipo (as de mulher pelada e futebol logo vendidas), volumes de filosofia ou religião, pocket books, dicionários. Com sorte topava-se com alguma estampa Eucalol ou "O Grande e Verdadeiro Livro de São Cipriano", raridade das raridades.

Meu "clássico" continua firme no edifício Marquês do Herval, na avenida Rio Branco. Perdi as contas de quantas vezes minhas pernas, sozinhas, me levaram à Berinjela.

Sem enfeite nenhum

A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no scuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucánia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?

Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor. Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom’, danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai. Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós. Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.

Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa, ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada, que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de sair do lugar.

Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida. Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.

Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.

Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo de laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não te falta, o que falta é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é tão mais bonito, é só acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.

Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, junto com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no título dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que usava essa palavra, tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado. Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.

Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antisardina nº 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde. Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.

Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, achando a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa. Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.

Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.

Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa, de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu, Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva.
O Senhor te abençoe e te guarde, Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti, O Senhor te dê a Paz.

Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado. Era raiva não. Era marca de dor.

Adélia Prado, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século"

segunda-feira, fevereiro 17

Abre caminho

 


Este quarto

Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto…

Que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! Imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousado em mim.

A morte deveria ser assim:
um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim…
Mario Quintana

Memórias procriam

Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não saberemos onde elas nos podem levar. Hibernam por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor dos sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.

Agustina Bessa-Luís

A máquina extraviada

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou — não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas — quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. É claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.

A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo? Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
José J. Veiga, "Os cem melhores contos brasileiros do século"

Uma carta de Paris

Quinze anos depois, numa noite chuvosa de junho, em 1871, a corda da campainha da casa amarela foi puxada violentamente três vezes. As donas da casa abriram a porta para uma mulher robusta, morena, mortalmente pálida, com um pacote no braço, que as fitou com olhos arregalados, deu um passo adiante e tombou sem sentidos sobre o limiar da porta. Quando as senhoras assustadas trouxeram-na de novo à consciência, ela se sentou, lançou-lhes mais um relance com seus olhos fundos, o tempo todo sem dizer palavra, tateou as roupas úmidas e apareceu com uma carta, que lhes estendeu.


A carta era de fato endereçada a elas, mas escrita em francês. As irmãs encostaram a cabeça uma na outra e a leram. Dizia o seguinte:

Senhoras!

Lembram-se de mim? Ah, quando penso nas senhoras meu coração se enche de lírios do vale! Será a lembrança da devoção de um francês capaz de comover seus corações a ponto de salvar a vida de uma francesa?

A portadora desta carta, Madame Babette Hersant, como minha linda imperatriz em pessoa, teve de fugir de Paris. A guerra civil assola nossas ruas. Mãos de franceses têm derramado sangue francês. Os nobres communards, em defesa dos Direitos do Homem, foram esmagados e aniquilados. O marido e o filho de Madame Hersant, ambos eminentes cabeleireiros femininos, foram fuzilados. Ela mesma foi presa como uma pétroleuse e escapou por pouco das mãos sanguinárias do general Galliffet. Perdeu todas suas as posses e não ousa permanecer na França.

Um sobrinho dela é cozinheiro a bordo do Anna Colbioernsson, com destino a Cristiânia (que é, segundo creio, a capital da Noruega), e conseguiu uma oportunidade de embarcar sua tia. É agora seu último e triste recurso!

Sabendo que fui outrora um visitante de seu magnífico país, vem até mim, perguntando se tenho conhecimento de alguma boa gente na Noruega, e me suplica que, se tal for o caso, lhe forneça uma carta para essas pessoas. Estas duas palavras, “boa gente”, imediatamente trouxeram-me diante dos olhos sua imagem, sagrada para meu coração. Eu a confio às senhoras. Como fará para chegar de Cristiânia a Berlevaag, não tenho ideia, tendo esquecido o mapa da Noruega. Mas é uma francesa e descobrirão que, mesmo em sua miséria, ainda encontra desembaraço, grandeza e estoicismo. Invejo-a em seu desespero: ela se verá diante de seus rostos. Quando a receberem misericordiosamente, enviem um pensamento misericordioso para mim na França. Por quinze anos, senhorita Philippa, lamentei que sua voz não houvesse enchido a Grand Opéra de Paris. Quando, esta noite, penso na senhora, sem dúvida cercada por uma família feliz e amorosa, e em mim, velho, solitário, esquecido pelos que outrora me aplaudiram e adoraram, sinto que deve ter escolhido a melhor parte da vida. O que é a fama? O que é a glória? O túmulo nos aguarda a todos! E ainda assim, minha Zerlina perdida, e ainda assim, soprano das regiões geladas!, à medida que escrevo, sinto que o túmulo não é o fim. No Paraíso, ouvirei sua voz novamente. Lá a senhora cantará, sem medos ou escrúpulos, como Deus quis que cantasse. Lá será a grande artista que Deus planejou. Ah, como encantará os anjos.

Babette sabe cozinhar.

Dignem-se receber, minhas senhoras, a humilde homenagem do amigo de outrora,

ACHILLE PAPIN

No pé da página, a título de P.S., iam desenhados com capricho os dois primeiros compassos do dueto entre Don Giovanni e Zerlina, assim:


As duas irmãs, até o momento, contavam apenas com uma pequena empregada de quinze anos para ajudá-las na casa e sentiam que não podiam se dar ao luxo de contratar uma governanta mais velha e experiente. Mas Babette afirmou que serviria a boa gente de Monsieur Papin de graça e que não aceitaria trabalhar para mais ninguém. Se a mandassem embora, provavelmente morreria. Babette permaneceu na casa das filhas do deão por doze anos, até a época desta história.
Karen Blixen, "A festa de Babette"

domingo, fevereiro 16

Se puder pagar...

 


O que eu carregava comigo me pesava

A gente viemos do inferno ― nós todos ― compadre meu Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dôres; e até respirar custa dôr; e nenhum sossego não se tem. Se creio? Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros ― as ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é muito perigoso.


Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miôlo mal do sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas poucas braças, e calcava o reafundo do areião ― areia que escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou cinzento, gretoso e escabro ― no desentender aquilo os cavalos arupanavam. Diadorim ― sempre em prumo a cabeça ― o sorriso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: Hê, valentes somos, corruscubas, sobre ninguém ― que vamos padecer e morrer por aqui... Os medeiro-vazes... MedeiroVaz se estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter um vágado ― como tonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que provinha de excessos de ideia, pois caminhadas piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, meu medo. Aguentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava ― eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d água, da cabaça ― eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intrují duas coisas, em cruz! que Medeiro Vaz estava insensato? ― e que o Hermógenes era pactário! Tomo que essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que descansando do meu lado, assim ouvi! ― Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem... Antes palavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice! Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele ― os gostares…

Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só saiba: o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade ― feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, vir ― e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido doidante, só agora pior, se destapava ― era o que eu tinha rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves ― iam como o costume ― sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dôr do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando ― só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Agua não havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser poupado. Se ia, o pesadêlo. Pesadêlo mesmo, de delírios. Os cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos perdidos. Nenhum pôço não se achava. Aquela gente toda sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais ― Buritis Altos, cabeceira de vereda ― na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela queria viver ou morrer comigo ― que a gente se casasse. Saudade se susteve curta.

Guimarães Rosa, "Grande sertão: veredas"

Autobiografia sem fatos

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo sutilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.

Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito central, de que tudo é sujeito às leis fatais, contra as quais se não reage independentemente, porque reagir é elas terem feito que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdicamos do esforço como os débeis do entretenimento dos atletas, e curvamo-nos sobre o livro das sensações com um grande escrúpulo de erudição sentida. Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.

Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde. Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros.

Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Fernando Pessoa, "O livro do desassossego"

Viver no céu



(Terra: para a maioria dos filhos do céu, a terra é uma fantasia dos velhos. Para os velhos é um sonho no qual eles próprios já não acreditam.)

Aimée vivia no céu – mas não vivia o céu. Não, como nós, nas aldeias, que nascemos e crescemos açoitados pelo vento, pela chuva e pelo sol, ou cobertos, à noite, por um profundo e cintilante manto de estrelas. Os parisienses, na sua maioria, nunca caminharam entre as nuvens. No máximo estendem-se ao sol, nas ociosas varandas dos seus apartamentos de luxo, desfrutando da calmaria de um verão perpétuo. Alguns visitaram uma ou outra aldeia. Ouvi-os, nos cafés, vangloriarem-se dessas rápidas surtidas, como se fossem atos de bravura. Uns poucos viajaram durante dois ou três meses em balsas alugadas. Esses são os mais interessantes. Aliás, um dos melhores relatos de viagens que nós publicámos, em Luanda, traz a assinatura de um parisiense: Voando na Noite, de Patrick Maciel, um navegador solitário, cego, que visitou mais de duzentas aldeias e cerca de trinta grandes dirigíveis, vagueando numa minúscula balsa salva-vidas – a Montparnasse. Tenho este livro na minha biblioteca, na Maianga. Quis conhecer o autor, para lhe pedir um autógrafo, mas ele voltara a partir em mais uma das suas explorações. Patrick é um dos heróis de Aimée:

– Os meus pais são amigos dele. Cresci, ouvindo-o a falar do céu. Sonhava em partir sozinha, como ele, para descobrir outros mundos.

Aimée vivia com os pais e um irmão mais velho num apartamento situado no Oitavo Piso. O Oitavo Piso é o segundo mais luxuoso do Paris. Acima dele desdobram-se cinquenta habitações, ocupadas por famílias riquíssimas e poderosas. É ali, no Nono Piso, que se alonga o famoso Jardim de Luxemburgo, com uma alameda ornada de palmeiras e a réplica exata de um café, o Buvette des Marionnettes, que existiu na antiga Cidade-Luz. O Jardim de Luxemburgo é também famoso pelo enorme lago, no centro, com flamingos. Ao entardecer, os flamingos esvoaçam pelo jardim como elegantes milagres cor de rosa.

O pai de Aimée, Jean-Pierre Longuet, enriqueceu, na terra, a vender computadores. Hoje é o diretor de Informática e Comunicações do Paris, cargo importante, que ele exerce com zelo e competência. A mãe, uma senhora muito alta, de quem Aimée herdou o azul dos olhos e o coração inquieto, foi uma atriz de cinema muitíssimo popular em França. Hoje, dá aulas de ioga. Já Alain, o irmão de Aimée, partilha com o pai a paixão pela informática. Passa a maior parte do tempo a navegar na Internet e a inventar programas e jogos, os quais oferece, depois, a uma meia dúzia de amigos virtuais. Aimée mantém com o irmão uma relação tensa e intensa. Amam-se e odeiam-se. Tão depressa estão aos gritos um com o outro, como aos abraços e carinhos.

Não invejo a vida dos ricos. Sim, eles alimentam-se melhor do que nós. Podem esperar, a cada dia, uma refeição diferente. Não sofrem com o frio e nem enfrentam o terror das grandes tempestades. Em contrapartida padecem de um tédio infindo, o que se me afigura, a mim, a pior das condenações.

O Paris é famoso pelas grandes festas. Estive em algumas. Não achei nelas alegria, antes uma melancolia ruidosa e um sentimento geral de exaustão e ceticismo. Os jovens parisienses dos andares superiores são, quase todos, tão vazios e estéreis quanto um mar sem peixes. Aimée e, de uma outra maneira, o irmão, o esquivo Alain, escapam à regra. Ambos souberam aproveitar os privilégios de que dispunham. A minha amiga estudou astronomia e biologia marinha, leu Borges, Pessoa e Nabokov, praticou judo e aikido. Tive, aliás, a possibilidade de confirmar a habilidade dela no domínio das artes marciais. Uma noite em que eu não trabalhava, combinamos encontrar-nos num bar chamado Baudelaire. Cheguei, como sempre, demasiado cedo. Sentei-me à espera. Um rapaz muito magro aproximou-se de mim:

– Já deixam entrar imigrantes nesta espelunca?

Olhei-o, atônito. Nasci numa pequena aldeia, e sei que posso parecer às vezes um tanto simplório e ingênuo. Contudo, habituei-me desde cedo a enfrentar tempestades. Ergui-me e encarei o imbecil. Perguntei-lhe o nome. Ele hesitou. Voltou-se na direção de um grupo de garotos, muito emproados, que cochichavam entre si, e gritou:

– O parolo quer saber como me chamo.

Dominei a irritação, e voltei a sentar-me, decidido a ignorá-lo. Não tive sorte. O magricelas agarrou-me pela gola da camisa:

– Volta para a tua balsa. Paris é para os parisienses.

Atirei-o para longe (ele era muito leve) e os outros caíram-me em cima, aos socos e pontapés. Aimée surgiu segundos depois. Mergulhou na confusão com a mesma elegância com que saltava para a água, e em gestos precisos, sem esforço aparente, afastou o mais alto dos agressores, estendeu um segundo no chão, e, agarrando em mim, arrastou-me para a porta.

– Não te posso deixar sozinho. Arranjas logo problemas.

A partir dessa noite passei a ter mais cuidado com os lugares que frequentava. Passei também a sentir-me muito mais seguro na presença de Aimée. “Caímos sete vezes, e levantamo-nos oito”, disse-me uma vez. É um dos mandamentos do aikido. Ela aplica-o na vida. Quando tinha doze anos foi-lhe diagnosticada leucemia. Aimée enfrentou a doença com serenidade. Ignorou a consternação dos adultos e o horror das restantes crianças. Não permitiu que a rotina dos tratamentos, a soma de pequenos e grandes desconfortos, interferisse nos seus estudos e, menos ainda, lhe toldasse a luz. Os médicos acham que a rápida recuperação se deveu a essa alegria e determinação.

Recordo uma outra noite, em que fomos passear para o Jardim de Luxemburgo. Enfiei com gosto as mãos na terra úmida.

– Este cheiro. Nunca senti um cheiro assim. É maravilhoso.

Aimée troçou do meu entusiasmo. Abraçou-me. Os pais costumavam levá-los ao jardim, a ela e ao irmão, quando eram crianças. Gostavam que os filhos remexessem na terra. Pretendiam partilhar com eles a dor da perda. O resultado foi que Alain passou a sofrer de pesadelos. Sonhava que a família regressava a França, onde eram perseguidos por animais ferozes. A irmã, mais feliz, passou a comer terra às escondidas. Ela acredita ter sido esse vício extraordinário, mais do que os medicamentos ou o indestrutível otimismo, que a ajudou a vencer a doença.

José Eduardo Agualusa, "A Vida no Céu"

Cápsula do tempo encontrada no planeta morto

Na primeira era, criamos deuses. Esculpimos-os em madeira; ainda havia madeira naquela época. Forjamos-os em metais brilhantes e os pintamos nas paredes dos templos. Eram deuses de muitos tipos, e deusas também. Às vezes eram cruéis e bebiam nosso sangue, mas também nos davam chuva e sol, ventos favoráveis, boas colheitas, animais férteis, muitos filhos. Um milhão de pássaros voavam sobre nós então, um milhão de peixes nadavam em nossos mares.

Nossos deuses tinham chifres em suas cabeças, ou luas, ou barbatanas, ou bicos de águia. Nós os chamávamos de Onipotentes, nós os chamávamos de Brilhante. Sabíamos que não éramos órfãos. Sentíamos o cheiro da terra e rolávamos nela; seus sucos corriam por nossos queixos.

2. Na segunda era, criamos o dinheiro. Esse dinheiro também era feito de metais brilhantes. Tinha duas faces: de um lado, uma cabeça decepada, a de um rei ou outra pessoa notável, do outro lado, algo mais, algo que nos daria conforto: um pássaro, um peixe, um animal peludo. Isso era tudo o que restava de nossos antigos deuses. O dinheiro era pequeno, e cada um de nós carregava um pouco dele todos os dias, o mais próximo possível da pele. Não podíamos comer esse dinheiro, usá-lo ou queimá-lo para nos aquecer; mas como que por mágica, ele podia ser transformado em tais coisas. O dinheiro era misterioso, e o admirávamos. Se você tivesse o suficiente, diziam, você seria capaz de voar.

Margaret Atwood

sábado, fevereiro 15

Remédio em dose certa


 

As ruas

No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?

Mia Couto, “Tradutor de chuvas”

Companheiro na tranquilidade


Busquei tranquilidade em todos os lugares, mas só a encontrei sentado sozinho em um canto com um pequeno livro.

Thomas A. Kempis

Parábola de Natal

Comecei a vê-los assim que me aproximei do hospital. Eram umas dezenas: homens, mulheres, velhos, novos, alguns deficientes, todos encostados às paredes dos numerosos restaurantes que por ali havia. Esperavam os restos dos almoços, com disciplina e contenção. À distância, um carro da Polícia vigiava. Mas nada de sobressaltante acontecia. "Tudo calmo, por aqui", comunicava um dos agentes para a esquadra. O tempo era inclemente e a solidariedade parecia desempregada. Nas ruas, as pessoas não se cruzavam, trespassavam-se com a indiferença de quem apenas quer saber de si.

Ia ver a minha mulher, que quebrara a perna esquerda em duas partes e os médicos preparavam-na para a engessar. Eu vira os ossos de perna dela expostos e ensanguentados e a imagem perturbara-me. Os nossos filhos iam vê-la, consoante a disponibilidade dos horários das escolas e os do hospital. O mais novo parecia que ronronava e estava constantemente a afagar-lhe o braço, com a cara encostava ao corpo dela. Contei-lhe das pessoas que aguardavam as sobras dos restaurantes, e de dois amigos nossos que tinham sido presos. Política, está bom de ver. O hospital, o de São Lázaro, estava repleto. Disse-me ela: "Há muito mais velhos do que novos. Os velhos caem em casa. Há alguns novos, mas a maioria é constituída por velhos que caíram em casa." Agora, caía uma chuva miúda e a cidade cheirava a peixe podre. Ouviu-se o silvo de uma ambulância e um grito longínquo. "Daqui a duas semanas, saio, mas vou ficar uns tempos largos com a perna cheia de gesso. E dá--me uma comichão enorme. Tens chegado cedo a casa?" Aproxima-se um médico. Não me liga nenhuma e faz perguntas do estado de saúde da minha mulher. Ela responde-lhe dificultosamente e estou à beira de intervir na conversa. A arrogância dos médicos é como se fora o seu estatuto social. Despeço-me dela e acaricio-lhe o belo rosto com ternura. "Já não sei dormir sem ti", digo. "Vem depressa." A rua é um bloco de gelo, e os eléctricos circulam vazios. As pessoas comem dos caixotes, depois de escolherem as peças mais apresentáveis. Um dos deles olha-me fixamente. Diz: "Nunca viu um homem comer?"
Baptista-Bastos, Correio da Manhã, 2014

O homem das iscas

Um homem tinha uma fazenda perto de um rio. Certo dia o rio começou a subir e ele percebeu que sua fazenda ia ficar submersa.

Transferiu toda sua família e todo seu gado e todos os utensílios e móveis para o alto da montanha mais próxima.

Havia, na sua fazenda, exatamente 284 quilômetros de cerca de arame farpado. Era um arame de sete farpas por metro, num total de mil farpas por quilômetro e, portanto, toda a cerca somava 1.988.000 farpas.

O homem arranjou um empregado e, sem comer nem dormir, colocou em cada uma dessas farpas um pedacinho de carne, uma isca qualquer. Quando terminou, ele e o empregado mal tiveram tempo de subir à montanha. Veio o dilúvio.

Durante noventa e três horas choveu ininterruptamente durante noventa e seis horas e rio esteve três metros acima da cerca. Mas logo as águas cederam e rapidamente o rio voltou ao normal.

O homem desceu e examinou a cerca. Encontrou, maravilhado um peixe pendente de cada farpa, exceto três. Ou seja, um total de 1.987.997 peixes. Havia tainhas, e havia robalos, corvinas, namorados, galos e muitas outras espécies que ele nunca vira.

Cada peixe pesava, em média, duzentos e cinquenta gramas, de modo que o homem tinha um total de 496.999.250 gramas de peixe fresco, ou seja, 496.999 quilos de peixe. Isso tudo, vendido a 10 cruzeiros o quilo, vocês façam a conta e…

Ah, naturalmente o empregado foi despedido porque colocou mal as iscas nas três farpas que falharam.

Millôr Fernandes, "Fábulas Fabulosas"

sexta-feira, fevereiro 14

Manhã de leitura

 


Um milagre

Anúncio miúdo publicado num jornal: “A Nossa Senhora, a quem recorri em momentos de aflição na madrugada de 11 de maio, agradeço de joelhos a graça alcançada.” Uma assinatura de mulher. Em seguida vinha o 29766, em que se ofereciam os lotes de um terreno, em prestações módicas. Esse não me causou nenhuma impressão, mas o 28829 sensibilizou-me.

A princípio achei estranho que alguém manifestasse gratidão à divindade num anúncio, que talvez Nossa Senhora nem tenha lido, mas logo me convenci de que não tinha razão. Com certeza essa alma, justamente inquieta numa noite de apuros, teria andado melhor se houvesse produzido uma Salve-Rainha, por exemplo. Infelizmente nem todos os devotos são capazes de produzir Salve-Rainhas.

Afinal essas coisas só têm valor quando se publicam. A senhora a que me refiro podia ter ido à igreja e enviado ao céu uma composição redigida por outra pessoa. Isto, porém, não a satisfaria. Trata-se duma necessidade urgente de expor um sentimento forte, sentimento que, em conformidade com o intelecto do seu portador, assume a forma de oração artística ou de anúncio. Há aí uma criatura que não se submete a fórmulas e precisa meios originais de expressão. Meios bem modestos, com efeito, mas essa alma sacudida pelo espalhafato de 11 de maio reconhece a sua insuficiência e não se atreve a comunicar-se com a Virgem: fala a viventes ordinários, isto é, aos leitores dos anúncios miúdos, e confessa a eles o seu agradecimento a Nossa Senhora, que lhe concedeu um favor em hora de aperto.

Imagino o que a mulher padeceu. A metralhadora cantava na rua, o guarda da esquina tinha sido assassinado, ouviam-se gritos, apitos, correrias, buzinar de automóveis, e os vidros da janela avermelhavam-se com um clarão de incêndio. A infeliz acordou sobressaltada, tropeçou nos lençóis e bateu com a testa numa quina da mesa da cabeceira. Enrolando-se precipitadamente num roupão, foi fechar a janela, mas o ferrolho emperrou. A fuzilaria lá fora continuava intensa, as chamas do incêndio avivavam-se. A pobre ficou um instante mexendo no ferrolho, atarantada. Compreendeu vagamente o perigo e ouviu uma bala inexistente zunir-lhe perto da orelha. Arrastando-se, quase desmaiada, foi refugiar-se no banheiro. E aí pensou no marido (ou no filho), que se achava fora de casa, na Urca ou em lugar pior. Desejou com desespero que não acontecesse uma desgraça à família. Encostou-se à pia, esmorecida, medrosa da escuridão, tencionando vagamente formular um pedido e comprimir o botão do comutador. Incapaz de pedir qualquer coisa, arriou, caiu ajoelhada e escorou-se à banheira. Depois lembrou-se de Nossa Senhora. Passou ali uma parte da noite, tremendo. Como os rumores externos diminuíssem, ergueu-se, voltou para o quarto, estabeleceu alguma ordem nas ideias confusas, endereçou à Virgem uma súplica bastante embrulhada.

Não dormiu, e de manhã viu no espelho uma cara envelhecida e amarela. O filho (ou marido) entrou em casa inteiro, e não foi incomodado pela polícia.

A alma torturada roncou um suspiro de alívio, molhou o jornal com lágrimas e começou a perceber que tinha aparecido ali uma espécie de milagre. Pequeno, é certo, bem inferior aos antigos, mas enfim digno de figurar entre os anúncios do jornal que ali estava amarrotado e molhado.

Realmente muitas pessoas que dormiam e não pensaram, portanto, em Nossa Senhora deixaram de morrer na madrugada horrível de 11 de maio. Essas não receberam nenhuma graça: com certeza escaparam por outros motivos.

Graciliano Ramos, "As cem melhores crônicas brasileiras"

Casa na chuva


A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.

Eugénio de Andrade, "Escrita da Terra"

Molduras

Não é de agora que a minha mãe não sabe quem eles são. Encontrei o quadro no fundo de uma arca, no início dos anos 80, quando entrei à socapa na casa dos meus avós, que estava para obras, depois de ter sido vendida a um emigrante francês. Já então a minha mãe se interrogou, Como é que esqueci quem são estes? Haviam passado mais de duas décadas desde a última vez que, juntas, a minha mãe, a minha avó e a minha tia se haviam visto refletidas no vidro do quadro

Três desconhecidos vigiam-me. Ou protegem-me. É difícil distinguir uma coisa da outra. Três desconhecidos. Nesta casa. Desde sempre. Na casa a que eu voltei. A casa dos meus pais. Depois da minha mãe. E agora? De quem é esta casa, agora?

A moldura é em madeira escura trabalhada, tem 73 por 52 centímetros e está pendurada na parede da sala, entre a zona das refeições e os sofás. Ao pender para a frente, criando com a vertical um ângulo de mais de cinco graus faz com que os sete rostos perfilados no seu interior surjam como se nos olhassem de uma galeria alta. É uma montagem, explica-me mais uma vez a minha mãe, foi a tua avó que a mandou fazer, as fotografias originais devem ter sido todas tiradas no fotógrafo da Carrazeda, ali ao pé dos bombeiros, lembras-te?, não havia outro, nem longe nem perto, só pode ter sido lá, eu sou a que está no meio, olha como era bonita. Ri-se, marota. A vaidade da minha mãe é tão recente quanto os estragos na sua cabeça.

Era, de facto, muito bonita a minha mãe. Apesar de a fotografia ser a preto-e-branco, adivinha-se o cabelo arruivado e os olhos esmeralda das heroínas descritas pela Jane Austen. As sombras realçam o rosto oval, o pescoço alto, tranças enroladas à volta da cabeça com um laçarote de cada lado. Tirei a fotografia nas vésperas de ir para o Brasil, tinha 11 anos, 1950, 11 anos e lá fui eu sozinha para estudar no Brasil, quem numa aldeia ia além da quarta classe?, os rapazes ainda podiam fazer o seminário, mas uma rapariga… o tio Alfredo que vivia em São Paulo bem recebeu o dinheiro que o meu pai lhe deu para os meus estudos, mas pôs-me a lavar pratos, ainda lá fiquei dois anos, a sorte foi o João Candeias ter-me levado ao consulado de Portugal, eu não tinha dinheiro para regressar, mesmo que tivesse não saberia como comprar a viagem, pouco mais era do que uma criança. Na fotografia, a compostura da minha mãe e a solidez do seu olhar atiram-na para o início da idade adulta. A adolescência é uma invenção muito recente.

No quadro, os corpos existem apenas do peito para cima, lado a lado, sobressaindo de uma nuvem cinzenta que esfuma as sobreposições dos ombros. O resultado é uma gigante minhoca heptacéfala com olhares desencontrados. Do lado direito da minha mãe, está o pai dela. O nivelamento dos rostos não permite revelar quão alto era o meu avô Venâncio. Um homem bonito com orelhas de abano, casaco, colete, gravata. Parece esculpido em madeira. Foi um homem mau, confessa a minha mãe. A minha avó Marquinhas está do lado esquerdo da minha mãe. O talento do fotógrafo não conseguiu disfarçar-lhe a fealdade da monocelha, do nariz adunco, dos lábios finos, mas o que mais impressiona é a sua tristeza. Sempre a conheci de luto, perdeu dois filhos antes de eu nascer, lamenta a minha mãe, voltou a perder outro já eu andava por cá, isto contando só os nascidos, que muitos foram os abortos que a pobrezinha teve, ainda por cima o que o meu pai lhe batia, graças a Deus o teu pai nunca me bateu. Para a minha mãe, um marido bater ou não na mulher é o resultado de a vida ser uma roda de sorte e azar, não tem que ver com crime ou com respeito e amor. Ao lado da avó Marquinhas está a sua outra filha, a irmã da minha mãe, a minha tia Odete. A fotografia apresenta-a ainda criança, terá uns 7 anos, um cabelo penteado com o risco ao lado, farto e liso, negro, cortado a direito pouco acima dos ombros. O vestido claro não lhe aligeira o olhar pesado de quem pressente um trágico destino, Sofreu tanto e morreu tão nova, exclama a minha mãe.

A emoldurar a família nuclear, existe um casal do lado direito e uma mulher do lado esquerdo. O homem tem cabelo e bigode brancos, mas uma cara jovem, apesar de rude, Acho que eram os padrinhos da minha mãe, o Lopes e a mulher, como é que ela se chamava?, tem uma camisa muito branca com gola subida de folhos, medalhão com a cruz de Cristo, cabelo apanhado. A mulher do lado esquerdo da minha tia Odete tem feições vagamente familiares, olhos escuros, nariz demasiado grande, rosto baço.

Ultimamente a minha mãe deixa-se ficar a olhar para o quadro, Gostava de saber quem são aquelas pessoas, têm de ser importantes para estarem ali, diz, o quadro foi feito em Lisboa, a Amelinha, a filha do dr. Cabral, trouxe as fotografias e mandou-o fazer, a minha mãe vendeu alqueires de trigo às escondidas do meu pai para arranjar dinheiro com que o pagar, quando recebeu o quadro embrulhou-o em lençóis e escondeu-o numa das arcas da sala de entrada, se o meu pai tivesse descoberto que ela tinha gasto dinheiro com isto, dava-lhe uma tareia de criar bicho, eu tinha voltado já do Brasil quando a Amelinha chegou de Lisboa com o quadro, nos dias em que o meu pai ia à feira do gado de Mirandela ou a outra lonjura dessas, a minha mãe tirava-o da arca, desembrulhava-o e ficávamos as três, a minha irmã, a minha mãe e eu a olharmos para ele, gostávamos de passar a mão na moldura de madeira, aqueles repenicados de metal brilhavam mais do que a prata, era o nosso segredo, como é que esqueci quem é aquela gente?

Não é de agora que a minha mãe não sabe quem eles são. Encontrei o quadro no fundo de uma arca, no início dos anos 80, quando entrei à socapa na casa dos meus avós, que estava para obras, depois de ter sido vendida a um emigrante francês. Já então a minha mãe se interrogou, Como é que esqueci quem são estes? Haviam passado mais de duas décadas desde a última vez que, juntas, a minha mãe, a minha avó e a minha tia se haviam visto refletidas no vidro do quadro. Até esse dia, talvez o quadro nunca tivesse chegado a conhecer outro repouso que não o do sombrio fundo da arca.

Três desconhecidos vigiam-me. Ou protegem-me. É difícil distinguir uma coisa da outra. Três desconhecidos. Nesta casa. Desde sempre. Na casa a que eu voltei. A casa que era dos meus pais. Depois da minha mãe. E agora? De quem é esta casa, agora?

Contos de fadas


Um dia você será velho suficiente para começar a ler contos de fadas de novo.

C. S. Lewis

Vila Alegria

Foi um ano difícil. Aproveitei o recesso do trabalho para pegar a estrada e fazer um balanço do ano que passara e do que estava por vir. Sabia mais ou menos onde queria chegar, mas o tempo não era importante. Iria parando aqui e pernoitando lá, sem pressa de chegar ao meu destino. A tarde caía pesadamente sobre a estrada poeirenta que serpenteava um local chamado Vila Alegria. Seus raios dourados, em vez de trazerem o calor reconfortante, lançavam uma sombra que bruxuleava sobre o lugar, como se o próprio sol temesse iluminar totalmente os segredos enterrados sob o véu da história e da tradição. Como estava perto do anoitecer, resolvi ficar por ali essa noite.

Ao adentrar os limites da vila, fui recebido por um silêncio que não costumamos conhecer, como se as próprias ruas desertas guardassem segredos proibidos. Os moradores, pareciam pálidas de suas próprias existências, trocavam entre si saudações vazias, seus olhares desprovidos de qualquer brilho. — Bem-vindo à Vila Alegria, murmurou um velho pescador, suas palavras pairando no ar eram desconexas de seu olhar perdido e vazio. Instalei-me na modesta pousada na rua principal da cidade, onde o proprietário, um homem taciturno de semblante cansado, murmurou advertências sombrias sobre cuidados na estadia, deixando-me inquieto com suas meias-palavras e sugestões de prudência. Vários moradores rondavam o lugar com curiosidade. À medida que a noite caía, uma sensação de inquietação se apossava de mim.


O vento, como um sussurro sibilante, varria as ruas agora vazias, trazendo consigo murmúrios de segredos há muito esquecidos, tentei me concentrar no livro que estava lendo, mas minha cabeça estava tomada por pensamentos que divagavam, como se minha própria mente conspirasse contra mim. Foi então que ouvi um barulho, algo que lembrava um choro distante, parecia um lamento ecoando pelas vielas escuras da pequena cidade. Movido pela curiosidade, segui o som até uma pequena casa bem nos limites da vila.

A porta entreaberta revelou uma jovem mulher sentada no chão, os olhos vazios mirando o horizonte e as lágrimas correndo por suas bochechas pálidas. — O que está acontecendo aqui? Perguntei, com minha voz trêmula ecoando no vazio que nos cercava. Ela ergueu os olhos para me encarar, e, no fundo de seu olhar sem vida, vislumbrei por um pequeno instante uma sombra do horror que a consumia. — Estamos todos presos aqui, murmurou ela com uma voz rouca. — Presos no vazio, na escuridão... até que não reste mais nada. Eu havia contemplado o abismo e tinha medo que ele tivesse percebido minha presença.

Saí correndo imediatamente daquele lugar, tomando o caminho de volta para pousada, mas não sabia que a partir daquela noite mergulharia nas profundezas sombrias do que assombrava a vila, segredos entrelaçados pelo que aparentava ser um passado repleto por muita dor e sofrimento. Porém o que mais me perturbava não eram os possíveis eventos do passado, e sim a maneira como o vazio que observei naquela mulher parecia infectar minha mente, assim entendi o motivo de cada habitante parecer padecer do mesmo mal. Senti aquela imagem que vi de soslaio, percorrendo meu ser, e corroendo minha alma aos poucos, deixando para trás um vazio, nada, nem dor, nem, raiva, nem solidão, apenas o nada.

Procurei conversar com os poucos moradores lúcidos, cada palavra deles carregada de um misto crescente de e resignação. A cada história contada, sentia-me mergulhando mais fundo em uma realidade fantástica e sombria que envolvia aquela pequena vila, era como se o oxigênio local fosse impregnado pelo puro desespero e desesperança. Enquanto lutava para entender o mistério que aprisionava o lugarejo nesse aparente vazio, senti que o mesmo começava a se enraizar ainda mais dentro de mim, minha experiência de confrontar os olhos do desespero sem nenhum preparo, começava a me cobrar a conta. Sentia como se o universo estivesse me consumindo, ameaçando me tomar por completo.

No silêncio sufocante da noite, confrontei meus demônios internos, lutando para manter o que restava da minha sanidade em um mar cada vez mais crescente de desespero. Mas aparentemente quanto mais eu lutava, mais forte o vazio parecia, envolvendo-me e tomando cada parte de mim, esvaziando a vontade de reagir. Foi então que percebi que estava correndo contra o tempo, que se não encontrasse uma maneira de escapar logo, estaria condenado a ser consumido por esse “nada” para sempre. Mas como escapar de algo tão insidioso, tão implacável? E também tão inexplicável?

Na sombra do pior momento tive uma epifania, compreendi que poderia haver uma maneira de derrotar esse crescente vazio. Tentei encontrar o que restava ainda da esperança dentro de mim, precisava buscar uma saída no meu amago, aquela fé que nasce do desespero, mesmo nos piores momentos. Decidi me lançar de cabeça na busca definitiva pela verdade e quem sabe da minha redenção, mesmo entendendo que enfrentaria muitos obstáculos pelo caminho. No entanto, minha determinação era inabalável, sabia que minha missão era mais do que uma busca pessoal, era a chance de trazer esperança e renovação a toda uma comunidade consumida pelo mesmo desespero que eu agora sentia.

À medida que o sol se erguia no horizonte, parti em minha jornada, armado apenas com minha determinação e minha vontade infindável de sobreviver. Na solidão do nada, a única coisa que podia me guiar era a luz da esperança, fraca, mas inquebrável, ainda dentro de mim. No entanto, à medida que avançava, a esperança parecia uma ilusão fugaz, uma chama vacilante diante da vastidão do vazio que nesse momento inundava a vila. A desesperança se tornava mais densa a cada passo, como se estivesse se alimentando de nossas próprias almas, mas minha determinação ainda persistia, e mesmo diante da crescente sensação de desespero que me consumia pedaço por pedaço, eu segui, um passo de cada vez adiante.

E então, quando tudo parecia perdido, quando os passos ficavam cada vez mais lentos, percebi alguns moradores seguindo para uma vereda, e em suas mãos seguravam velas. Essa simples visão me impulsionou e os segui, e depois de vários minutos de caminhada na mata densa que circundava a vila, eles chegaram em um santuário, que aparentava ser antigo, e estava escondido nas profundezas dessa mata. Este lugar ficava recostado em um monte, e na frente deste havia como um caminho de pedras no chão, formando uma espiral.

Nas paredes do monte podíamos ver pinturas rupestres, desenhos de homens e mulheres, animais e também pintadas as imagem de vários símbolos irreconhecíveis. Os moradores, ao chegarem nesse local, começavam a percorrer a longa trilha de pedras seguindo a espiral, e a cada volta viam a luz de suas velas diminuírem até por fim se extinguirem, sem vento, sem nada, apenas parava de brilhar, como que engolidas pelo centro sombrio desse pátio cerimonial. Esse local era como um ponto de encontro cósmico das forças da criação e destruição em uma eterna dança de morte e renascimento.

No coração deste templo ancestral, percebi que os moradores seguiam em fila indiana até chegar ao centro da espiral, e ao chegar ao que deveria ser esse ponto, eu não mais os via, como se também se apagassem como a luz das velas em suas mãos. Assustado e sem saber bem o que fazer, decidi apostar tudo, enfrentando eu mesmo esse cortejo e seguir a espiral até o seu final, chegando perto do núcleo do vazio, a esfera do chão abraçou todo meu corpo e eu já não estava lá, ali, não estava mais hoje, ao menos não no tempo que vivenciamos, eu já estava em outro lugar. Cheguei no passado, entre povos originários, talvez os mesmos que pintaram as paredes daquele local, senti que tinham muita fome, decorrente de uma seca talvez?

Em seguida, sombras, e já me encontrava em outro momento. Vi homens arrastando outros a ferros, muita dor e sofrimento, açoite e perversão, riquezas nascidas do sangue e exploração do semelhante. Novamente, a esfera do vazio me abraçou, e ao perceber vi que estava em outro tempo, o local da espiral estava totalmente devastado do monte que era o recosto do templo. Agora, nada mais restava, tudo estava árido, as arvores que cercavam tudo haviam morrido, não se via mais sinal de vida, só destruição, e com ela a certeza dentro de mim que ali era o momento do fim da humanidade.

De repente, voltei, estava de novo no meu lugar, no meu tempo, com os moradores que haviam seguido em procissão. Imaginei que era ali que residia o poder que mantinha a vila aprisionada em seu domínio sombrio, alimentando-se do sofrimento dos seus habitantes de ontem e dos que estão por vir, o tempo não é linear, então aquele lugar absorvia de alguma forma, o sofrimento do que contabilizamos como presente, passado e futuro, tudo no mesmo momento. Enquanto observava a cena ainda perplexo, compreendi pela minha experiência ainda vívida, que a verdadeira fonte do mal que assolava a vila não era nenhuma entidade sombria, mas sim algo muito mais insidioso e cada vez mais presente em nossas vidas. Algo que parece rotineiro e normal, alguns chamaram de tristeza profunda, outros de solidão acompanhada, lá no passado já chamaram de banzo, hoje, denominamos depressão.

A névoa que envolvia a vila e tinha naquele local seu centro de poder não era apenas um símbolo do vazio de cada um de nós, mas a total perda da vontade de viver de cada um que já pisou e que iria ainda pisar naquele chão. Talvez uma representação pequena do que todo nosso mundo poderia se tornar no futuro, caso continuemos nesse nossa trajetória. Ao entender com o que lutava, busquei com todas minhas forças, lutar contra o vazio, e canalizando a luz que havia se extinguido nas velas das mãos daquelas pessoas, sabia que, assim como foram consumidas pelo nada, do nada poderiam ser exortadas, e ordenei que ardessem novamente. Gritei e gritei, e uma a uma foram surgindo pequenos pontos de luz que irromperam a noite. Depois, já não eram mais pequenos pontos de luz, mas uma imensa e irradiante iluminação que ofuscava todos que ousassem olhar diretamente aquela cena.

E dentro de mim, essa chama também ardia, dissipando o vazio que se alimentava de todos naquele lugar. Essa luta entre luz e trevas, esperança e desespero, ordem e caos, ecoou através das dimensões do tempo como um trovão estrondoso, e após a explosão de luz que tomou toda floresta, o nada se esvaiu, consumindo-se em si, dissipando as sombras e mostrando no horizonte que um novo dia começará a nascer. Os habitantes, agora libertos do jugo sombrio que os aprisionava, olharam para os primeiros raios solares da alvorada com olhos cheios de esperança, prontos para começar de novo em um mundo livre da maldição que os assombrara por tanto tempo, por todo tempo, de ontem, hoje e do amanhã. Com o nada finalmente dissipado, a Vila Alegria podia viver uma nova chance de prosperar e florescer.

E, à medida que o sol se erguia sobre os telhados da vila, os moradores saíam às ruas, celebrando sua libertação com alegria e gratidão. Quanto a mim, o viajante solitário que havia chegado à vila em busca de renovação, encontrei meu próprio renascimento na esperança que agora brilhava sobre aquele lugar outrora condenado. Pois no fim da espiral da vida, descobri que mesmo as sombras mais densas podem ser dissipadas pela luz da verdade e da determinação, enquanto deixava para trás a cidadezinha, sabia que minha jornada ainda havia terminado, o monstro da tristeza que habita cada um de nós estava por aí, muitas batalhas ainda por ser travadas para afastar definitivamente esse mal, mas agora, eu seguia em frente com um coração cheio de esperança, pronto para enfrentar o que quer que o futuro reservasse, sabendo que um pequeno ponto de luz, mesmo de uma singela vela, já bastava para confrontar as trevas.

Cláudio Carraly

quinta-feira, fevereiro 13

Hora de descanso

 


Dona Maria

Dona Maria me disse: não aguento mais, já estou pra comprar uma gaita, me sentar na calçada, e ficar tocando, tocando…

— Mas só pra distrair?

— Que mané pra distrair! O senhor não está entendendo? – Entendo. A senhora vai ficar sentada na calçada, de vestido sujo, cabelos despenteados, esquálidos, a soprar uma gaitinha rouca, não é?

Depois as pessoas ficarão com pena da sua figura esfarrapada, tocando uma gaitinha rouca, e jogarão moedas encardidas em seu colo encardido, não é?

Seu vestido ficará salpicado de mosca e lama

A senhora de três em três minutos dará uma chegada no boteco da esquina e tomará um trago

Com pouco a senhora estará balofa, inchada de cachaça, os lábios como cogumelos

Sua boca vai cair no chão

Uma lagarta torva pode ir roendo seus dias superiores pelo lado de fora

Um moleque pode passar a esfregar terra em seu olho

Ligeiro visgo escolha a crescer de seus pés

Alguns dias depois sua gaita ficará cheia de formiga e areia

A senhora estará cheia de lacraias sem anéis

E ninguém suportará o cheiro do seu corpo, não é assim?

Dona Maria teve um arrepio.

— Epa moço! eu não queria dizer isso. Só pensei em comprar uma gaita, eu sentar na calçada e ficar tocando, tocando… até que a vida melhorasse. O resto o senhor que inventou. Desse jeito, já estou vendo os meninos passarem por mim a gritar: — Maria Gaiteira, fiu! Maria Gaiteira,

Fiu Fiu!

Por favor, moço, mande esses meninos embora pra casa deles. O senhor já me largou na sarjeta, já fez crescer visgo no meu pé, e agora ainda manda os moleques me xingarem…
Manoel de Barros, "Poesia completa" 

A capa

No chão da infância vou encontrar
todos os objetos que perdi:
a capa azul, o livro de gravuras,
o retrato do irmão morto
e tua boca fria, tua boca fria.

Minha capa azul, no chão da infância,
cobre os objetos e alucinações.
É uma capa azul, de um azul profundo
que em tempo algum será encontrado.
Azul como este não existe mais.
E a todos vocês que são puros ou relapsos,
virgens no inverno e repulsivos no verão,
faço meu pedido de um azul profundo:
cubram-me com esta capa no dia em que eu morrer.

Quando eu estiver morrendo, podem ter certeza,
uma capa azul, de um azul profundo,
envolverá meu corpo da cabeça aos pés.

Lêdo Ivo

Rosalina


Ali naquela casa de muitas janelas de bandeiras coloridas vivia Rosalina. Casa de gente de casta, segundo eles antigamente. Ainda conserva a imponência e o porte senhorial, o ar solarengo que o tempo de todo não comeu. As cores das janelas e da porta estão lavadas de velhas, o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida; vidros quebrados nas vidraças, resultado do ataque da meninada nos dias de reinação, quando vinham provocar Rosalina (não de propósito e ruindade, mais sem-que-fazer de menino), escondida detrás das cortinas e reposteiros.

Autran Dourado, "Ópera dos mortos"

Os professores

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição.

Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.

José Luís Peixoto