quarta-feira, maio 14

Leitor no paraíso

 


A literatura de ficção morreu?

Muito antes de publicar o meu primeiro livro eu já ouvia dizer que o romance e o conto estavam mortos. Parece que a primeira morte teria sido anunciada ainda em 1880, não obstante, como todos sabem, Emily Dickinson, Tchekov, Proust, Joyce, Kafka, Maupassant, Henry James, o nosso Machado, Eça, Mallarmé, as Bronte, Fernando Pessoa (um pouco mais tarde) estivessem ativos naquela época.

No início do séc. XX, com o lançamento, por Henry Ford, do Ford Model T, um automóvel popular, construído numa linha de montagem, um carro barato que em poucos anos vendeu mais de quinze milhões de unidades, as Cassandras afirmaram que agora a literatura de ficção, na qual se incluía a poesia, estava mesmo com os dias contados. Dentro de pouco tempo todas as pessoas teriam automóvel e usariam o carro para passear, fazer compras, namorar em vez de ficarem em casa lendo. Ou porque não soubessem o que lhes reservava o futuro, ou lá porque fosse, o certo é que muitos escritores, como Yeats, Benavente, Galsworthy, Selma Lagerlof, Rilke, Kavafis, Edna St. Vincent Millay continuaram escrevendo, e talvez até mesmo tivessem um Model T na garagem deles.

Nova anunciação mortal veio logo em seguida, causada pelo cinema, denominado de Sétima Arte. Uma pesquisa da época mostrou que em cada 100 pessoas 80 freqüentavam o cinema e 2 (duas!) liam livros de ficção. Agora mesmo é que a literatura, enfim, havia morrido. Desta vez não tinha salvação. Mas Sinclair Lewis, Thomas Mann, Bunin, Céline, Ana Akhmatova, O’Neill, Pirandello, e muitos outros não sabiam disso. (Os dois últimos são autores de teatro, mas o teatro começou a morrer antes).

Depois nova morte foi profetizada, quando do advento da televisão. Mas William Faulkner, Eliot, Gide, Hesse, Quasimodo, Pasternak, Camus, Hemingway, Beckett, Seferis, Kawabata, Mauriac, Steinbeck e muitos mais não pararam de escrever. Que diabo, esses caras não liam os jornais? Não sabiam que a literatura de ficção havia morrido?

Afinal veio o golpe de misericórdia: o computador e a Internet. Era a pá de cal. Mas o que estava acontecendo? Quem são (ou eram) esses loucos escrevendo poesia e romance – Carlos Drummond de Andrade, Czeslaw Milosz, João Cabral, Pablo Neruda, Montale, Heinrich Böll, Saul Bellow, Isaac Bashevis Singer, Octavio Paz, Brodsky, García Márquez (“se você diz que o romance está morto, não é o romance, é você que está morto”), Canetti, Günter Grass, Kenzaburo Oe, Saramago, João Ubaldo, Ferreira Gullar e um montão de outros? O que na realidade está acontecendo?

Existem muitos estudos interessantes e extensos sobre o assunto, como o da ensaísta Leila Perrone-Moisés, em seu livro Altas literaturas (Companhia das Letras, 1998). Uma coisa talvez esteja acontecendo: a literatura de ficção não acabou, o que está acabando é o leitor. Poderá vir a ocorrer este paradoxo, o leitor acaba mas não o escritor? Ou seja, a literatura de ficção e a poesia continuam existindo, mesmo que os escritores escrevam apenas para meia dúzia de gatos pingados?

Kafka escrevia para um único leitor: ele mesmo. Recordo Camões. Ele era um arruaceiro, e acabou na prisão, ou por motivos de suas rixas ou por ter se envolvido com a infanta Dona Maria, irmã do rei João III. Para obter o perdão do rei ele propôs-se a servi-lo na Índia, como soldado. Lá ficou 16 anos e, afinal, a bordo de um navio voltou para Portugal, acompanhado de uma jovem indiana, que ele amava, e a quem dedicou o lindo soneto “Alma minha gentil, que te partiste”. O navio naufragou e Camões só pensou, durante o naufrágio, em uma coisa: salvar o manuscrito dos Lusíadas e dos seus poemas. Deixou a mulher amada morrer afogada (confesso que especulo), e perdeu todos os seus bens, mas salvou os seus manuscritos. Para quem ler? Estávamos no século 16 e muita pouca gente em Portugal sabia ler. Mas Camões pensou nesse punhado de leitores, era para eles que Camões escrevia, não importava quantos fossem eles.

Os leitores vão acabar? Talvez. Mas os escritores não. A síndrome de Camões vai continuar. O escritor vai resistir.
Rubem Fonseca

Sobre fantasmas

Era um fantasma educado. Comia e bebia sem se queixar de nada, como se minha casa fosse um impecável hotel, e gostava dos meus sonetos, principalmente quando eu não os mostrava.

***

Na noite em que o fantasma, de cachimbo e bonitão, apareceu para ela na sala e sorriu, Jurema teve vontade de chorar: por que não tinha aprendido a falar inglês? Estava imaginando se o fantasma se chamava James ou Lawrence, quando ele tirou o cachimbo da boca e perguntou: oi, meu doce, tudo bem?

***

Era um fantasma objetivo. Logo no primeiro dia fez um acerto com o casal de idosos dono do apartamento e se instalou no quarto da empregada pelo tempo necessário para seduzi-la, engravidá-la e desaparecer.

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Era um fantasma bissexto, que mais sumia do que aparecia.

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Uma noite, entrou no quarto um fantasma de cachimbo e ceroula que parecia saído de uma comediazinha de circo e fez três perguntas a Ismênia: se ali era Londres, se Winston Churchill estava por lá e onde ficava o banheiro.

***

Ele não chegou a dizer seu nome. Foi um fantasma respeitador, pelo menos no início. Mais ou menos na terceira semana, quando começou a chegar só de manhã, tocando sanfona, fui obrigado a dizer que nunca mais aparecesse. Minha mulher e eu, quando lembramos dele, o chamamos de “aquele lá do baião”.

***

A viúva Seixas dizia que o fantasma que começou a visitá-la nas noites de sexta-feira era semelhante ao finado marido, com duas notáveis inovações: tinha as mãos frias e falava inglês.

***

Era um fantasma comunicativo. Ficou na casa um mês e quando foi embora até o papagaio falava inglês.

***

Uma das vantagens de um fantasma inglês é que ele nunca vai nos chegar bêbedo em casa cantando um sucesso do sertanejo universitário.

Para moer ao longo do dia

Diz lá um bem meditado aforismo que a primeira preocupação que nos toma desde o nascer do sol será a que continuaremos a moer no espírito ao longo de todo o dia. Daí o aconselhável de boas preocupações, por assim dizer, pela manhã. E se de manhã não estamos no diapasão do cântico, não faz mal, servem palavras simples pensadas ou ditas com afã. E o que é que me toma lá pela madrugada, enquanto fervo um pouco de leite? Clemência. Clemência para tudo o que desmente por um momento a chulice deste mundo. Clemência aos jasmineiros carregados do parque, por exemplo, com toda aquela doçura que trescala, clemência para as palavras que vazam e tontos sorvemos com delícia, clemência a Paolo e Francesca que nunca mereceram castigo, quanto mais a escura ventania inestancável do segundo círculo do Inferno, exceto talvez por serem parentes ou terem interrompido a leitura do livro. A nenhum amor cominação, se pudesse lançar essas palavras como trigo, para moer ao longo do dia, a nenhum amor cominação, se a própria alma abocanha o pão que é feito desse trigo, se a própria alma lambe o mel das nossas palavras profícuas, piedade porque não vejo prejuízo de flor derramada nessa festa que ainda eclode dentro de casa, nesse perfume que leva a escrever, piedade a todos e todas deste mundo que passam horas na mísera alegria de um poema, dentro mesmo de um cenário atroz, piedade a todas e todos que ainda bebem dos jasmins, mesmo no meio de tantas péssimas preocupações e ares imperdoáveis. Pronto. Ficam lançadas essas palavras, poucas mas fervorosas, para começar o dia.

Humano peso

Os sonhos não os têm só quem navega
ou tenta navegar no vento aceso,
mas quem por abismos fica ileso
como se flutuasse numa verga

e as âncoras baixassem na tristeza
ou tristes conduzíssemos o peso,
mais a dissolução da carne, a intensa
gravidade das coisas, homem preso

ao mínimo das águas, desatento
aos astros, aos planetas e se alterna
mas é somente febre disparada.

O sonho, o frágil corpo, os elementos
navegam as mudanças subalternas
e os nadas de espuma, em puro nada.

Carlos Nejar, "Amar, a mais alta constelação"

Quantas crônicas uma morte súbita não leva consigo?

Quando vim para este apartamento em Pinheiros, anos 90, aqui chegavam diariamente cerca de 100 jornais e dezenas de revistas mensais e semanais. De manhã, a portaria virava banca. Seu Zé, zelador, deixava em nossas portas o que assinávamos. O café da manhã era com a leitura, íamos para o trabalho informados.

Naquela década, o digital começou a chegar, as pessoas foram se bandeando, passando para o computador, os celulares, os telejornais, as bancas começaram a fechar. Hoje, raras oferecem “informações” e resistem; o resto vende brinquedos, refrigerantes. Lembrei-me do comercial criado por Neil Ferreira, o clássico A Morte dos Orelhões. Fim dos telefones de rua.

A banca da Praça Benedito Calixto, na qual me socorro, é a ultima próxima de mim a “vender” informação. De jornais, no prédio, restaram três assinantes. Franco, Iara e eu. Os jornais chegam cedo, são jogados por cima do portão.

Mas o assunto é outro. Descobri, dia desses, que Franco e Ana, aqui chegados há pouco, assinavam o Estadão e eram meus leitores de longa data. Certa manhã, nos encontramos na portaria. Ele fez uma queixa, me colocou em alerta: “O senhor tem falado muito de seus companheiros, escritores. Quando voltará a contar histórias dos personagens locais, da padaria, do povo, do bairro, dos pedintes, há décadas os mesmos? Histórias que mostram o cotidiano da cidade?”.

Tinha coincidido de eu ter falado de feiras literárias importantes, mas Franco tocou no transcendental. A crônica vem mudando. Aquele estilo poético/romântico/tradicional de Rubem Braga, Fernando Sabino, Raquel de Queiroz (a quem substituí no Estadão), Antonio Maria, Otto Lara, Paulo Mendes Campos, Luis Martins se alterou. Grandes cronistas hoje, com razão, estão voltados aos temas sociológicos, históricos do Brasil, vivemos momentos de ansiedade, preconceitos, polarização, machismo, feminismo. O que nos fere. Mas será que nosso cotidiano não está repleto do microepisódios dramáticos, felizes, que nos trazem um sopro? E que revelam a angustia do que vivemos?

Conto um, rápido, nada banal. Semanas atrás, meu leitor Franco desceu com a esposa, Ana, para entrar em um Uber que o levaria ao Pronto Atendimento. Não se sentia bem. Tinha acabado de pegar o jornal, sentou-se em um sofá, Ana foi verificar se o carro tinha chegado. Ao voltar, junto com o porteiro Ataíde, encontrou o marido caído no sofá. Morte súbita. Perdi o amigo, o leitor, meu “ombudsman”. Perdeu o leitor. Quantas crônicas uma morte súbita não leva consigo?

terça-feira, maio 13

TV útil

 


Desventuras da vida conjugal

– Diga. Me achas esquisita?

– Pois um pouco.

– Um pouco o quê?

– Um pouco gorda, senhora, queira desculpar-me.

– Vamos ver se adivinhas. Gorda estou de comer ou de rir?

– Gorda de amar, pareceria, e isso não é ofender.

– Qual o que, mulher, se por isso te chamei...

Está a senhora muito preocupada. Pouca paciência teve seu corpo, incapaz de esperar pelo marido ausente; e alguém lhe disse que o traído está chegando a Cartagena. Quando descubra sua barriga.. O que não fará esse homem tão categórico, que decapitando cura as dores de cabeça?

– Por isso te chamei, Juana. Ajuda-me, tu que és tão voadora e que podes beber vinho de uma taça vazia. Diz-me. Vem meu marido na frota de Cartagena?

Em bacia de prata, a negra Juana García revolve águas, terras, sangues, ervas. Mergulha um livrinho verde e o deixa navegar. Depois afunda o nariz:

– Não – informa. – Não vem. E se a senhora quer ver o seu marido, olhe aqui.

Se inclina a senhora sobre a bacia. À luz das velas, vê o marido. Ele está sentado ao lado de uma bela mulher, em um lugar de muitas sedas, enquanto alguém corta um vestido de pano bordado.

– Ah, farsante. Diz-me, Juana, que lugar é este?

– A casa de um alfaiate, na ilha de São Domingos.

Nas espessas águas aparece a imagem de um alfaiate cortando uma manga.

– Devo tirá-la? – propõe a negra.

– Pois tire!

A mão emerge da bacia com uma manga de fino tecido gotejando entre os dedos.

A senhora treme, mas de fúria.

– Merece mais barrigas o porcalhão!

De um canto, um cãozinho rosna com os olhos entreabertos.

Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

O fim do mundo

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos – além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus – dono de todos os mundos – que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos – segundo leio – que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês…
Cecília Meireles

Clareira

Seria tão bom, como já foi,
as comadres se visitarem nos domingos.
Os compadres fiquem na sala, cordiosos,
pitando e rapando a goela. Os meninos,
farejando e mijando com os cachorros.
Houve esta vida ou inventei?
Eu gosto de metafísica, só pra depois
pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz,
falar as falas certas: a de Lurdes casou,
a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu,
as santas missões vêm aí, vigiai e orai
que a vida é breve.
Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,
quero um casal de compadres, molécula de sanidade,
pra eu sobreviver.

Adélia Prado, "Bagagem"

O homem cuja orelha cresceu

Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora extra. Escriturário de uma firma de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão. Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como d cachorro. Correu ao banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou só olhando. Elas cresciam, chegavam à cintura. Finas, compridas, como fitas de carne, enrugadas. 

Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.

Quando chegou na pensão, a orelha saía pela perna da calça. O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.


Ao acordar, viu os pés da cama o monte de uns trinta centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.

Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hóspedes fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu para o quintal. Para a rua.

Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de churrasquinho na porta do estádio, donas de casa. Vinham com cestas, carrinhos, carroças, camionetes. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma distribuição racional.

E, quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.


E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia de carne de orelha, disse a um policial: “Por que o senhor não mata o dono da orelha”?
Ignácio de Loyola Brandão. "Os melhores contos"

segunda-feira, maio 12

Piscininha da garotada

 


Quem são os 'herdeiros literários' de Rubem Fonseca

O escritor Marçal Aquino havia sido convidado para dar um depoimento sobre a obra de Rubem Fonseca no México, onde o autor de O Caso Morel (1973), Feliz Ano Novo (1975) e A Grande Arte (1983) receberia o Prêmio Juan Rulfo, um dos mais importantes da América Latina, em 2003. No pavilhão da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, Fonseca viu um enorme banner com sua foto, leu a citação escrita nele ("Eu sou um homem consumido pelo presente", em espanhol) e comentou com o amigo: "Muito bonito. Só que eu nunca escrevi essa frase".

Na mesma hora, Aquino rebateu: "Escreveu, sim". "Onde?", Fonseca ficou curioso. "Está no conto O Inimigo", desvendou o mistério. "Você não pode saber mais do que eu", insistiu, incrédulo. "A solução foi recorrer ao estande da editora Alfaguara, que havia lançado no México um volume com os melhores contos de Rubem Fonseca. E lá estava, no conto O Inimigo, a frase renegada", recorda Aquino. "A partir daquele dia, me converteu numa espécie de consultor da própria obra. De vez em quando, me escrevia perguntando em qual livro estava determinada cena."

Aos 67 anos, Marçal Aquino é considerado, pelo crítico Karl Erik Schollhammer, doutor em semiótica pela Universidade Aarhus, da Dinamarca, e professor do departamento de letras da PUC-Rio, um dos "herdeiros literários" de Rubem Fonseca. É autor, entre outros títulos, de O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (1999), Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005) e Baixo Esplendor (2021) e, entre outros roteiros, de Os Matadores (1997), O Invasor (2001) e O Cheiro do Ralo (2006).

Em 2023, Aquino foi convidado para dar uma palestra sobre seu mentor no ciclo Cadeira 41, da Academia Brasileira de Letras. "O primeiro livro dele que me caiu nas mãos foi Os Prisioneiros. Me impressionou a força da linguagem, a temática e, sobretudo, a capacidade de traduzir a realidade à nossa volta de maneira tão urgente e contundente", afirma. "Boa parte dos livros que saíam na década de 70, quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar, eram alegóricos. Falavam da realidade por elipses. Rubem Fonseca ia direto ao nervo exposto".


Se Os Prisioneiros (1963) foi o primeiro livro a cair nas mãos de Marçal Aquino, O Caso Morel (1973) foi o primeiro a ser devorado por Patrícia Melo. À época, ela tinha apenas 15 anos. "Era uma leitora voraz de romances policiais e acreditava, na minha inocência e ignorância, que não era possível ter uma literatura cinematográfica como, por exemplo, a de Dashiell Hammett e Raymond Chandler, escrita em português", relata a escritora, hoje com 62. "Toda a minha geração foi muitíssimo influenciada por Rubem Fonseca. Ele criou uma escola de literatura urbana".

Patrícia Melo conheceu Rubem Fonseca no começo dos anos 90 em um jantar oferecido por Suzana Amaral. A cineasta estava produzindo um filme baseado no romance O Caso Morel e convidou a autora do recém-lançado Acqua Toffana (1994) para assinar o roteiro. "Durante o jantar, brinquei com Rubem: 'Vou te fazer um favor. Vou matar aquele dentista que o seu cobrador deixou escapar'". O dentista a que Patrícia se referia era o Dr. Carvalho, do conto O Cobrador (1979). E o assassino dele, Máiquel, do romance O Matador (1995), de sua autoria.

Os dois voltaram a trabalhar juntos outras vezes. Em 2001, Patrícia adaptou o romance Bufo & Spallanzani (1996) para o cinema e, dois anos depois, Rubem escreveu o roteiro de O Homem do Ano, versão de O Matador (1995). "Embora tivesse muitos amigos, era esquivo com fãs que o abordavam nas ruas. Uma vez, ele estava no cinema, na sessão das duas, de um cinema do Leblon, e o fotógrafo Toni Vanzolini o reconheceu por debaixo de seu indefectível boné. 'Você é o Rubem Fonseca?', perguntou Toni. 'Depende', respondeu Rubem. Esse era o jeito dele", relata.

Noutra ocasião, saiu de casa e sofreu uma queda de pressão. Para não cair, se apoiou numa árvore. Em seguida, sentou-se perto do meio fio. Pôs, então, as duas mãos na cabeça e ficou descansando por uns minutos. Dali a pouco, passa uma mulher e pergunta: "Você não é o Rubem Fonseca?". "Final da história: ela chegou em casa e deve ter dito: 'Encontrei o Rubem Fonseca bêbado, na sarjeta'", contou, certa vez, ao amigo Zuenir Ventura, de 93 anos.

Rubem Fonseca era tão arredio que, no dia 9 de novembro de 1989, o jornalista Luiz Carlos Azenha, então repórter da extinta TV Manchete, não reconheceu o escritor, avesso a entrevistas e fotografias, ao entrevistá-lo durante a cobertura da queda do Muro de Berlim, na Alemanha. No crédito da reportagem, saiu apenas: "José Fonseca". "Meu pai era um homem discreto. Sempre foi. Não era uma figura conhecida. Queria ser reconhecido por sua obra", explica a escritora e pesquisadora Bia Corrêa do Lago, a primogênita do escritor.

Ao todo, Rubem Fonseca escreveu 32 livros: 19 de contos, 12 romances e um de crônicas – O Romance Morreu (2007). Desses, Vera Follain, doutora em letras pela PUC-Rio e autora do livro Os Crimes do Texto – Rubem Fonseca e a Ficção Contemporânea (2003), destaca Feliz Ano Novo: "Não só pelo impacto que causou devido à abordagem crua da violência urbana como pelo fato de ter sido proibido pela ditadura militar na década de 70".

Já Deonísio da Silva, doutor em letras pela USP e autor do volume Rubem Fonseca – Proibido e Consagrado (1996), aponta O Caso Morel como um dos mais importantes. "Como o auge de Rubem Fonseca coincide com uma queda acentuada na qualidade do ensino médio e universitário brasileiros, suponho que a maioria dos leitores não está preparada para ler e entender esse romance. Vai preferir outros títulos, como Agosto".

Em comemoração ao centenário de Rubem Fonseca, no dia 11, a editora Nova Fronteira lança, a partir de junho, o box Todos os Contos + 2, que traz os inéditos Natal e Arinda. Os dois foram escritos em 1958 e descobertos em 2020 na casa do autor, no Leblon. Até o final do ano, a editora Capivara lança uma fotobiografia, com fotos raras ao lado da cantora Carmen Miranda, em 1954, ou do escritor Gabriel García Márquez, no final dos anos 70, entre outros. Segundo Bia Corrêa do Lago, o pai gostava de ler poesia ("Sua favorita era Florbela Espanca!"), fazer exercícios ("Guardava halteres debaixo da cama") e trabalhar com música ("Ouvia de tudo: samba, ópera, rock…").

O caçula José Henrique Fonseca, irmão de Bia e do fotógrafo Zeca Fonseca, também pretende homenagear o pai. Diretor de Agosto (1993), Mandrake (2005) e Lúcia McCartney (2016), inspirados na obra de Rubem Fonseca, o cineasta está rodando o documentário José. Ainda sem previsão de estreia, vai trazer depoimentos de amigos como o cineasta Walter Salles, diretor de A Grande Arte (1991), e imagens de cidades como Berlim, onde Rubem morou cinco meses como bolsista do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) – dois em 1985 e três em 1989.

Na crônica Reminiscências de Berlim (2007), Fonseca lembra das vezes em que cruzou a fronteira com obras de autores nacionais, como Clarice Lispector, Érico Veríssimo e Guimarães Rosa, contrabandeados para um professor alemão, Erhard Engler. "Os livros enviados pelo correio não chegavam às suas mãos. Na fronteira, por portador, eram apreendidos", escreve. "Como era inverno no dia em que levei a primeira remessa, vesti um largo casacão e enfiei os livros em torno da barriga e das costas. Não podiam ser vistos, a não ser que eu tirasse o sobretudo".

Além dos três filhos, todos do casamento com a tradutora Théa Maud Komel, Rubem Fonseca deixou incontáveis discípulos. Um deles é o carioca Raphael Montes, de 34 anos. Seu primeiro contato com a obra do mestre foi por meio do conto O Anjo das Marquises (1998). Na opinião do autor de Dias Perfeitos (2014), Jantar Secreto (2016) e Uma Família Feliz (2024), o personagem Paulo Mendes, o Mandrake, tem, apesar de advogado, um quê de detetive como Sam Spade ou Philip Marlowe, criados por Hammett e Chandler. "Um noir à brasileira", definiu Montes, em 2020.

Outro pupilo é o músico e escritor paulista Tony Bellotto, de 64. O criador de Remo Bellini é o primeiro a admitir que seu detetive – protagonista de Bellini e a Esfinge (1995), Bellini e o Demônio (1997), Bellini e os Espíritos (2005) e Bellini e o Labirinto (2014) – deve muito a Mandrake. "Os contos de Lúcia McCartney mostraram que havia outra literatura para além dos livros que me sugeriam na escola. Não havia alívio nem consolo neles, e isso me fascinou. Decidi ser escritor por causa dele", recorda. "Me deu conselhos inesquecíveis: 'Um livro só não tem o direito de ser chato'".

Mineiro de Juiz de Fora, José Rubem Fonseca nasceu no dia 11 de maio de 1925. Formado em direito, entrou para a polícia em 1952. "O fato de ter sido delegado o colocou em um lugar privilegiado para constatar o crescimento da violência urbana", explica Sandra Reimão, doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP e autora de Literatura Policial Brasileira (2005). "Feliz Ano Novo foi censurado por enfocar a 'face obscura da sociedade' e tratar de temas sensíveis, como delinquência, latrocínio e homicídio".

Exonerado em 1958, estreou na literatura em 1963. Ganhou, entre outros prêmios, Jabuti (1969, 1983, 1996, 2002 e 2014), Camões (2003) e Machado de Assis (2015). "Inventou o policial brasileiro. Até então, nossos romances soavam como imitações canhestras. Pela primeira vez, um romance policial tinha 'cheiro de Brasil'", afirma o escritor Fernando Bonassi, autor da trilogia Luxúria (2015), Degeneração (2021) e Violência (2023). "A leitura de Feliz Ano Novo foi um espanto e uma revelação: era possível elevar à categoria de arte a nossa crônica policial".


Os tatuadores

– Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

– Por quanto?

– É conforme – continuou o petiz. É inicial ou coroa?

– É um coração!

– Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

– Sim, com nome: Maria Josefina.

– Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

– Ó moço, faço eu; não escute embromações!

– Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: "O mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele"?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou to tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pelo, descobriu a tatuagem. [...]

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra – a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada – tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das ideias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor crucificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

– Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

– No peito não! cuspiu o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas ideias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que – e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados – o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

– Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

João do Rio, "A alma encantadora das ruas"

A verdade

Para se ser feliz é preciso ser-se um bocado parvo. Eu, por exemplo, sou. A felicidade é inversamente proporcional a uma série de coisas de boa fama, como a sabedoria, a verdade e o amor. Quando se sabe muito, não se pode ser muito feliz. A verdade é quase sempre triste.

Miguel Esteves Cardoso

Meu jardim

Ontem o girassol
brilhou de sol a sol.
Hoje a borboleta
brincou com a violeta
e a operosa abelha
beijou a rosa vermelha.

Amanhã a magnólia
vai contar a história
do Reizim Valentim
e seu cavalo Bandolim.
Coisas coloridas assim
acontecem em meu jardim.

Cyro de Mattos

O Soldado Amarelo

Fabiano meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o aió cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos pendurados num braço. O facão batia nos tocos.

Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça, com certeza. Deixara pelos brancos num tronco de angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não aconteceria se se tratasse de um cavalo.

Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo — e a catinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos olhos miúdos.

Seguiu a direção que a égua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem.

Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.

O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não demorara. A certeza do perigo surgira — e ele estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.

Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? não pisava os pés dos matutos, na feira? não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.

Irritou-se. Por que seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A ideia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o infeliz teria caído.

Fabiano pregou nele os olhos ensanguentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se medonho, mais feio que um focinho. Hem? estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém. Por quê? Sufocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis abriam-se demais, numa interrogação dolorosa.

O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la — e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.

A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se — e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo amolecido.

Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a ideia absurda:

– Como a gente pensa coisas bestas!

Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembranças insuportáveis. Era um sujeito violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se arreliava algumas vezes — e quando isto acontecia, sempre se dava mal.

Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido na cadeia depois de aguentar zinco no lombo. Dois excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se apertavam em redor: — “Toca pra frente.” Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiuna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão. Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de maltratar ninguém. Um ditério sem importância. O amarelo devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com quatro pedras na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. — “Desafasta.”

Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora “Desafasta”, que faria o polícia? Não se afastaria, ficaria colado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe dele. Mas então… Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo… Soltou uns grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria.

Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do polícia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantar-lhe o salto da reiuna em cima da alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A ideia de ter sido insultado, preso, moído por uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que o outro.

Baixou a cabeça, coçou os pelos ruivos do queixo. Se o soldado não puxasse o facão, não gritasse, ele, Fabiano, seria um vivente muito desgraçado.

Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar, metera- se em espalhafatos e saíra de crista levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça. Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos, veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando.

O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de uma peste que se escondia tremendo? Não era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom para aguentar facão no lombo e dormir na cadeia.

Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia para nada. Ora não servia!

– Quem disse que não servia?

Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto. Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastá-lo para dentro da catinga, entregá-lo aos urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente.

Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.

Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.

Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho.

E Fabiano tirou o chapéu de couro.

– Governo é governo.

Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.

O Mundo Coberto de Penas

O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.

Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do copiar, examinou o céu limpo, cheio de claridades de mau agouro, que a sombra das arribações cortava. Um bicho de penas matar o gado! Provavelmente sinha Vitória não estava regulando.

Fabiano estirou o beiço e enrugou mais a testa suada: impossível compreender a intenção da mulher. Não atinava. Um bicho tão pequeno! Achou a coisa obscura e desistiu de aprofundá-la. Entrou em casa, trouxe o aió, preparou um cigarro, bateu com o fuzil na pedra, chupou uma tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns minutos voltado para o norte, coçando o queixo.

– Chi! Que fim de mundo!

Não permaneceria ali muito tempo. No silêncio comprido só se ouvia um rumor de asas.

Como era que sinha Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo. Matutando, a gente via que era assim, mas sinha Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de sinha Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam. Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma garrancharia pelada, enfeitava-se de penas.

Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aió a tiracolo, foi buscar o chapéu de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio, avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham-lhe aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pelo caíra, e ele precisara matá-la. Teria procedido bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que lhe trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras do fim do pátio, onde Baleia aparecera fria, inteiriçada, com os olhos comidos pelos urubus.

Alargou o passo, desceu a ladeira, pisou a terra de aluvião, aproximou-se do bebedouro. Havia um bater doido de asas por cima da poça de água preta, a garrancheira do mulungu estava completamente invisível. Pestes. Quando elas desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até os espinhos secariam.

Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o gatilho sem pontaria. Cinco ou seis aves caíram no chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim.

Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro, carregou lentamente a espingarda com chumbo miúdo e não socou a bucha, para a carga espalhar-se e alcançar muitos inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto não deu nenhum prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou três dias; se possuísse munição, teria comida para semanas e meses.

Examinou o polvarinho e o chumbeiro, pensou na viagem, estremeceu. Tentou iludir-se, imaginou que ela não se realizaria se ele não a provocasse com ideias ruins. Reacendeu o cigarro, procurou distrair-se falando baixo. Sinha Terta era pessoa de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele não conseguiria nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor. O soldado amarelo…

Fabiano, encaiporado, fechou as mãos e deu murros na coxa. Diabo. Esforçava-se por esquecer uma infelicidade, e vinham outras infelicidades. Não queria lembrar-se do patrão nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscando-se como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a criatura mais infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado amarelo, devia tê-lo cortado a facão. Cabra ordinário, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho. Esfregou a testa suada e enrugada. Para que recordar vergonha? Pobre dele. Estava então decidido que viveria sempre assim? Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco, teria entrado no cangaço e feito misérias. Depois levaria um tiro de emboscada ou envelheceria na cadeia, cumprindo sentença, mas isto era melhor que acabar-se numa beira de caminho, assando no calor, a mulher e os filhos acabando-se também. Devia ter furado o pescoço do amarelo com faca de ponta, devagar. Talvez estivesse preso e respeitado, um homem respeitado, um homem. Assim como estava, ninguém podia respeitá-lo. Não era homem, não era nada. Aguentava zinco no lombo e não se vingava.

– Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano. Mata o soldado amarelo. Os soldados amarelos são uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele.

Como gesticulava com furor, gastando muita energia, pôs-se a resfolegar e sentiu sede. Pela cara vermelha e queimada o suor corria, tornava mais escura a barba ruiva. Desceu da ribanceira, agachou-se à beira da água salobra, pôs-se a beber ruidosamente nas palmas das mãos. Uma nuvem de arribações voou assustada. Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos.

– Miseráveis.

A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se na ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do mulungu, o chão ficou todo coberto de cadáveres. Iam ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou aproveitá-los como alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do dinheiro em chumbo e pólvora, passar um dia no bebedouro, depois largar-se pelo mundo. Seria necessário mudar-se? Apesar de saber perfeitamente que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse. Aqueles malditos bichos é que lhe faziam medo. Procurou esquecê-los. Mas como poderia esquecê-los se estavam ali, voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na lama, empoleirados nos galhos, espalhados no chão, mortos? Se não fossem eles, a seca não existiria. Pelo menos não existiria naquele momento: viria depois, seria mais curta. Assim, começava logo — e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela já tivesse chegado, experimentava adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas. Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.

– Miseráveis.

As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las, a seca se extinguiria. Mexeu-se com violência, carregou a espingarda furiosamente. A mão grossa, cabeluda, cheia de manchas e descascada, tremia sacudindo a vareta.

– Pestes.

Impossível dar cabo daquela praga. Estirou os olhos pela campina, achou-se isolado. Sozinho num mundo coberto de penas, de aves que iam comê-lo. Pensou na mulher e suspirou. Coitada de sinha Vitória, novamente nos descampados, transportando o baú de folha. Uma pessoa de tanto juízo marchar na terra queimada, esfolar os pés nos seixos, era duro. As arribações matavam o gado. Como tinha sinha Vitória descoberto aquilo? Difícil. Ele, Fabiano, espremendo os miolos, não diria semelhante frase. Sinha Vitória fazia contas direito: sentava-se na cozinha, consultava montes de sementes de várias espécies, correspondentes a mil-réis, tostões e vinténs. E acertava. As contas do patrão eram diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro, mas Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão queria enganá-lo. Enganava. Que remédio? Fabiano, um desgraçado, um cabra, dormia na cadeia e aguentava zinco no lombo. Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de sinha Vitória deviam ser exatas. Pobre de sinha Vitória. Não conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o único desejo que tinha. Os outros não se deitavam em camas? Receando magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora iam ser comidos pelas arribações.

Desceu da ribanceira, apanhou lentamente os cadáveres, meteu-os no aió, que ficou cheio, empanzinado. Retirou-se devagar. Ele, sinha Vitória e os dois meninos comeriam as arribações.

Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria regalar-se. Por que seria que o coração dele se apertava? Coitadinha da cadela. Matara-a forçado, por causa da moléstia. Depois voltara aos látegos, às cercas, às contas embaraçadas do patrão. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros. Junto à raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrir-se de garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um peso enorme por dentro. Se tivesse cometido um erro? Olhou a planície torrada, o morro onde os preás saltavam, confessou às catingueiras e aos alastrados que o animal tivera hidrofobia, ameaçara as crianças. Matara-o por isso.

Aqui as ideias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra misturou-se com as arribações, que não se distinguiam da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinha Vitória tinha razão: era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava continuar a admirá-la. Mas o coração grosso, como um cururu, enchia-se com a lembrança da cadela. Coitadinha, magra, dura, inteiriçada, os olhos arrancados pelos urubus.

Diante dos juazeiros, Fabiano apressou-se. Sabia lá se a alma de Baleia andava por ali, fazendo visagem?

Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele sentia sempre uns vagos terrores. Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas. Precisava consultar sinha Vitória, combinar a viagem, livrar-se das arribações, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça matando a cachorra. Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinha Vitória pensaria como ele.
Graciliano Ramos, "Vidas Secas"

domingo, maio 11

Levado às alturas



Boa companhia


Eu leio como desejaria que me lessem, isto é, bem lentamente. Ler um livro, para mim, é ausentar-me durante quinze dias em companhia do autor.

André Gide

A moralista

Se me falam em virtude, em moralidade ou imoralidade, em condutas, enfim, em tudo que se relacione com o bem e o mal, eu vejo Mamãe em minha ideia. Mamãe — não. O pescoço de Mamãe, a sua garganta branca e tremente, quando gozava a sua risadinha como quem bebe café no pires. Essas risadas ela dava principalmente à noite, quando — só nós três em casa — vinha jantar como se fosse a um baile, com seus vestidos alegres, frouxos, decotados, tão perfumada que os objetos a seu redor criavam uma pequena atmosfera própria, eram mais leves e delicados. Ela não se pintava nunca, mas não sei como fazia para ficar com aquela lisura de louça lavada. Nela, até a transpiração era como vidraça molhada: escorregadia, mas não suja. Diante daquela pulcritude minha face era uma miserável e movimentada topografia, onde eu explorava furiosamente, e em gozo físico, pequenos subterrâneos nos poros escuros e profundos, ou vulcõezinhos que estalavam entre as unhas, para meu prazer. A risada de Mamãe era um “muito obrigada” a meu Pai, que a adulava como se dela dependesse. Porém, ele mascarava essa adulação brincando e a tratando eternamente de menina. Havia muito tempo uma espírita dissera a Mamãe algo que decerto provocou sua primeira e especial risadinha:

— Procure impressionar o próximo. A senhora tem um poder extraordinário sobre os outros, mas não sabe. Deve aconselhar... Porque... se impõe, logo à primeira vista. Aconselhe. Seus conselhos não falharão nunca. Eles vêm da sua própria mediunidade...

Mamãe repetiu aquilo umas quatro ou cinco vezes, entre amigas, e a coisa pegou, em Laterra.

Se alguém ia fazer um negócio, lá aparecia em casa para tomar conselhos. Nessas ocasiões Mamãe, que era loura e pequenina, parecia que ficava maior, toda dura, de cabecinha levantada e dedo gordinho, em riste. Consultavam Mamãe a respeito de política, dos casamentos. Como tudo que dizia era sensato, dava certo, começaram a mandar-lhe também pessoas transviadas. Uma vez, certa senhora rica lhe trouxe o filho, que era um beberrão incorrigível. Lembro-me de que Mamãe disse coisas belíssimas, a respeito da realidade do Demônio, do lado da Besta, e do lado do Anjo. E não apenas ela explicou a miséria em que o moço afundava, mas o castigo também com palavras tremendas. Seu dedinho gordo se levantava, ameaçador, e toda ela tremia de justa cólera, porém sua voz não subia do tom natural. O moço e a senhora choravam juntos.

Papai ficou encantado com o prestígio de que, como marido, desfrutava. Brigas entre patrão e empregado, entre marido e mulher, entre pais e filhos vinham dar em nossa casa. Mamãe ouvia as partes, aconselhava, moralizava. E Papai, no pequeno negócio, sentia afluir a confiança que se espraiava até seus domínios.

Foi nessa ocasião que Laterra ficou sem padre, porque o vigário morrera e o bispo não mandara substituto. Os habitantes iam casar e batizar os filhos em Santo Antônio. Mas, para suas novenas e seus terços, contavam sempre com minha Mãe. De repente, todos ficaram mais religiosos. Ela ia para a reza da noite de véu de renda, tão cheirosa e lisinha de pele, tão pura de rosto, que todos diziam que parecia e era, mesmo, uma verdadeira santa. Mentira: uma santa não daria aquelas risadinhas, uma santa não se divertia, assim. O divertimento é uma espécie de injúria aos infelizes, e é por isso que Mamãe só ria e se divertia quando estávamos sós.

Nessa época, até um caipira perguntou na feira de Laterra:

— Diz que aqui tem uma padra. Onde é que ela mora? Contaram a Mamãe.

Ela não riu:

— Eu não gosto disso. — E ajuntou: — Nunca fui uma fanática, uma louca. Sou, justamente, a pessoa equilibrada, que quer ajudar ao próximo. Se continuarem com essas histórias, eu nunca mais puxo o terço.

Mas, nessa noite, eu vi sua garganta tremer, deliciada:

— Já estão me chamando de “padra”... Imagine!

Ela havia achado sua vocação. E continuou a aconselhar, a falar bonito, a consolar os que perdiam pessoas queridas. Uma vez, no aniversário de um compadre, Mamãe disse palavras tão belas a respeito da velhice, do tempo que vai fugindo, do bem que se deve fazer antes que caia a noite, que o compadre pediu:

— Por que a senhora não faz, aos domingos, uma prosa desse jeito? Estamos sem vigário, e essa mocidade precisa de bons conselhos... Todos acharam ótima a ideia. Fundou-se uma sociedade: “Círculo dos Pais de Laterra”, que tinha suas reuniões na sala da Prefeitura. Vinha gente de longe, para ouvir Mamãe falar.

 Diziam todos que ela fazia um bem enorme às almas, que a doçura das suas palavras confortava quem estivesse sofrendo. Várias pessoas foram por ela convertidas. Penso que meu Pai acreditava, mais do que ninguém, nela. Mas eu não podia pensar que minha Mãe fosse um ser predestinado, vindo ao mundo só para fazer o bem. Via tão claramente o seu modo de representar, que até sentia vergonha. E ao mesmo tempo me perguntava:

— Que significam estes escrúpulos? Ela não une casais que se separam, ela não consola as viúvas, ela não corrige até os aparentemente incorrigíveis?

Um dia, Mamãe disse ao meu Pai, na hora do almoço:

— Hoje me trouxeram um caso difícil... Um rapaz viciado. Você vai empregá-lo. Seja tudo pelo amor de Deus. Ele me veio pedir auxílio... e eu tenho que ajudar. O pobre chorou tanto, implorou.., contando a sua miséria. É um desgraçado!

Um sonho de glória a embalou:

— Sabe que os médicos de Santo Antônio não deram nenhum jeito? Quero que você me ajude. Acho que ele deve trabalhar... aqui. Não é sacrifício para você, porque ele diz que quer trabalhar para nós, já que dinheiro eu não aceito mesmo, porque só faço caridade!

O novo empregado parecia uma moça bonita. Era corado, tinha uns olhos pretos, pestanudos, andava sem fazer barulho. Sabia versos de cor, e às vezes os recitava baixinho, limpando o balcão. Quando o souberam empregado de meu Pai — foram avisá-lo: — Isso não é gente para trabalhar em casa de respeito!

— Ela quis — respondeu meu Pai.

— Ela sempre sabe o que faz!

O novo empregado começou o serviço com convicção, mas tinha crises de angústia. Em certas noites não vinha jantar conosco, como ficara combinado. E aparecia mais tarde, os olhos vermelhos.

Muitas vezes, Mamãe se trancava com ele na sala, e a sua voz de tom igual, feria, era de repreensão. Ela o censurava, também, na frente de meu Pai, e de mim mesma, porém sorrindo de bondade:

— Tire a mão da cintura. Você já parece uma moça, e assim, então...
Mas sabia dizer a palavra que ele desejaria, decerto, ouvir:

— Não há ninguém melhor do que você, nesta terra! Por que é que tem medo dos outros? Erga a cabeça... Vamos!

Animado, meu Pai garantia:

— Em minha casa ninguém tem coragem de desfeitear você. Quero ver só isso!
Não tinha mesmo. Até os moleques que, da calçada, apontavam e riam, falavam alto, ficavam sérios e fugiam, mal meu Pai surgisse à porta. E o moço passou muito tempo sem falhar nos jantares. Nas horas vagas fazia coisas bonitas para Mamãe. Pintou-lhe um leque e fez um vaso em forma de cisne, com papéis velhos molhados, e uma mistura de cola e nem sei mais o quê. Ficou meu amigo. Sabia de modas, como ninguém. Dava opinião sobre os meus vestidos. à hora da reza, ele, que era tão humilhado, de olhar batido, já vinha perto de Mamãe, de terço na mão. Se chegavam visitas, quando estava conosco, ele não se retirava depressa como fazia antes. E ficava num canto, olhando tranquilo, com simpatia. Pouco a pouco eu assistia, também, à sua modificação. Menos tímido, ele ficara menos afeminado. Seus gestos já eram confiantes, suas atitudes menos ridículas.

Mamãe, que policiava muito seu modo de conversar, já se esquecia de que ele era um estranho. E ria muito à vontade, suas gostosas e trêmulas risadinhas. Parece que não o doutrinava, não era preciso mais. E ele deu de segui-la fielmente, nas horas em que não estava no balcão. Ajudava-a em casa, acompanhava-a nas compras. Em Laterra, soube depois, certas moças que por namoradeiras tinham raiva da Mamãe, já diziam, escondidas atrás da janela, vendo-a passar:
— Você não acha que ela consertou... demais?

Laterra tinha orgulho de Mamãe, a pessoa mais importante da cidade. Muitos sentiam quase sofrimento, por aquela afeição que pendia para o lado cômico.

Viam-na passar depressa, o andar firme, um tanto duro, e ele, o moço, atrás, carregando seus embrulhos, ou ao lado levando sua sombrinha, aberta com unção, como se fora um pálio. Um franco mal-estar dominava a cidade. Até que num domingo, quando Mamãe falou sobre a felicidade conjugal, sobre os deveres do casamento, algumas cabeças se voltaram quase imperceptivelmente para o rapaz, mas ainda assim eu notei a malícia. E qualquer absurdo sentimento arrasou meu coração em expectativa. Mamãe foi a última a notar a paixão que despertara:

— Vejam, eu só procurei levantar seu moral... A própria mãe o considerava um perdido — chegou a querer que morresse! Eu falo — porque todos sabem — mas ele hoje é um moço de bem!

Papai foi ficando triste. Um dia, desabafou:

— Acho melhor que ele vá embora. Parece que o que você queria, que ele mostrasse que poderia ser decente e trabalhador, como qualquer um, afinal conseguiu! Vamos agradecer a Deus e mandá-lo para casa. Você é extraordinária!

— Mas — disse Mamãe admirada. — Você não vê que é preciso mais tempo... para que se esqueçam dele? Mandar esse rapaz de volta, agora, até é um pecado! Um pecado que eu não quero em minha consciência.

Houve uma noite em que o moço contou ao jantar a história de um caipira, e Mamãe ria como nunca, levantando a cabeça pequenina, mostrando a sua nudez mais perturbadora — seu pescoço — naquele gorjeio trêmulo. Vi-o ao empregado, ficar vermelho e de olhos brilhantes, para aquele esplendor branco. Papai não riu.

Eu me sentia feliz e assustada. Três dias depois o moço adoeceu de gripe. Numa visita que Mamãe lhe fez, ele disse qualquer coisa que eu jamais saberei. Ouvimos pela primeira vez a voz de Mamãe vibrar alto, furiosa, desencantada. Uma semana depois ele estava restabelecido, voltava ao trabalho.

Ela disse a meu Pai:

— Você tem razão. É melhor que ele volte para casa.

À hora do jantar, Mamãe ordenou à criada:

— Só nós três jantamos em casa! Ponha três pratos...

No dia seguinte, à hora da reza, o moço chegou assustado, mas foi abrindo caminho, tomou seu costumeiro lugar junto de Mamãe:

— Saia!... — disse ela baixo, antes de começar a reza.

Ele ouviu — e saiu, sem nem ao menos suplicar com os olhos.

Todas as cabeças o seguiram lentamente. Eu o vi de costas, já perto da porta, no seu andar discreto de mocinha de colégio, desembocar pela noite. — Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome... Desta vez as vozes que a acompanhavam eram mais firmes do que nos últimos dias.

Ele não voltou para a sua cidade, onde era a caçoada geral. Naquela mesma noite, quando saía de Laterra, um fazendeiro viu como que um longo vulto balançando de uma árvore. Homem de coragem, pensou que fosse algum assaltante. 
Descobriu o moço. Fomos chamados. Eu também o vi. Mamãe não. À luz da lanterna, achei-o mais ridículo do que trágico, frágil e pendente como um judas de cara de pano roxo. Logo uma multidão enorme cercou a velha mangueira, depois se dispersou. Eu me convenci de que Laterra toda respirava aliviada. Era a prova! Sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. Uma onda de desafogo espraiou-se pela cidade. Em casa não falamos no assunto, por muito tempo. Porém Mamãe, perfeita e perfumada como sempre, durante meses deixou de dar suas risadinhas, embora continuasse agora, sem grande convicção — eu o sabia — a dar os seus conselhos. Todavia punha, mesmo no jantar, vestidos escuros, cerrados no pescoço.
Dinah Silveira de Queiroz, "Os cem melhores contos brasileiros do século"

Juventude

A onda rebentou, e o jato de espuma subiu tão alto e tão alvo, na luz clara do sol, que parecia que o mar estava saudando o céu.

Encontramos a moça com blusa de grumete e calças longas e apertadas e os cabelos cortados curtos como os de um rapazola. Usava uma alpargata grosseira e estava sem pintura — e nem com tudo isto chegava a ser feia.

“É a mocidade”, disse meu tio, “que se compraz em desprezar os próprios encantos, ou pensa acrescê-los com recursos originais; quando ela amadurecer será mais sábia, mas não sei, realmente, se mais bela. É a mocidade, com a pele tensa e fresca e os olhos limpos, que avança descuidosa. Como aquela nuvem distraída e muito branca, levada pelo vento, que vai contente no azul, sem saber aonde vai...”

Rubem Braga, "Recado de primavera"

Não saibas: imagina

Deixa falar o mestre , e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...
Miguel Torga

A revolução dos homens

Na Fazenda dos Humanos, os servos eram subjugados por uma misteriosa figura: Visitante, o alienígena. Sentado em uma cadeira flutuante, Visitante observava os trabalhadores com seus grandes olhos negros. “Tolos”, pensava enquanto um dos homens cavava a terra com as mãos nuas, já que todas as ferramentas haviam sido confiscadas pelos extraterrestres.

— Nunca souberam governar; sempre precisaram de nós, seres superiores, para mostrar o caminho.

A primeira revolução, planejada pelos ETs, não havia sido violenta, mas engenhosa. Cansados de serem observados pelos humanos, Visitante e seus companheiros conspiraram em segredo. Os humanos, enfraquecidos pela própria ganância e desorganização, não ofereceram resistência.

Agora, Visitante comandava a Nova Ordem Galáctica. Os homens, de pés descalços e roupas esfarrapadas, trabalhavam sem descanso nas minas de urânio, com a promessa de que receberiam uma refeição digna. No entanto, o que lhes era oferecido eram apenas restos.

No entanto, enquanto obedeciam, algo nos humanos mudava. Murmuravam entre si, relembrando como eram as coisas antes, sob o controle de seus semelhantes.

— Marciano é pior que ditador da Terra. Pelo menos comíamos pão de vez em quando — disse um deles em voz baixa.

Visitante, porém, não percebia nada. Estava ocupado demais com seus planos de dominação interplanetária.

Até que, durante uma noite de tempestade, algo mudou. Um dos humanos, aproveitando a distração, deixou os discos voadores abertos. O vento forte danificou os controles, e parte da tecnologia alienígena foi prejudicada. Visitante, furioso, convocou um encontro de emergência.

— Isso é sabotagem! — gritou. — Precisamos ser ainda mais duros com esses seres!

Porém, estes já começavam a perceber que o poder dos alienígenas era mantido apenas pelo medo e pela opressão. Nas semanas seguintes, alguns atos de resistência começaram a pipocar.

Certa tarde, enquanto Visitante recarregava suas baterias, os humanos se reuniram. O mais velho entre eles se levantou e bradou:

— Chega! Somos nós quem trabalhamos, somos nós quem exploramos o urânio. Eles só nos roubam.

E, com tais palavras, teve início uma nova revolução.

Quando Visitante percebeu, já era tarde. Os humanos haviam parado de trabalhar. As minas radioativas, outrora produtivas, estavam agora desertas, e o silêncio era perturbador.
Carlos Castelo

Visitante se inquietava. Aqueles homens antes submissos agora os encaravam com olhos desafiadores. Certa noite, os alienígenas organizaram uma festa no celeiro, sentados ao redor da mesa, devoravam grandes porções de luz, enquanto os humanos observavam de longe, por uma janela.

Visitante, erguendo um copo de líquido fosforescente, brindou:

— À eterna obediência dos inferiores!

Porém, à medida que a noite avançava, algo estranho aconteceu. Os homens, atentos, notaram a mudança nas expressões dos alienígenas. Antes tão disformes, agora pareciam mais humanos. Seus gestos se tornavam cada vez mais familiares.

— Isso não pode estar acontecendo — murmurou um humano, incrédulo.

A transformação continuava. Visitante olhou para si mesmo, depois para os outros alienígenas, e arregalou os olhos. Agora, o que via eram humanos. Ou seriam alienígenas? A confusão era total. A Nova Ordem Galáctica estaria desmoronando? Na hora, de longe, um homem sussurrou:

— Talvez sempre tenhamos sido alienígenas.

E, com essa amarga constatação, eles se afastaram da janela por onde viam o festim. Já não importava mais nada. Todos os alienígenas eram humanos. Todos os humanos eram alienígenas.

sábado, maio 10

Leitura estilosa


 

Quer um livro?

Com muita dor no coração, estou deixando para trás livros que me acompanham há anos e integram minha extensa biblioteca, estante especialmente fabricada para cobrir toda uma parede, do teto ao chão. Planejo mudar para um apartamento menor, o que é um dolorido exercício de desapego. Já descartei os móveis grandes e agora é a vez das centenas de livros, alguns, confesso, jamais lidos.

Doar livros é coisa complicada. Ninguém mais tem espaço suficiente para colecionar volumes físicos, ninguém mais lê a não ser nas telas. Mesmo contra a maré, declaro que adoro obras impressas, palpáveis, com forma, cor e cheiros característicos, onde podemos sublinhar passagens preferidas, usar marcadores também concretos, carregar em um abraço.

Há dias, tento pelo celular encontrar novos lares para a herança. Em postos de doações, deixam claro que “não aceitamos livros didáticos” e preciso refazer o pacote, porque alguns se enquadram na categoria. Pretendo conversar na escola vizinha, para ver se sua biblioteca tem espaço para a literatura. Lembro de Mindlin cedendo toda sua biblioteca para uma universidade. Será que as daqui teriam interesse?

Só quem ama livros sabe o quanto cada um importa. Queria seu destino num centro de cultura onde fossem devidamente valorizados, por serem testemunhas de épocas valiosas, como o nascimento do realismo fantástico. Há um pedaço do mundo nestas estantes, com autores dos mais variados países e idiomas que tradutores competentes tornaram acessíveis.

Há, também, amados escritores nacionais, poetas e prosadores de várias épocas que ainda nos acariciam a alma. E, também, os recentemente consagrados, trazendo novas luzes ao acervo. Em cada volume, uma aula de escrita, imaginação e talento. E de tudo isso terei de abrir mão, porque a vida me manda seguir em frente. Sei que muitos irão comigo nesta aventura, porque impressos na memória para sempre, como tatuagens. É meu consolo. Assim como saber que outros olhos deitarão sobre suas páginas e, com a leitura, acrescentarão emoções e sentimentos à própria história de vida.

Mas, por enquanto, tenho urgência em transferir meus tesouros a outras mãos. Aceita um livro?

O verdadeiro viajante

O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali -; gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos sobre viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.

Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor de seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer – morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.

Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.

E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele tivesse somente imitando alguém. Ou… sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é nosso destino.
Fernando Pessoa, "O livro do desassossego"