sábado, maio 24

Um violão de diamante

A cidade mais próxima fica a trinta quilômetros da colônia penal. Vários bosques de pinheiros separam a colônia da cidade, e é nesses bosques que trabalham os condenados, sangrando as árvores para coletar resina. A própria prisão fica no meio de um bosque, no final de uma estrada esburacada de terra vermelha, com arame farpado subindo pelos muros como uma trepadeira. Lá vivem cento e nove brancos, noventa e sete negros e um chinês. Há dois dormitórios — grandes barracões de madeira com teto revestido de papel alcatroado. Os brancos ocupam um; os negros e o chinês, o outro. Em cada dormitório há uma estufa bojuda, mas ali os invernos são frios, e à noite, com os pinheiros oscilando gelidamente e a luz frígida da lua, os homens ficam acordados, estendidos nos catres de ferro, com as cores chamejantes da estufa brincando em seus olhos.


Os homens que dormem nos catres mais próximos da estufa são gente importante — respeitada ou temida. O sr. Schaeffer é um desses. O sr. Schaeffer — é assim que o chamam, em sinal de deferência — é um sujeito magro e retraído. Tem cabelos ruivos, meio grisalhos, e rosto rarefeito, religioso, descarnado; pode-se ver o contorno dos ossos, e os olhos têm uma cor débil, baça. Sabe ler e escrever, sabe somar uma coluna de números. Quando alguém ali recebe uma carta, procura o sr. Schaeffer. A maioria das cartas é triste e queixosa; muitas vezes, o sr. Schaeffer improvisa passagens mais joviais em vez de ler o que está escrito no papel. No dormitório há mais dois homens que sabem ler. Mesmo assim, um deles traz suas cartas para o sr. Schaeffer, que faz o obséquio de jamais ler a verdade. O próprio sr. Schaeffer não recebe nenhuma correspondência, nem mesmo no Natal; parece não ter amigos fora da prisão, tampouco lá dentro — quer dizer, não tem nenhum amigo em especial. Mas nem sempre foi assim.

Num domingo de inverno, alguns invernos atrás, o sr. Schaeffer estava sentado nos degraus do dormitório, entalhando uma boneca. Tem muito talento para a coisa. Suas bonecas são entalhadas em partes separadas e depois montadas com molas; os braços e as pernas se movem, a cabeça gira. Quando ele completa uma dúzia de bonecas, o capitão da colônia penal as leva para a cidade, onde são vendidas no armazém. Assim, o sr. Schaeffer consegue dinheiro para os doces e o fumo.

Naquele domingo, enquanto ele recortava os dedos de uma mãozinha, um caminhão entrou no pátio da colônia penal. Algemado ao capitão, um rapaz desceu do veículo e ficou piscando os olhos ao sol fantasmagórico de inverno. O sr. Schaeffer mal olhou para ele. Nessa época, era um homem de cinqüenta anos, dezessete dos quais vividos na colônia. A chegada de um novo prisioneiro não o alvoroçava. Domingo é dia livre na colônia, e os que vadiavam pelo pátio se reuniram junto ao caminhão. Mais tarde, Machadinha e Minduim pararam para conversar com o sr. Schaeffer.

Machadinha disse: “É um estrangeiro, o novato. De Cuba. Mas é louro”.

“É um arruaceiro, o capitão contou”, disse Minduim, que era outro arruaceiro. “Passou a faca num marinheiro, em Mobile.”

“Em dois marinheiros”, Machadinha corrigiu. “Mas foi só uma briga de bar. Não machucou nenhum deles.”

“O sujeito corta a orelha do homem, e você diz que ele não machucou ninguém? Deram dois anos para ele, foi o que o capitão contou.”

Machadinha continuou: “Ele tem um violão todo coberto de jóias”.

Estava ficando escuro demais para trabalhar. O sr. Schaeffer encaixou as partes da boneca e, segurando as mãozinhas, colocou-a sobre os joelhos. Enrolou um cigarro; os pinheiros azulavam à luz do anoitecer, e a fumaça do cigarro se demorava no ar gelado e sombrio. Ele viu o capitão atravessando o pátio. O novo prisioneiro, um rapaz louro, seguia um passo atrás. Vinha carregando um violão cravejado de contas de diamante que cintilavam como estrelas, e o uniforme era grande demais para ele; parecia uma fantasia de Halloween.

“Schaeffer, mais um para você”, o capitão disse, detendo-se nos degraus do dormitório. O capitão não era um homem duro; de vez em quando, convidava o sr. Schaeffer para ir ao escritório conversar sobre o que haviam lido no jornal. “Tico Feo”, disse, como se fosse um nome de canção ou de passarinho, “este aqui é o sr. Schaeffer. Vá com a cara dele, e você vai se dar bem.”

O sr. Schaeffer ergueu a vista para o rapaz e sorriu. Sorriu mais do que queria, pois os olhos do rapaz pareciam faixas de céu — azuis como a tarde de inverno —, e os cabelos eram dourados como os dentes do capitão. Ele tinha um jeito brincalhão, vivaz e esperto; e, ao fitá-lo, o sr. Schaeffer se lembrou de passeios e bons tempos.

“Que nem minha irmãzinha”, Tico Feo disse, tocando a boneca do sr. Schaeffer. A voz dele, com o sotaque cubano, era suave e doce como uma banana. “Ela também senta no meu colo.”

O sr. Schaeffer se acanhou num repente. Fez uma vênia para o capitão e se embrenhou no escuro do pátio. Ficou ali, sussurrando os nomes das estrelas vespertinas que desabrochavam no céu. As estrelas eram um prazer para ele, mas naquela noite não lhe trouxeram conforto; não o fizeram lembrar que tudo o que nos acontece na Terra se perde no brilho infinito da eternidade. Olhando para elas — para as estrelas —, pensou no violão cravejado e no seu esplendor mundano.

Do sr. Schaeffer podia-se dizer que fizera algo muito errado na vida: matara um homem. As circunstâncias do ato são desimportantes — basta saber que o homem merecia morrer e que o sr. Schaeffer foi condenado a noventa e nove anos e um dia. Por muito tempo — por muitos anos, na verdade —, não pensou na vida que levara antes de chegar à colônia. Suas lembranças daqueles tempos eram como uma casa desabitada cuja mobília apodreceu. Mas naquela noite parecia que todas as lâmpadas se acendiam nos quartos mortos e soturnos. Tudo começou quando ele viu Tico Feo chegando na penumbra com seu violão esplêndido. Até então, não se sentira solitário. Agora, reconhecendo sua solidão, sentia-se vivo. Não queria estar vivo. Estar vivo significava lembrar de rios pardacentos onde nadam os peixes, da luz do sol nos cabelos de uma mulher.

O sr. Schaeffer deixou a cabeça pender. O brilho das estrelas enchera seus olhos de água.

Em geral, o dormitório era um lugar que fedia a homens, melancólico e desolado à luz de duas lâmpadas nuas. Mas, com a chegada de Tico Feo, o cômodo frio foi como que tomado por ares tropicais, pois, quando o sr. Schaeffer voltou das estrelas, deu com uma cena selvagem e extravagante. Sentado de pernas cruzadas num dos catres, Tico Feo tocava o violão com dedos ágeis e compridos, e cantava uma canção que soava tão alegre quanto moedas tilintando no bolso. Muito embora a canção fosse em espanhol, alguns dos homens tentavam acompanhar o canto, e Machadinha e Minduim dançavam juntos. Charlie e Wink também dançavam, mas separados. Dava gosto ouvir os homens rindo, e, quando Tico Feo finalmente pôs o violão de lado, o sr. Schaeffer estava entre os que foram cumprimentá-lo.

“Você merece um violão desses”, disse.

“É de diamante”, Tico Feo respondeu, alisando aquele luxo de araque. “Já tive um que era de rubi. Em Havana, minha irmã trabalha num… Como vocês dizem? Num lugar onde fazem violão; foi assim que consegui este.”

O sr. Schaeffer perguntou se ele tinha muitas irmãs, e Tico Feo, sorridente, mostrou quatro dedos. Então, com os olhos azuis se estreitando de cobiça, pediu: “Por favor, mister, dá a boneca para as minhas duas irmãs pequenas”.

Na noite seguinte, o sr. Schaeffer trouxe as bonecas. Daí em diante, foi o melhor amigo de Tico Feo, e começaram a andar sempre juntos. Um sempre teve o outro em alta conta.

Tico Feo tinha dezoito anos, e trabalhara durante dois num cargueiro no Caribe. Quando menino, freqüentara uma escola de freiras, e ainda trazia um crucifixo de ouro pendurado no pescoço. Tinha um rosário também. Mantinha o rosário enrolado num lenço de seda verde, que guardava três outros tesouros: um vidro da colônia Noite em Paris, um espelhinho de bolso e um mapa-múndi editado pela Rand McNally. Isso e o violão eram seus únicos pertences, e ele não deixava que ninguém os tocasse. Talvez estimasse o mapa acima de tudo. À noite, antes que apagassem as luzes, desdobrava o mapa e mostrava ao sr. Schaeffer os lugares onde estivera — Galveston, Miami, Nova Orleans, Mobile, Cuba, Haiti, Jamaica, Porto Rico, Ilhas Virgens — e os lugares aonde queria ir. Queria ir a quase toda parte, especialmente a Madri, especialmente ao pólo norte. Tudo isso tanto encantava como assustava o sr. Schaeffer. Ele não gostava de pensar em Tico Feo pelos mares e em lugares longínquos. Às vezes, olhava preocupado para o amigo e pensava: “É só um sonhador preguiçoso”.

E a verdade é que Tico Feo era um sujeito preguiçoso. Depois daquela primeira noite, todos tinham de insistir até mesmo para que tocasse violão. Na alvorada, quando o guarda vinha despertar os homens, batendo com um martelo na estufa, Tico Feo choramingava como um menino. Às vezes fingia estar doente, gemia e apertava a barriga; mas nunca se dava bem, pois o capitão o mandava trabalhar. Ele e o sr. Schaeffer haviam sido destacados para as obras na estrada. Era trabalho pesado: cavar a terra congelada e carregar sacos de entulho cheios de pedregulhos. O guarda não parava de gritar com Tico Feo, que passava a maior parte do tempo tentando se encostar onde desse.

Ao meio-dia, quando chegavam as marmitas, os dois amigos sentavam juntos. Havia algumas coisas melhores na marmita do sr. Schaeffer, que podia pagar pelas maçãs e pelos doces da cidade. Ele gostava de dar essas regalias para o amigo, que se deliciava tanto, e pensava: “Você ainda está crescendo, ainda falta muito para ser um homem-feito”.

Nem todo mundo gostava de Tico Feo. Por ciúme ou por razões mais sutis, havia quem contasse histórias escabrosas a seu respeito. O próprio Tico Feo parecia não se dar conta disso. Quando os homens se reuniam ao seu redor e ele tocava violão e cantava, era evidente que se sentia querido. A maioria dos homens de fato lhe queria bem; esperavam pelas canções que ouviam da hora do jantar até o blecaute, dependiam delas. “Tico, toque pra gente”, pediam. Não notavam que, em seguida, a tristeza era mais funda que antes. O sono lhes escapava feito uma lebre, os olhos se demoravam pensativamente no fogo que estalava atrás das grades da estufa. O sr. Schaeffer era o único a entender aquela perturbação, pois também a sentia. O amigo ressuscitara os rios pardacentos e as mulheres com a luz do sol tecida nos cabelos.

Logo conferiram a Tico Feo a honra de uma cama perto da estufa e ao lado do sr. Schaeffer. O sr. Schaeffer sempre soube que o amigo era um mentiroso terrível. Não dava crédito às suas histórias de aventura, de conquistas e encontros com gente famosa. Gostava delas como meras histórias, dessas que se lêem nas revistas, e se deleitava em ouvir a voz tropical do amigo sussurrando no escuro.

Exceto por não misturarem seus corpos nem pensarem no assunto, muito embora essas coisas não fossem desconhecidas na colônia penal, eram como amantes. De todas as estações, a primavera é a mais impetuosa: brotos rompendo a crosta de terra endurecida pelo inverno, folhas novas rebentando em velhos galhos moribundos, o vento sonolento cruzando o verde recém-nascido dos campos. E o sr. Schaeffer não fugia a essa regra: uma erupção, um vigor de músculos enrijecidos.

Foi no final de janeiro. Os amigos estavam sentados nos degraus do dormitório, cada um com um cigarro na mão. Uma lua tênue e amarela como uma fatia de limão se vergava no céu, e, à sua luz, filetes de geada brilhavam como trilhas prateadas de caracóis. Fazia dias que Tico Feo andava retraído — calado como um ladrão esperando no escuro. Não adiantava dizer: “Tico, toque pra gente”. Ele só dava uma olhada de soslaio, os olhos mortiços, sedados.

“Conte uma história”, o sr. Schaeffer disse, sentindo-se nervoso e impotente por não conseguir se aproximar do amigo. “Conte a história das corridas em Miami.”

“Nunca fui a nenhuma corrida”, Tico Feo respondeu, fazendo cair por terra sua mentira mais deslavada, que envolvia centenas de dólares e um encontro com Bing Crosby. O rapaz não parecia se importar. Sacou um pente e o passou sem ânimo pelos cabelos. Alguns dias antes, aquele pente fora o motivo de uma disputa feroz. Um dos homens, Wink, alegou que Tico Feo roubara o pente, ao que o acusado replicou cuspindo-lhe no rosto. Os dois brigaram até que o sr. Schaeffer e outro sujeito conseguiram separá-los. “O pente é meu. Pode dizer para ele!”, Tico Feo pediu ao sr. Schaeffer. Mas o sr. Schaeffer, com uma firmeza serena, disse que não, que o pente não pertencia a ele — resposta que pareceu desconcertar todos os implicados. “Bem”, Wink retrucou, “se ele quer tanto o pente, pelo amor de Deus, pode deixar o filho-da-puta ficar com ele.” E mais tarde, numa voz espantada e incerta, Tico Feo disse: “Pensei que você fosse meu amigo”. “E sou”, pensou o sr. Schaeffer, sem dizer nada.

“Nunca fui a corrida nenhuma, e a história da viúva também é mentira.” Ele deu uma tragada no cigarro até fazê-lo brilhar furiosamente e olhou para o sr. Schaeffer com ar especulativo. “Diga aí, mister, você tem dinheiro?”

“Uns vinte dólares, quem sabe”, o sr. Schaeffer respondeu hesitante, temendo o rumo que as coisas pareciam tomar.

“Não é grande coisa, vinte dólares”, Tico disse, sem dar sinais de decepção. “Não tem problema, vamos dar um jeito. Em Mobile tem o meu amigo Frederico. Ele vai pôr a gente num barco. Sem problema”, e falava como se dissesse que a temperatura iria cair.

O sr. Schaeffer sentiu um aperto no coração; não conseguia falar. “Ninguém aqui pega o Tico. Ele vai mais rápido.”

“Tiros vão mais rápido”, o sr. Schaeffer disse, numa voz sumida. “Sou velho demais”, continuou, a consciência da idade revirando como uma náusea.

Tico Feo não escutava. “Depois, é o mundo. O mundo, el mundo, amigo.” Levantando-se, estremeceu como um potro; tudo parecia se aproximar dele — a lua, o pio das corujas. Sua respiração acelerada se convertia em vapor. “Vamos para Madri? Quem sabe alguém não me ensina a tourear. Que tal, mister?”

O sr. Schaeffer também não escutava. “Estou velho”, disse, “estou velho demais.”

Nas semanas seguintes, Tico Feo continuou insistindo — o mundo, el mundo, amigo —, e o sr. Schaeffer queria se esconder. Queria se trancar no banheiro e apoiar a cabeça nas mãos. Mesmo assim, estava excitado, siderado. E se desse certo a tal corrida com Tico através dos bosques, até o mar? Então se imaginava num barco, logo ele, que nunca vira o mar, que passara a vida enraizado em terra firme. Nesse meio-tempo, um dos condenados morreu, e do pátio se ouvia o barulho do caixão sendo fabricado. A cada prego que batiam, o sr. Schaeffer pensava: “Esse é para mim, esse é meu”.

Quanto a Tico Feo, nunca estivera tão animado; perambulava para cima e para baixo com a graça malandra e garbosa de um dançarino, tinha uma piada para cada um que passava. No dormitório, depois do jantar, dedos pipocavam no violão como bombinhas. Ensinou os homens a gritar olé, e alguns chegaram a jogar os bonés para o alto.

Quando ficou pronta a obra na estrada, o sr. Schaeffer e Tico Feo voltaram a trabalhar nos bosques. No Dia de São Valentim, almoçaram embaixo de um pinheiro. O sr. Schaeffer encomendara uma dúzia de laranjas da cidade, e agora as descascava vagarosamente, as cascas se enrolando numa espiral; dava os pedaços mais suculentos para o amigo, que se orgulhava de cuspir as sementes à distância — uns bons três metros.

Era um dia frio e bonito, com restos de luz do sol passando por eles como borboletas, e o sr. Schaeffer, que gostava de trabalhar com as árvores, sentia-se confuso e feliz. Então Tico Feo disse: “Aquele ali, aquele não pega nem mosca”. Falava de Armstrong, um sujeito com queixo de porco, sentado com um rifle entre as pernas. Era o mais jovem dos guardas e novato na colônia.

“Não sei, não”, o sr. Schaeffer disse. Observara Armstrong e notara que, como muitos homens gordos e vaidosos, o novo guarda se movia com ligeireza diáfana. “Ele pode surpreender você.”

“Vamos ver se eu não o surpreendo primeiro”, Tico Feo respondeu, e cuspiu uma semente na direção de Armstrong. O guarda fez cara feia e depois soprou um apito. Era o sinal para voltarem ao trabalho.

Em algum momento durante a tarde, os dois amigos se juntaram de novo, quer dizer, começaram a prender baldes de coleta em árvores próximas umas das outras. Um pouco abaixo, um riacho raso e agitado entrava pelo bosque. “Água não tem cheiro”, Tico Feo disse meticulosamente, como se lembrasse de alguma frase que ouvira. “Vamos correr pela água, de noite trepamos numa árvore. Certo, mister?”

O sr. Schaeffer continuou martelando, mas a mão tremia, e o martelo acertou seu polegar. Olhou estupefato para o amigo. O rosto não dava mostras de dor, nem ele chupou o polegar como qualquer um faria.

Os olhos azuis de Tico Feo pareciam inchados como bolhas, e, quando ele disse, numa voz mais sutil que o vento no topo dos pinheiros: “Amanhã”, aqueles olhos eram tudo o que o sr. Schaeffer conseguia ver.

“Amanhã, mister?”

“Amanhã”, o sr. Schaeffer respondeu.

As primeiras cores da manhã tocaram as paredes do dormitório, e o sr. Schaeffer, que mal repousara, sabia que Tico Feo também estava acordado. Com os olhos cansados de um crocodilo, observou os movimentos do amigo no catre ao lado. Tico Feo estava desamarrando o lenço em que guardava seus tesouros. Primeiro, tirou o espelhinho de bolso. A luz de água-marinha tremeluziu no rosto dele. Por um instante, admirou-se com deleite sincero, depois penteou e engomou os cabelos, como se estivesse se preparando para uma festa. Pendurou o rosário no pescoço. Não abriu a colônia nem o mapa. A última coisa que fez foi afinar o violão. Enquanto os outros se vestiam, sentou-se na beira do catre e afinou o violão. Isso era estranho, pois decerto ele sabia que nunca mais iria tocá-lo.

O alarido dos passarinhos acompanhou os homens pela névoa dos bosques matinais. Caminhavam em fila indiana, quinze homens em cada grupo e um guarda fechando cada coluna. O sr. Schaeffer suava como se aquele fosse um dia de calor e não conseguia acompanhar a marcha do amigo, que ia na frente, estalando os dedos e assobiando para os passarinhos.

Haviam combinado um sinal. Tico Feo diria: “Com licença”, e fingiria ir para trás de uma árvore. Mas o sr. Schaeffer não sabia quando isso iria acontecer.

O guarda Armstrong apitou, os homens saíram da formação e se dirigiram aos postos de trabalho. O sr. Schaeffer, mesmo empenhado em trabalhar o melhor que podia, tratou de estar sempre numa posição em que pudesse ver tanto Tico Feo como o guarda. Armstrong sentou-se num toco de árvore, com um naco de fumo contorcendo seu rosto e a arma apontada para cima. Tinha os olhos manhosos de um trapaceiro; não havia como dizer para onde estava olhando.

Outro homem deu o sinal. O sr. Schaeffer notou na hora que aquela não era a voz do amigo, mas o pânico lhe apertou a garganta como uma corda. À medida que a manhã ia passando, seus ouvidos reboavam tanto que ele teve medo de não ouvir o sinal verdadeiro.

O sol chegou ao ápice. “É só um sonhador preguiçoso. Não vai acontecer nada”, o sr. Schaeffer pensou, querendo se convencer. Mas Tico Feo disse: “Vamos comer primeiro”, com um ar prático, enquanto se acomodavam acima do riacho com as marmitas. Comeram em silêncio, como se guardassem rancor um do outro; mas, no final, o sr. Schaeffer sentiu a mão do amigo segurando a sua e fazendo uma leve pressão.

“Sr. Armstrong, com licença…”

Perto do riacho, o sr. Schaeffer vira um eucalipto, e estava pensando que logo seria primavera e que precisariam sangrar o tronco. Uma pedra cortante lhe abriu a palma da mão quando ele deslizou para a água pela margem escorregadia. Ele se aprumou e começou a correr; tinha as pernas compridas, quase ultrapassava Tico Feo, e jatos gélidos respingavam ao redor. Volta e meia, os gritos dos homens ressoavam surdamente pelo bosque, como vozes numa caverna, e se ouviram três tiros, todos para o alto, como se o guarda mirasse um bando de gansos.

O sr. Schaeffer não viu o tronco atravessado no riacho. Pensou que ainda estava correndo, e suas pernas se agitaram em vão; caiu feito uma tartaruga virada de costas.

Enquanto ele se debatia, o rosto do amigo, suspenso mais acima, parecia fazer parte do céu branco de inverno — tão distante e severo. O rosto se deteve um momento apenas, como um beija-flor, tempo suficiente para o sr. Schaeffer perceber que Tico Feo não queria que ele conseguisse, nem jamais achara que ele conseguiria, e lembrou que, certa vez, pensara que faltava muito para que o amigo se tornasse um homem-feito. Quando encontraram o sr. Schaeffer, ele ainda estava caído na água rasa, como se aquela fosse uma tarde de verão e ele flutuasse à toa na correnteza.

Desde então, passaram-se três invernos, cada um com fama de ser o mais frio, o mais longo. Há pouco, dois meses de chuva abriram sulcos ainda mais fundos na estrada de terra que leva à colônia, e é cada vez mais difícil chegar lá, cada vez mais difícil sair de lá. Um par de holofotes foi instalado nos muros, e ambos ardem a noite inteira como os olhos de uma coruja gigante. De resto, nada mudou. O sr. Schaeffer, por exemplo, ainda é o mesmo, exceto pela mecha mais branca nos cabelos; além disso, por conta de um tornozelo quebrado, ele manca. Foi o próprio capitão quem disse que o sr. Schaeffer quebrara o tornozelo na tentativa de capturar Tico Feo. Uma foto do sr. Schaeffer chegou a sair no jornal, com a legenda: “Tentou evitar fuga”. Ele se sentiu profundamente humilhado, não porque soubesse que os homens riam dele, mas porque achava que Tico Feo veria a foto. De todo modo, recortou-a do jornal, e a conserva num envelope, com outras matérias sobre o amigo: uma solteirona declarou às autoridades que ele entrara na sua casa e lhe dera um beijo; ele fora visto duas vezes nas proximidades de Mobile; por fim, acreditava-se que fugira do país.

Ninguém jamais contestou o direito do sr. Schaeffer ao violão. Alguns meses atrás, um novo prisioneiro foi transferido para o dormitório. Diziam que o sujeito tocava bem, e convenceram o sr. Schaeffer a lhe emprestar o instrumento. Mas suas canções não saíam direito; era como se Tico Feo, ao afinar o violão naquela derradeira manhã, tivesse enfeitiçado as cordas. Agora o violão jaz sob o catre do sr. Schaeffer, onde as contas de diamante estão encardindo; de vez em quando, à noite, suas mãos procuram por ele, os dedos passeiam pelas cordas; depois, é o mundo.

Truman Capote

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