Ao retirar-se da janela, suspirando, Ana percebeu que o marido, naquela manhã, esquecera-se de decompor a cama, como fazia sempre, para que os criados não notassem que ele não dormira em seu quarto. Pousou então os cotovelos na cama intacta, depois ali se apoiou com o busto todo, dobrando a bela cabeça loura sobre os travesseiros e semicerrando os olhos, como que para saborear, no frescor do linho, os sonos que ali costumava dormir. Um bando de andorinhas tresmalhadas veio rumorejar diante da janela.
— Teria sido melhor que houvesse deitado aqui — murmurou entre si; e levantou-se cansada.
O marido ia partir naquela mesma noite, e ela entrara no quarto dele a fim de preparar-lhe o necessário para a viagem.
Ao abrir o guarda-roupa, ouviu como que um chiado na gaveta interna e logo se afastou, assustada. Apanhou de um canto do quarto uma bengala de cabo recurvo e, mantendo junto às pernas o vestido, pegou a bengala pela ponta e experimentou abrir com ela, assim afastada, a gaveta. Mas, ao puxar, ao invés da gaveta veio para fora, agilmente, da bengala, uma luzidia e perigosa lâmina. Isso ela não esperava; ficou assustada e deixou cair das mãos a bainha do estoque.
Naquele momento, um outro chiado fê-la voltar-se de repente, na dúvida de que também o primeiro tivesse partido de alguma andorinha batendo nas vidraças.
Afastou com o pé a arma desembainhada e puxou para fora, entre as duas portinholas abertas, a gaveta repleta de roupas velhas, ali guardadas pelo marido. Por improvisa curiosidade, passou então a revistá-la e, ao mexer num paletó velho e desbotado, ocorreu-lhe esbarrar nas orlas, sob o forro, como num pedaço de papelão, deslizado para ali do bolso furado; quis ver o que seria aquela carta caída ali, quem sabe há quantos anos, e esquecida; e assim, por acaso, Ana descobriu o retrato da primeira mulher de seu marido.
Empalidecendo, com a vista turva e o coração em suspenso, correu à janela, e ali permaneceu longo tempo, atônita, a contemplar a imagem desconhecida, como que presa de uma sensação de espanto.
O volumoso arranjo do penteado e o vestido de estilo antigo não lhe fizeram notar a princípio a beleza daquele rosto; mas, apenas pôde apanhar-lhe os traços, abstraindo-os dos enfeites, que agora, tantos anos depois, pareciam grotescos, e fixar-lhe especialmente os olhos, sentiu-se quase ofendida, e um ímpeto de ódio lhe saltou do coração ao cérebro: ódio de ciúme póstumo; ódio misto a desprezo, que experimentara por aquela que se enamorara do homem que agora era seu marido, depois de onze anos da tragédia conjugal que destruíra de chofre o primeiro lar dele.
Ana odiara aquela mulher, não sabendo compreender como pudera trair o homem que ela agora adorava e, em segundo lugar, porque seus parentes se haviam oposto ao seu casamento com Brívio, como se este houvesse sido responsável pela infâmia e pela morte violenta da mulher infiel.
Era ela, sim, era, sem dúvida! a primeira mulher de Vittore: aquela que se suicidara!
Teve disso a confirmação pela dedicatória escrita no verso do retrato: Ao meu Vittore, a sua Almira — 11 de novembro de 1873.
Ana tivera notícias muitos vagas a respeito da morta: sabia apenas que o marido, descoberta a traição, obrigara-a, com a impassibilidade de um juiz, a suicidar-se.
Agora, ela evocou com prazer esta condenação do marido, irritada por aquele “meu” e por aquele “sua” da dedicatória, como se a outra houvesse desejado ostentar, assim, estreitamente, o liame que reciprocamente unira ela e Vittore, unicamente para fazer-lhe desaforo.
Ante aquele primeiro relâmpago de ódio, faiscado pela rivalidade para ela agora existente, seguiu-se na alma de Ana a curiosidade feminina de examinar os traços daquele rosto, mas quase contida pela estranha consternação que se experimenta perante um objeto que pertenceu a alguém tragicamente desaparecido; consternação agora mais viva, mas a ela não desconhecida, porque nisso se concentrara todo o seu amor pelo marido, que já pertencera àquela outra mulher.
Ao examinar-lhe o rosto, Ana percegeu logo quanto se diferenciava do seu; e surgiu-lhe ao mesmo tempo do coração a pergunta: como pudera o marido amar aquela mulher, aquela mocinha, certamente mais bonita para ele, e pudesse depois enamorar-se dela, tão diferente?
Parecia-lhe belo, muito mais belo que o seu também, aquele rosto que, pelo retrato, devia ser moreno. Ei-lo: e aqueles lábios se haviam unido, no beijo, aos dele; mas, por que então, nos cantos da boca, aquela prega dolorosa? E porque tão triste o olhar daqueles olhos profundos? O rosto inteiro transpirava uma intensa mágoa; e Ana sentiu quase raiva da bondade humilde e real que aqueles traços exprimiam, e daí um gesto de repulsa e aversão, parecendo-lhe de súbito descobrir no olhar daqueles olhos a mesma expressão dos seus, quando, ao pensar no marido, se olhava ao espelho, pela manhã, depois de se haver arrumado.
Teve o tempo ainda de pôr no bolso o retrato: o marido apareceu, bufando, à entrada do quarto.
— Que fez você? Como sempre? Arrumou? Oh, pobre de mim! Agora não encontro mais nada!
Ao ver o estoque desembainhado no chão:
— Ah! Você brincou também de esgrima, com as roupas do armário?
E riu com aquele seu riso, que partia somente da garganta, como se alguém lha houvesse beliscado; e, ao rir assim, olhou para a mulher, talvez para perguntar-lhe o porquê de seu próprio riso. E, olhando, batia as pálpebras sem cessar, celerissimamente, sobre os olhinhos agudos, negros, irrequietos.
Vittore Brívio tratava a mulher como a uma menina incapaz de outra coisa a não ser daquele amor ingênuo e quase pueril de que se sentia circundado, às vezes com tédio, e ao qual se propusera prestar atenção somente de vez em quando, mostrando, também então, uma condescendência quase embebida de leve ironia, parecendo dizer-lhe: “Pois bem, que seja! durante algum tempo, serei criança também com você: é preciso mesmo fazer isto, mas não percamos demasiado tempo!”
Ana deixara cair a seus pés o velho paletó, onde encontrara o retrato. Ele ergueu-o, metendo-lhe a ponta do estoque, depois chamou da janela o criado, que se achava no jardim e que servia também de cocheiro e que, no momento, estava atrelando o cavalo ao trole. Assim que o rapaz se apresentou, em mangas de camisa, diante da janela, Brívio atirou-lhe à cara, grosseiramente, o paletó espetado, acompanhando a esmola com um: “Tome, isto é para você!”
— Assim você terá menos para escovar — acrescentou, dirigindo-se à mulher — e também para arrumar, esperemos!
E novamente emitiu aquele seu riso forçado, batendo mais e mais as pálpebras.
Outras vezes, o marido afastara-se da cidade e não por poucos dias apenas, partindo mesmo à noite, como desta vez; mas Ana, ainda sob a impressão da descoberta daquele retrato, experimentou um medo estranho, e disse-o, chorando, ao marido.
Vittore Brívio, apressado, receando sair tarde, e todo absorto no pensamento de seus negócios, recebeu com mau humor aquele pranto insólito da mulher.
— Como! Por quê? Vamos, vamos, criancices!
E saiu a toda pressa, sem sequer despedir-se.
Ana estremeceu ao ruído da porta que se lhe fechou empós, com ímpeto; ficou ali com o lampião na mão, na saleta, e sentiu as lágrimas se lhe regelarem nos olhos. Depois reagiu e voltou rápida para seu quarto, a fim de deitar-se logo.
No aposento já arrumado, ardia a lamparina da noite.
— Vá, pode ir dormir — disse Ana à camareira, que a esperava. — Eu mesma me arranjo. Boa noite.
Apagou a luz, mas, ao invés de pousá-la na mísula, como sempre fazia, sobre o criado-mudo, pressentindo — mesmo contra sua própria vontade — que talvez dela necessitaria mais tarde. Começou a despir-se à pressa, conservando os olhos fixos no chão, diante de si. Quando o vestido lhe caiu aos pés, pensou que o retrato estava lá e, com viva raiva, se sentiu olhada e compadecida por aqueles olhos dolentes, que tanta impressão lhe haviam causado. Curvou-se resolutamente, para apanhar do tapete o vestido, e pousou-o, sem dobrar, sobre a poltrona aos pés da cama, como se o bolso que guardava o retrato e o envoltório do pano devessem e pudessem impedir-lhe de reconstruir a imagem daquela morta.
Mal se deitara, fechou os olhos e se propôs a seguir, com o pensamento, o marido pela estrada que levava à estação ferroviária. Impôs-se isso por uma irada revolta ao sentimento que, durante aquele dia todo, a conservara vigilante, a observar, a estudar o marido. Sabia de onde proviera tal sentimento e queria expulsá-lo de si.
No esforço da vontade, que lhe provocava viva superexcitação nervosa, imaginou ter diante dos olhos, com extraordinária evidência, a comprida rua, deserta na noite, iluminada pêlos lampiões que reverberam sua luz trémula na calçada, que parecia palpitar; e aos pés de cada lampião, um círculo de sombra; as lojas, todas fechadas; e eis a carruagem que conduzia Vittore. Como se a houvesse esperado à passagem, passou a segui-la até à estação; viu o trem lúgubre, sob o telhado de vidro; uma grande confusão de pessoas naquele interior vasto, enfumaçado, mal iluminado, sombriamente sonoro: eis que o trem partia; e, como se realmente o visse afastar-se e desaparecer nas trevas, voltou logo a si, abriu os olhos no quarto silencioso e experimentou uma angustiosa sensação de vácuo, como se algo lhe faltasse dentro.
Sentiu, então, confusamente, desnorteando-se, que, desde três anos, talvez desde o momento em que partira da casa paterna, ela estava mergulhada naquele vácuo, de que só agora começava a ter conhecimento. Não notara antes, porque o havia preenchido somente consigo, com seu amor, aquele vazio; percebia-o agora, porque, durante aquele dia todo, conservara quase suspenso seu amor, para ver, para observar, para julgar.
“Nem sequer se despediu de mim!” pensou; e pôs-se a chorar de novo, como se este pensamento fosse determinadamente a causa do pranto.
Sentou-se na cama: mas logo deteve a mão estendida, ao levantar-se, para apanhar o lenço do vestido. Ora, seria mesmo inútil proibir-se de rever aquele retrato, de observá-lo! Apanhou-o. Reacendeu a luz.
Como imaginara diversamente, aquela mulher! Contemplando-lhe agora a verdadeira efígie, sentia remorsos pêlos sentimentos que a imaginação lhe sugerira. Pensara sempre nela como uma mulher gorda e corada, com os olhos relampejantes e risonhos, inclinada ao riso, a distrações vulgares. E, ao contrário, ei-la: uma jovem, e dos seus puros traços emanava uma alma profunda e atormentada; diferente dela, sim, mas não no sentido inconveniente de antes: ao contrário, até parecia que aquela boca não houvesse nunca sorrido, ao passo que a sua tantas vezes rira alegremente; e, certamente, se moreno aquele rosto (como pelo retrato parecia) era de um ar menos risonho que o seu, louro e róseo.
Por que, por que tão triste?
Um pensamento odioso atravessou-lhe a mente, e logo desprendeu os olhos da imagem daquela mulher, descobrindo-lhe de improviso um perigo não só à sua paz, ao seu amor, que também naquele dia recebera mais de uma ferida, mas também à sua orgulhosa dignidade de mulher honesta, que jamais se permitira nem mesmo o mínimo pensamento contra o marido. Aquela tivera um amante! E por causa deste, ela talvez estivessesse tão triste, por causa daquele amor adúltero, e não pelo marido!
Atirou o retrato sobre o criado-mudo e apagou de novo a luz, esperando adormecer, desta vez, sem mais pensar naquela mulher, com a qual nada podia ter em comum. Mas, fechando as pálpebras, reviu logo, malgrado seu, os olhos da morta, e em vão procurou expulsar aquela visão.
— Não por ele, não por ele! — murmurou, com aflitiva obstinação, como se, injuriando-a, contasse libertar-se dela.
E esforçou-se por trazer de novo à memória quanto sabia sobre o outro, o amante, quase que obrigando o olhar e a tristeza daqueles olhos a se dirigirem não mais a ela mas sim ao antigo amante, do qual conhecia apenas o nome: Artur Valli. Sabia que ele se casara, alguns anos depois, quase para provar que era inocente do crime que lhe queria atribuir Brívio, do qual sempre repelira energicamente o desafio, protestando que jamais se bateria em duelo com um louco assassino. Depois desta recusa, Vittore tinha ameaçado matá-lo onde o encontrasse, até mesmo na igreja; e então ele saíra dali, com a mulher, voltando mais tarde àquela cidade, assim que soubera que Vittore, de novo casado, partira.
Mas da tristeza desses acontecimentos por ela relembrados, pela convardia de Valli e, depois de tantos anos, pelo esquecimento do marido o qual, como se nada fosse, conseguira reabilitar-se na vida e tornar a casar, pela alegria que ela própria sentira ao se tornar sua mulher, por aqueles três anos transcorridos sem jamais se lembrar da outra, inesperadamente, um motivo de compaixão por ela se impôs a Ana espontâneo: reviu-lhe viva a imagem, mas como se estivesse longe, longe, e pareceu-lhe que, com aqueles olhos, de tanta mágoa inundados, ela lhe dissesse, abanando levemente a cabeça:
— Somente eu, porém, morri! Vocês todos vivem!
Viu-se, sentiu-se sozinha em casa; teve medo. Vivia, sim, ela; mas fazia três anos, desde o dia de seu casamento, não mais vira, nem uma só vez, seus pais, sua irmã. Ela, que os adorava, e que sempre tinha sido para com eles dócil e confiante, pudera rebelar-se à sua vontade, aos seus conselhos, por amor àquele homem; por amor àquele homem adoecera mortalmente e teria morrido, se os médicos não houvessem induzido seus pais a condescender no casamento. O pai cedera, não consentindo, porém, e até jurando que ela para ele, para sua casa, depois daquele casamento, deixaria de existir. Além da diferença de idade, dos dezoito anos que o marido tinha mais que ela, obstáculo mais grave para o pai tinha sido a posição financeira do marido, sujeita a rápidas mudanças devido a negócios arriscados a que costumava atirar-se, com temerária confiança em si mesmo e na sorte.
Em três anos de casamento, Ana, rodeada de conforto, pudera considerar injustas ou ditadas por contrárias prevenções as considerações da prudência paterna, quanto à fortuna do marido, na qual, de resto, ela, ignara, depositava a mesma confiança que ele em si próprio; quanto então à diferença de idade, até agora nenhum manifesto argumento de desilusão para ela ou de admiração para os outros, porque, dos anos, Brívio não sentia o mínimo prejuízo nem no corpo vivacíssimo e nervoso, nem muito menos no ânimo, dotado de infatigável energia, de irrequieta alacridade.
De bem outra coisa, agora, pela primeira vez, olhando (sem sequer desconfiar) para sua vida com os olhos da morta, encontrava motivo para queixar-se do marido. Sim, era verdade: da indiferença quase altiva dele ela se sentira ferir já outras vezes: porém, nunca como naquele dia; e agora, pela primeira vez, se sentia tão angustiosamente só, separada dos parentes, os quais, lhe parecia naquele momento, a houvessem abandonado ali, quase que, ao casar com Brívio, tivesse já algo em comum com aquela morta e não fosse mais digna de outra companhia. E o marido, que deveria consolá-la, o próprio marido parecia não dar-lhe mérito algum quanto ao sacrifício que ela fizera de seu amor filial e fraternal, como se a ela nada tivesse custado, como se àquele sacrifício ele tivesse direito, e por isso agora nenhum dever tinha para consolá-la ou compensá-la. Direito, sim, mas porque ela se enamorara tão perdidamente por ele, àquele tempo; então ele tinha agora o dever de compensá-la. E ao invés…
— Sempre assim! — pareceu a Ana que os lábios da morta suspirassem.
Reacendeu a luz e de novo, contemplando a imagem, foi atraída pela expressão daqueles olhos. Também ela, então, deveras, sofrera por ele? Também ela, também ela, ao perceber que não era amada, experimentara aquele angustioso vazio?
— Sim? sim? — perguntou Ana, sufocada pelo pranto, à imagem.
E pareceu-lhe, então, que aqueles olhos bondosos, repletos de paixão, se compadecessem dela por sua vez, tivessem pena dela por aquele abandono, pelo sacrifício não recompensado, pelo amor que lhe ficava preso no seio, qual tesouro no escrínio, do qual ele possuísse as chaves, mas nunca dele se servira, tal como o avarento.
Luigi Pirandello

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