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Na noite em que não deixaste entrar o gatinho e o expulsaste para o meio dos relâmpagos e do temporal, eu deveria ter pressentido qual seria o meu destino. Mas ri quando o atiraste para a rua encachoeirada e concordei: era um gatinho muito feio.
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Não sabe por que a vida ainda o procura toda manhã, com seus costumeiros truques. Conhece todos: o sol entrando serelepe pelas frestas da janela, o convidativo canto dos pássaros na árvore do quintal, o cheiro de café que vem da casa vizinha. Todo dia, antes de abrir a janela, lembra-se dessas artimanhas, e de outras tantas de que foi vítima, e prepara-se para não cair em nenhuma tentação. Hoje, assim que abriu a janela, viu no começo da rua, andando na direção da casa dele, uma garota de cabelos loiros. Mais próxima, já não parecia tão jovem. Era, em todo caso, uns vinte anos mais moça que ele – ou menos velha. Ao passar, ela sorriu, um sorriso como fazia muito tempo ele não recebia de alguém. O coração imediatamente lhe sugeriu coisas e ele esteve para correr até o portão e seguir a mulher por onde ela fosse. Por pouco não fez isso. Acabou saindo da janela e foi para o seu trabalho no computador, no outro quarto, seu improvisado escritório. Respirava com alívio. Tinha escapado mais uma vez ao convite da vida.
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Era o único banco em que havia uma beiradinha disponível, e ele se sentou. Estranhou, por não ser nem meio-dia, que a garota sentada ao lado dele, meninota de doze anos, se tanto, tivesse a boca desenhada por um batom grotescamente escarlate e as maçãs do rosto ressaltadas também por uma cor berrante, além de estar desvestida por uma minissaia com pretensões a micro. O que estaria ela fazendo ali, de manhã, no parque? Ele tinha acabado de pensar isso quando um brutamontes de agasalho chegou e empurrou-o para fora do banco, perguntando-lhe o que ele pensava que estava fazendo ali. Imediatamente o troglodita envolveu a garota num abraço dentro do qual ela desapareceu e começou a beijá-la com uma voracidade que ela, apesar do tamanhinho, ia retribuindo com valentia de guerreira.
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Tudo que o homem toca, tudo que o homem vive, imediatamente se transforma em passado. O calor e o brilho, a beleza e o esplendor tendem irremediavelmente ao frio, ao pó, à treva e ao esquecimento.

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