quarta-feira, agosto 6

Miragens da solidão

Olhando as alturas, Muidinga repara nas várias raças das nuvens. Brancas, mulatas, negras. E a variedade dos sexos também nelas se encontrava. A nuvem feminina, suave: a nua-vem, nua-vai. A nuvem-macho, arrulhando com peito de pombo, em feliz ilusão de imortalidade.

E sorri: como se pode jogar com as mais longínquas coisas, trazer as nuvens para perto como pássaros que vêm comer em nossa mão. Se recorda da tristeza que o manchara na noite anterior. Lembra as palavras que trocou com Tuahir:

— Tio, eu me sinto tão pequeno...

— É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.

A fala de Tuahir ainda agora remexe em seu peito. Mas ele já não parece vencido. E se levanta cheio de uma ideia. Toca nas costas do velho e lhe diz:

— Estamos sozinhos, não é, tio?

Tuahir esfrega os ensonados olhos. O miúdo estaria zuca-zaruca? Se estava, era loucura convicta. Porque o moço lhe pede que se junte a ele numa estranha brincadeira.

— Tio, vamos fazer um jogo. Vamos fazer de conta que eu sou Kindzu e o senhor é o meu pai!

— Seu pai?

— Sim, o velho Taímo.

Tuahir negou. O tal Taímo era um falecido. E com os falecidos nunca é bom brincar. Ainda por cima era um morto desconsolado.

— Você não sabe o que pode fazer um morto incompleto. Não lhe contei o que sucedeu com o pescador Nipita?

— Conte, tio. Se é uma estória me conte, nem importa se é verdade.

Tuahir lembra Nipita, um pescador que fora esfaquinhado pelos bandos armados. Acontecera de noite, o desgraçado voltou de madrugada, vinha buscar as tripas. Deixei-lhes aqui, esbarriguei-me num nadinha, disse num derradeiro sopro. Agora estando quase para morrer, não podia se presentar perante a cova sem estar devidamente completo. Alguém ainda lhe disse: vai que nós te levamos depois as partes que te faltam. E ele se sepultou, assim, destripado. Nunca mais ninguém lhe levou os restos de suas entranhas. O falecido pescador, agora, passava a morte a maldiçoar os viventes.

— Está ver? Não se deve brincar com os falecidos.

O miúdo entende os cuidados do velho. Decide argumentar, escolhe as ideias. Mas tio, não vamos fazer pouco. Ao contrário, se esse morto está desconsolado nós vamos lhe dar sossego. Tuahir hesita. O miúdo não dá tempo, insistindo sempre. É brincar no respeito, tio. E já se vai sentando, os espantosos olhos fitando o velho.

— Certo, pai?

Pai? Tuahir sacode a cabeça. E fica cismando. Depois de um tempo, porém, sua voz se abre, em fresta de riso.

— Certo, Kindzu.

Muidinga, então, se deita ajeitando a cabeça no colo do velho. Seus olhos se perdem no horizonte. O miúdo não esperava que Tuahir aceitasse aquele jogo.
 Agora parece ser ele que está menos à vontade que o velho.

— Estás a ver o monte, Kindzu?, pergunta Tuahir.

— Estou. Quem sabe Gaspar anda por lá, neste momento?

— Não anda, com certeza. Aquele monte é proibido, disse o velho.

E prosseguiu: aquele era o lugar onde há muito enterraram o régulo marreco. Naquela altura, não havia nenhuma elevação, tudo em volta era planície. O morto começou a crescer debaixo da terra e as suas costas se encurvaram, empurrando o chão.

— Foi assim que nasceu a montanha, conclui Tuahir.

Muidinga se embala, entorpecido. À medida que aquele fingimento avança ele já não sabe se o que ali se está passando não está ser tirado do livro, como folha rasgada da própria realidade. Fecha os olhos e vê Tuahir, aliás Taímo, se banhando num lago de sura. O velho sai do charco, escorrendo vinho pelas pernas. Se admira:

— Por que estás tão reduzido, filho?

— É que trago um desgosto de mulher.

— Isso não tem remédio, filho. Eu sei muito bem. Porque eu vivi num tempo em que o amor era uma coisa perigosa. Tu vives num tempo em que o amor é uma coisa estúpida.

E o velho desenrola seu pensamento. Nosso mundo de então era feito de miséria e fome. O que valia o amor, a amizade? O único valor, nos actuais dias, é sobreviver. Muidinga, aliás Kindzu, queria saber da felicidade; os outros queriam saber de comida. Ele procurava bondade; os outros só queriam saber quanta vantagem podiam tirar. À medida que Tuahir fala o miúdo se sente minguar, pequeno, quase sem nenhuma idade. Ele carecia de sua paterna mão. Porém, ao invés de ajudar, o velho lhe pede apoio. Estava com frio, solicitou agasalho. O miúdo lhe cobre com seu corpo. E sente pena de si. Como é que ele, tão menino, tão recém-recente, andava cuidando de seu pai? Como é que a sua mão, do tamanho de um beijo, protegia um homem tão volumoso? E lhe cresce uma grande raiva para com seu pai. Afinal, nunca ele lhe cobrira dos frios, nunca ele o empurrara para fora da tristeza. Ou seria que apenas depois da infância ele poderia ser criança?

— Tio, vamos parar esta brincadeira. Já sinto a cabeça me andar à volta.

— Tio? Então, Kindzu, agora você me chama de tio? Será que não respeita seu falecido pai?

— Não, pai. É que...

E Muidinga se atrapalha em totais confusões. É como se qualquer coisa, lá fundo de seu peito, se estivesse rasgando. E se apercebe que, em seu rosto, desliza o frio das lágrimas. Depois, sente a mão de seu pai lhe afagando a cabeça. Olha o seu rosto e vê que, afinal, seus olhos eram sábios. Foi como se, repente, toda a bondade dele ficasse visível, redonda.

— Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de ti?

— Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e dizer: olha este meu coração que nunca cresceu!

Seu pai estava ali, grande, sem mentira. Pela primeira vez alguém lhe dava abrigo. O mundo se estreava, já não havia escuro, não havia frio. O autocarro incendiado, Junhito maldiçoado, os corpos carbonizados, as mãos do pastor Afonso sangrando, tudo isso ficava longe. De repente, o pai se desata a rir. Por um instante, Muidinga receia que o tio deseje quebrar aquele fingimento, cansado da ilusão. Mas não, o velho prossegue a brincriação. E começa a palhaçar, cambalhotando, para lhe fazer soltar gargalhadas. Cada riso do sobrinho lhe dá o gozo de se sentir pai. Cada disparate de Tuahir traz a Muidinga a doçura de ser filho.

— Eu só sei brincar, Kindzu. Só te posso ensinar a ficares sempre criança.

— Sim, pai. Me ensine.

E eles se rebolam, em folgações mútuas, alegres tresloucuras. Até que exausto, Muidinga se deita no banco do machimbombo. Fazendo de almofada, se amontoam os cadernos de Kindzu. Antes de adormecer o miúdo passa a mão por aquelas folhas, em cúmplice afago.
Mia Couto, "Terra Sonâmbula"

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