§ único — Entende-se por verão, no Rio de Janeiro, o período que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com breves intervalos para reciclagem, e uma faixa especial, mais badalada, entre 21 de dezembro e 20 de março.
Artigo 2º As maneiras lícitas de exercer o direito outorgado no artigo anterior são as mais variadas e imagináveis, ficando contudo na dependência de dois fatores:
a) o grau de recursos financeiros do morador ou da pessoa física ou jurídica disposta a sustentar a curtição;
b) o grau de imaginação criadora, ativa e defensiva, do morador ou de acompanhante que lhe supra a deficiência desse atributo.
Artigo 3º Os indivíduos que não se mostrarem habilitados, na forma deste Ato Institucional, a curtir o verão carioca, devem limitar-se a suportá-lo com uma combinação de heroísmo e espírito filosófico, abstendo-se de promover agitação que perturbe o exercício pacífico dos demais cidadãos, gerando aumento imoderado da temperatura social, que já é elevada no período.
Artigo 4º É lícito à parcela da população em situação financeira aprazível, própria ou de favor, curtir o verão carioca in loco, na forma que lhe convier, ou à distância, em território nacional ou estrangeiro, pelo tempo que julgar suficiente, inclusive acumulando verões.
Artigo 5º A indústria privada cuidará de produzir a maior quantidade possível de refrigerantes para atender à demanda sazonal, devendo a comercialização dos produtos obedecer a tabelamento rigoroso, sujeito a imponderáveis, que na prática justifiquem e mesmo imponham o galope dos preços acima e além da tabela afixada em lugares bem visíveis, como o alto da encosta do Pão de Açúcar, a plataforma do monumento a Cristo Redentor no Corcovado e as torres cilíndricas de São Conrado.
§ único — Em hipótese alguma o preço do chope excederá o valor de um salário mínimo.
Artigo 6º A praia, como a praça, é do povo, isto é, de todos, mas alguns todos têm direito a ocupar superfície maior e preferencial na areia, para se dedicarem a jogos esportivos, tanto em partidas isoladas como em campeonatos, devendo os banhistas-de-sol, que não são propriamente banhistas, e por isso ocupam áreas de favor, perder o mau costume de treinar para alvo de bolas, raquetes e petecas.
Artigo 7º O acesso de banhistas propriamente ditos ao elemento líquido não deve de maneira alguma pôr em risco a liberdade de movimentação e a segurança individual dos surfistas, que carecem de proteção contra a tendência expansivista dos primeiros.
Artigo 8º O acesso de animais ditos irracionais à praia é estritamente proibido, mas tolerado conforme a hora, a praia, a qualidade do animal e a qualidade do dono.
Artigo 9º O uso de maiô natural, de pele humana feminina, será desenvolvido gradativamente em cada verão, podendo estender-se a prática à veste congênere de pele humana masculina que não ocasione atentado gritante à estética das formas.
Artigo 10º Os turistas estrangeiros gozarão de facilidades especiais para curtição do verão carioca, destacando-se entre elas o direito de se recusarem a ser assaltados por marginais de décima categoria, cuja permanência na proximidade de hotéis, boates e clubes fica absolutamente vedada no decorrer da estação.
Artigo 11º Os preços de utilidades e souvenirs destinados a consumo de turistas estrangeiros sofrerão desconto especial de 35% sobre a majoração também especial de 500% em todas as compras que efetuarem.
§ único — No caso de táxis, o desconto será apenas de 5% sobre a majoração inultrapassável de 3.000%, conciliando-se dest'arte o justo interesse da categoria profissional com a necessidade de desestimular o consumo de derivados de petróleo.
Artigo 12º Os turistas nacionais terão liberdade de efetuar os programas que bem entenderem, uma vez que não prejudiquem a movimentação dos turistas estrangeiros e consequente captação de dólares em proveito da economia nacional.
§ único — As diárias de hotel e o aluguel de apartamentos e quartos por temporada, para uso de turistas nacionais, serão fixados ao preço de mercado, à base da inflação prevista para 1998.
Artigo 13º O sorvete de frutas naturais e o sorvete sintético terão idêntico sabor e aparência, verificados em testes no Instituto de Proteção do Consumidor em Tempo de Verão, de tal sorte que o segundo possa substituir vantajosamente o primeiro, sem que o consumidor dê por isto, poupando-se as frutas para exportação e consequente melhoria de nossa balança comercial.
Artigo 14º Tendo em vista que só à última hora, quando o calor se torna incontrolável, é que os novos casais se lembram de adquirir aparelhos de refrigeração e de circulação de ar, já então sem tempo para que as empresas produtoras elaborem corretamente seus planos de produção, ficam ditas empresas autorizadas a fornecer ao consumidor simulacros artisticamente acabados daqueles aparelhos, que despertem suave impressão visual de refrigério no interior das habitações mais escaldantes.
§ único — Também se faculta às mesmas empresas o fornecimento de pedaços isolados de aparelhos, a serem gradativamente montados pelos consumidores, em verões sucessivos, com a necessária assistência técnica do produtor ou do revendedor.
Artigo 15º O bom humor da população carioca de todas as camadas e subcamadas sociais, como de costume, se manterá invariavelmente alto e chispante de anedotas, piadas, trocadilhos, subentendidos, apelidos e a-propósitos, de modo a fazer do verão uma festa integral, ainda que se verifiquem imensas precipitações fluviais, com desabamentos, esmagamentos, afogamentos e outras calamidades.
Artigo 16º O uso de expressões como “puxa, que calor”, “calorão bravo este, hein?”, “amanhã ainda vai ser mais quente”, “isto aqui é a verdadeira fornalha de Pedro Botelho”, “vá fazer calor assim nos quintos dos infernos” será considerado completamente fora de moda, e declarados caretas aqueles que as pronunciarem, e, por outro lado, se revestirão de absoluta novidade e interesse expressões no estilo de “nunca vi uma temperatura tão deliciosa”, “os deuses não querem outra coisa no Olimpo”, “até que o calor está bastante relativo, como deve ser daqui por diante” e "não há nada como um verão depois de outro para refrescar o anterior”.
Artigo 17º Durante o subperíodo carnavalesco, os raios solares farão a fineza de aumentar consideravelmente de intensidade, para incutir mais fogo e ardor nas escolas de samba credenciadas pela Riotur, enfatizando assim a importância social e oficial do calor como fonte geradora de emoção coletiva.
Artigo 18º A população das favelas, em face do privilégio que desfruta de viver em altura muito superior à ocupada pelos demais habitantes do Rio de Janeiro, com refrigeração natural gratuita, fica dispensada de recorrer aos meios habituais de defesa contra o calor, a começar pelas piscinas que se reservam para o grosso da população menos favorecida topograficamente.
Artigo 19º O número de incêndios propositais ou misteriosos não poderá atingir nível exorbitante, tendo em vista a necessidade de reserva do volume de água disponível para acudir aos sinistros que ocorrem normalmente nesta quadra do ano e que, ao assumirem proporções avantajadas, constituem atração suplementar no painel de eventos de verão.
Artigo 20º Os casos de desidratação seguidos de óbito, resultantes do excesso de calor em contraste com a ausência de reservas orgânicas, notadamente em crianças subnutridas, devem figurar nas estatísticas demográficas em coluna sob a rubrica “Força do Destino”.
Carlos Drummond de Andrade (Status, janeiro de 1978)

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