segunda-feira, dezembro 22

Ato institucional do verão carioca

Artigo 1º Todos os moradores da cidade do Rio de Janeiro, ricos ou pobres, de qualquer raça, religião, profissão ou falta de profissão, convicção ou ausência de convicção política, têm igual direito a curtir as excelências do verão, também chamada estação calmosa, embora seja a mais trepidante das estações.

§ único — Entende-se por verão, no Rio de Janeiro, o período que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro, com breves intervalos para reciclagem, e uma faixa especial, mais badalada, entre 21 de dezembro e 20 de março.

Artigo 2º As maneiras lícitas de exercer o direito outorgado no artigo anterior são as mais variadas e imagináveis, ficando contudo na dependência de dois fatores:

a) o grau de recursos financeiros do morador ou da pessoa física ou jurídica disposta a sustentar a curtição;

b) o grau de imaginação criadora, ativa e defensiva, do morador ou de acompanhante que lhe supra a deficiência desse atributo.

Artigo 3º Os indivíduos que não se mostrarem habilitados, na forma deste Ato Institucional, a curtir o verão carioca, devem limitar-se a suportá-lo com uma combinação de heroísmo e espírito filosófico, abstendo-se de promover agitação que perturbe o exercício pacífico dos demais cidadãos, gerando aumento imoderado da temperatura social, que já é elevada no período.

Artigo 4º É lícito à parcela da população em situação financeira aprazível, própria ou de favor, curtir o verão carioca in loco, na forma que lhe convier, ou à distância, em território nacional ou estrangeiro, pelo tempo que julgar suficiente, inclusive acumulando verões.

Artigo 5º A indústria privada cuidará de produzir a maior quantidade possível de refrigerantes para atender à demanda sazonal, devendo a comercialização dos produtos obedecer a tabelamento rigoroso, sujeito a imponderáveis, que na prática justifiquem e mesmo imponham o galope dos preços acima e além da tabela afixada em lugares bem visíveis, como o alto da encosta do Pão de Açúcar, a plataforma do monumento a Cristo Redentor no Corcovado e as torres cilíndricas de São Conrado.

§ único — Em hipótese alguma o preço do chope excederá o valor de um salário mínimo.

Artigo 6º A praia, como a praça, é do povo, isto é, de todos, mas alguns todos têm direito a ocupar superfície maior e preferencial na areia, para se dedicarem a jogos esportivos, tanto em partidas isoladas como em campeonatos, devendo os banhistas-de-sol, que não são propriamente banhistas, e por isso ocupam áreas de favor, perder o mau costume de treinar para alvo de bolas, raquetes e petecas.

Artigo 7º O acesso de banhistas propriamente ditos ao elemento líquido não deve de maneira alguma pôr em risco a liberdade de movimentação e a segurança individual dos surfistas, que carecem de proteção contra a tendência expansivista dos primeiros.

Artigo 8º O acesso de animais ditos irracionais à praia é estritamente proibido, mas tolerado conforme a hora, a praia, a qualidade do animal e a qualidade do dono.

Artigo 9º O uso de maiô natural, de pele humana feminina, será desenvolvido gradativamente em cada verão, podendo estender-se a prática à veste congênere de pele humana masculina que não ocasione atentado gritante à estética das formas.

Artigo 10º Os turistas estrangeiros gozarão de facilidades especiais para curtição do verão carioca, destacando-se entre elas o direito de se recusarem a ser assaltados por marginais de décima categoria, cuja permanência na proximidade de hotéis, boates e clubes fica absolutamente vedada no decorrer da estação.

Artigo 11º Os preços de utilidades e souvenirs destinados a consumo de turistas estrangeiros sofrerão desconto especial de 35% sobre a majoração também especial de 500% em todas as compras que efetuarem.

§ único — No caso de táxis, o desconto será apenas de 5% sobre a majoração inultrapassável de 3.000%, conciliando-se dest'arte o justo interesse da categoria profissional com a necessidade de desestimular o consumo de derivados de petróleo.

Artigo 12º Os turistas nacionais terão liberdade de efetuar os programas que bem entenderem, uma vez que não prejudiquem a movimentação dos turistas estrangeiros e consequente captação de dólares em proveito da economia nacional.

§ único — As diárias de hotel e o aluguel de apartamentos e quartos por temporada, para uso de turistas nacionais, serão fixados ao preço de mercado, à base da inflação prevista para 1998.

Artigo 13º O sorvete de frutas naturais e o sorvete sintético terão idêntico sabor e aparência, verificados em testes no Instituto de Proteção do Consumidor em Tempo de Verão, de tal sorte que o segundo possa substituir vantajosamente o primeiro, sem que o consumidor dê por isto, poupando-se as frutas para exportação e consequente melhoria de nossa balança comercial.

Artigo 14º Tendo em vista que só à última hora, quando o calor se torna incontrolável, é que os novos casais se lembram de adquirir aparelhos de refrigeração e de circulação de ar, já então sem tempo para que as empresas produtoras elaborem corretamente seus planos de produção, ficam ditas empresas autorizadas a fornecer ao consumidor simulacros artisticamente acabados daqueles aparelhos, que despertem suave impressão visual de refrigério no interior das habitações mais escaldantes.

§ único — Também se faculta às mesmas empresas o fornecimento de pedaços isolados de aparelhos, a serem gradativamente montados pelos consumidores, em verões sucessivos, com a necessária assistência técnica do produtor ou do revendedor.

Artigo 15º O bom humor da população carioca de todas as camadas e subcamadas sociais, como de costume, se manterá invariavelmente alto e chispante de anedotas, piadas, trocadilhos, subentendidos, apelidos e a-propósitos, de modo a fazer do verão uma festa integral, ainda que se verifiquem imensas precipitações fluviais, com desabamentos, esmagamentos, afogamentos e outras calamidades.

Artigo 16º O uso de expressões como “puxa, que calor”, “calorão bravo este, hein?”, “amanhã ainda vai ser mais quente”, “isto aqui é a verdadeira fornalha de Pedro Botelho”, “vá fazer calor assim nos quintos dos infernos” será considerado completamente fora de moda, e declarados caretas aqueles que as pronunciarem, e, por outro lado, se revestirão de absoluta novidade e interesse expressões no estilo de “nunca vi uma temperatura tão deliciosa”, “os deuses não querem outra coisa no Olimpo”, “até que o calor está bastante relativo, como deve ser daqui por diante” e "não há nada como um verão depois de outro para refrescar o anterior”.

Artigo 17º Durante o subperíodo carnavalesco, os raios solares farão a fineza de aumentar consideravelmente de intensidade, para incutir mais fogo e ardor nas escolas de samba credenciadas pela Riotur, enfatizando assim a importância social e oficial do calor como fonte geradora de emoção coletiva.

Artigo 18º A população das favelas, em face do privilégio que desfruta de viver em altura muito superior à ocupada pelos demais habitantes do Rio de Janeiro, com refrigeração natural gratuita, fica dispensada de recorrer aos meios habituais de defesa contra o calor, a começar pelas piscinas que se reservam para o grosso da população menos favorecida topograficamente.

Artigo 19º O número de incêndios propositais ou misteriosos não poderá atingir nível exorbitante, tendo em vista a necessidade de reserva do volume de água disponível para acudir aos sinistros que ocorrem normalmente nesta quadra do ano e que, ao assumirem proporções avantajadas, constituem atração suplementar no painel de eventos de verão.

Artigo 20º Os casos de desidratação seguidos de óbito, resultantes do excesso de calor em contraste com a ausência de reservas orgânicas, notadamente em crianças subnutridas, devem figurar nas estatísticas demográficas em coluna sob a rubrica “Força do Destino”.
Carlos Drummond de Andrade (Status, janeiro de 1978)

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