quinta-feira, janeiro 7

Assim começa o livro ...

Pinheiros escuros debruçavam-se, carrancudos, dos dois lados do rio congelado. Um vento que soprara havia pouco tinha despido as árvores do manto de geada branca que as cobria, e elas pareciam se inclinar na direção umas das outras, negras e ameaçadoras, na luz mortiça. Um silêncio imenso reinava sobre a terra. A terra em si era uma desolação, sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito nem sequer era triste. Havia um quê de riso nele, mas era um riso mais terrível do que qualquer tristeza — um riso tão soturno quanto o sorriso da Esfinge, um riso tão frio quanto a geada, e que tinha a fúria da infalibilidade. Era a sabedoria imperiosa e incomunicável da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver. Era o mundo selvagem e gelado do Norte, a impiedosa floresta boreal. No entanto, havia vida, sim, espalhada pela terra, desafiadora.

Ao longo do rio congelado, vinha avançando com esforço um grupo de cães parecidos com lobos. A espessa pelagem que os revestia estava coberta de geada. As baforadas que eles soltavam pela boca congelavam no ar, formando línguas de vapor que se precipitavam nos pelos de seus corpos, transformando-se em cristais de gelo. Eles usavam arreios de couro e estavam presos por correias de couro a um trenó que vinha deslizando mais atrás. O trenó não tinha esquis. Era feito da casca resistente do vidoeiro e toda a sua superfície se apoiava na neve. A frente do trenó virava para cima, enroscando-se como um pergaminho, de modo a empurrar para baixo o monte de neve macia que se encapelava feito onda na dianteira do trenó. Em cima dele, amarrada com firmeza, encontrava-se uma caixa retangular, comprida e estreita. Havia outras coisas no trenó — cobertores, um machado, uma cafeteira e uma frigideira; mas o que mais chamava atenção e ocupava a maior parte do espaço era a caixa retangular, comprida e estreita. 

Na frente dos cachorros, com sapatos de neve largos, avançava com esforço um homem. Atrás do trenó, avan çava com esforço um segundo homem. No trenó, dentro da caixa, havia um terceiro homem cujos esforços haviam cessado, um homem que tinha sido dominado e castigado pelo mundo selvagem até nunca mais poder se mexer nem lutar. Não é do feitio do gélido mundo selvagem gostar de movimento. A vida é uma ofensa para ele, porque vida é movimento; e o mundo selvagem sempre almeja destruir o movimento. Congela a água a fim de impedi-la de correr para o mar; suga a seiva das árvores até que elas congelem lá no fundo do seu vigoroso âmago; e, de modo mais feroz e terrível ainda, o mundo selvagem maltrata e esmaga o homem até subjugá-lo — o homem, que é a forma de vida mais inquieta que existe, sempre em revolta contra o desígnio de que todo movimento deve, no fim, chegar à cessação do movimento.

No entanto, à frente e atrás do trenó, destemidos e indômitos, avançavam os dois homens que ainda não tinham morrido. Seus corpos estavam vestidos de peles e de couro curtido e macio. Cílios, bochechas e lábios estavam tão cobertos com os cristais formados pelas suas exalações congeladas que era impossível discernir seus rostos. Isso fazia suas caras parecerem máscaras fantasmagóricas, e eles agentes funerários num mundo espectral, a acompanhar o enterro de algum fantasma. Mas debaixo daquilo tudo eram homens penetrando na terra da desolação, da zombaria e do silêncio, ínfimos aventureiros empenhados numa aventura colossal, lançando-se contra o poder de um mundo tão remoto, estranho e inanimado quanto as profundezas do espaço.

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