quarta-feira, janeiro 20

Os primeiros livros

Começando a ler 

fleurdulys:

The Library - Elizabeth Shippen Green
1905
O livro entrou muito tarde na minha vida. Comecei pelas histórias em quadrinhos, com as quais fui alfabetizado. Eu era louco por histórias em quadrinhos, e achava os livros muito chatos, porque não tinham figuras. Eu queria ver as figuras, não sabia ler. Lembro de um sujeito que foi à minha casa e levou uma edição do Tarzan, escrito pelo Edgar Rice Burroughs. Resolvi ler e descobri uma coisa fascinante: era muito melhor do que qualquer gibi do Tarzan, do que qualquer filme do Tarzan, porque a história se passava dentro da minha cabeça. Eu fiz a transição – abandonei os quadrinhos e passei para os livros, ali pelos dez anos. Foi a curiosidade que me levou a abrir um livro. Nunca tive um adulto dizendo para eu ler. Então li às cegas, durante muitos anos. Li errado, como se diz. Embora não exista isso de ler errado, o importante é ler. Mas eu li Nietzsche com 13 anos. Não entendi nada, achava curiosíssimo aquilo. Por que aquilo era importante? Li Machado de Assis muito cedo: achei uma droga. Dom Casmurro, durante muitos anos, considerei um engodo. Aí fui ler mais tarde, com uma experiência de vida maior, e, claro, encontrei um grande autor. Mas li de forma desordenada.


História oral

Eu fui muito pobre. Ainda sou, mas hoje pelo menos consigo pagar as contas. Nasci numa fazenda. Então essa história de que tem que ter livros em casa para o cara enveredar para a literatura não é verdade. Meu pai tem terceiro ano do antigo primário, minha mãe tem ginasial incompleto. Mas há vantagens e desvantagens nisso. A primeira televisão que entrou na minha casa foi quando eu tinha 14 anos. Então, eu sou uma raridade: vi cinema antes de ver TV. Isso é impossível hoje em dia, qualquer criança nasce vendo TV. Eu vi cinema primeiro, e fiquei encantado com aquilo. Toda a mitologia das histórias para mim está ligada à coisa oral, em que as pessoas se reuniam no final da noite e comentavam as histórias e os causos. Como eu era muito fã desse tipo de conversa, ficava perto dos adultos, então comecei a aprender técnicas narrativas inconscientemente. Meu pai, por exemplo, é um grande contador de histórias. Ele contava a mesma história meses seguidos. Só que cada vez que contava o causo, ele se modificava. Ele usava técnicas que aprendi ouvindo. Quando vou escrever, automaticamente penso no que pode e no que não pode ser revelado. Isso que você aprende depois nos grandes livros, sobre linguagem e tal.

Primeiros livros

Nunca vou esquecer: mentia minha idade para poder pegar livros proibidos. A biblioteca de Amparo (cidade a 140 quilômetros da capital São Paulo, onde nasceu o escritor), que na época tinha um acervo de uns 13 mil exemplares, era uma biblioteca bacana. Não sei como ela está hoje, mas para mim aquilo foi fundamental, porque eu não tinha dinheiro para comprar livros. E queria e precisava ler. Desesperadamente. Então, fui aquele rato de biblioteca. Houve momentos em que o bibliotecário me orientava, indicando autores e tal, mas na maior parte das vezes eu chegava lá e pensava: “isso aqui é um supermercado, posso ler tudo o que quiser”. Entrei pela primeira vez nessa biblioteca quando tinha onze anos. Outro dia eles me mandaram a minha ficha. Pude ver o que eu andava lendo naqueles anos. Pude ver que eu era um leitor onívoro, porque lia filosofia, poesia, prosa, policial, não tinha uma linha de leitura. Não era orientado para um só lado da literatura. Acho que isso me tornou um leitor sem preconceitos, um leitor que, para saber se um livro era bom ou não, tinha que ler. Houve um momento em que descobri Raymond Chandler, e aí li toda sua obra. Por sorte, tinha lá na biblioteca de Amparo. Descobri autores policiais e fiquei anos lendo romance policial. Lembro também quando li Moby Dick — eu estava na escola e torcia para a aula terminar logo. Quando todo mundo ia jogar bola, eu ia para casa terminar de ler Moby Dick. Estava encantado com aquilo. Então, há momentos e livros que foram muito marcantes na minha trajetória.

Biblioteca em casa

Chegou um momento na minha vida em que eu tinha quatro mil livros, o que não é muito. O problema é que, quando ia procurar um livro, dava tanto trabalho que eu preferia ir comprar outro. Porque eu não ia achar naquele manancial. Morei num apartamento em que a coisa ficou tão feia, que o Beto Brant foi lá e disse: “os livros vão acabar botando você para fora”. Eu tinha livros em tudo que era canto, adoro isso, livros na sala, na cozinha. Gosto da presença do livro. No meu quarto, hoje, tenho várias estantes. Essa conversa mole de e-book não pega em mim. Vou morrer antes, então não tem problema. Fiquei feliz tal como os livros existem hoje. Um formato invencível.
Leia mais Um Escritor na Biblioteca: Marçal Aquino

Nenhum comentário:

Postar um comentário