sábado, janeiro 23

Assim começa o livro...

Na segunda metade dos anos 60, viajei com freqüência da Inglaterra à Bélgica, em parte por motivo de estudos, em parte por outras razões que a mim mesmo não me ficaram inteiramente claras, às vezes apenas por um dia ou dois, às vezes por várias semanas. Em uma dessas excursões belgas, que, assim me parecia, sempre me levavam a terras muito distantes, cheguei, em um esplendoroso dia de início de verão, a Antuérpia, cidade que até então eu só conhecia de nome. Já na chegada, enquanto o trem avançava lentamente sobre o viaduto com seus curiosos torreões pontiagudos de ambos os lados e entrava no pátio escuro da estação, fui tomado por uma sensação de mal-estar que não me abandonou mais durante todo o tempo daquela minha visita à Bélgica. Lembro ainda os passos incertos com que caminhei de cima para baixo no centro da cidade, ao longo da Jerusalem- straat, da Nachtegaalstraat, da Pelikaanstraat, da Paradijsstraat, da Immerseelstraat e de muitas outras ruas e vielas, até que finalmente, atormentado por dores de cabeça e maus pensamentos, busquei refúgio no zoológico situado na Astridplein, logo ao ladoda estação central. Lá, até que me sentisse um pouco melhor, sentei-me em um banco à meia-sombra, junto a um viveiro de pássaros no qual esvoaçavam inúmeros tentilhões e pintassilgos de plumagem colorida. Ao cair da noite, caminhei pelo parque e acabei enfim por dar ainda uma olhada no Nocturama, aberto havia apenas alguns meses. Levou algum tempo até que meus olhos se acostumassem à penumbra artificial e eu pudesse distinguir os diversos animais que levavam suas vidas sombrias atrás do vidro, à luz de uma lua pálida. Não me lembro mais ao certo quais animais vi então no Nocturama de Antuérpia. Provavelmente morcegos e gerbos do Egito ou do deserto de Góbi, espécimes nativos de porcos-espinhos, bufos e corujas, gambás australianos, martas, arganazes e lêmures, que lá pulavam de um galho a outro, disparavam de lá para cá no solo de areia amarelo-cinzento ou desapareciam em uma touceira de bambu. Presente à memória só me restou mesmo o mão-pelada, que eu observei longamente enquanto ele, sentado com expressão séria ao lado de um riacho, lavava sem descanso o mesmo pedaço demaçã, como se esperasse, mediante tal operação já muito além de todo o escrúpulo razoável, fugir do mundo ilusório no qual fora parar, por assim dizer, à sua revelia. De resto, dos animais mantidos no Nocturama só me ficou na lembrança que alguns deles tinham olhos admiravelmente grandes e aquele olhar fixo e inquisitivo encontrado em certos pintores e filósofos que, por meio da pura intuição e do pensamento puro, tentam penetrar a escuridão que nos cerca. Aliás, passou-me então pela cabeça, creio, esta pergunta: se a luz elétrica era acesa para os habitantes do Nocturama quando a noite de verdade caía e o zoológico era fechado ao público, para que quando o dia raiasse sobre aquele seu universo em miniatura, de ponta-cabeça, eles pudessem adormecer com certo grau de tranqüilidade. No curso dos anos, as imagens do interior do Nocturama confundiram-se com aquelas que guardei da chamada Salle des pas perdus na Centraal Station de Antuérpia. Se tento hoje imaginar essa sala de espera, vejo imediatamente o Nocturama, e se penso no Nocturama então me vem à cabeça a sala de espera, provavelmente porque, naquela tarde, quando saí do zoológico fui direto à estação, ou melhor, permaneci antes algum tempo na praça defronte dela, o olhar erguido para a fachada daquele edifício extravagante que de manhã, ao chegar, eu mal havia notado. Agora, porém, eu percebia o quanto o edifício erguido sob o patrocínio de Leopoldo II excedia a sua pura função utilitária, e me admirei com o garoto negro inteiramente coberto de azinhavre, que, faz agora um século, está lá no alto com o seu dromedário sobre uma torre de sacada à esquerda da fachada da estação, um monumento à fauna e aos nativos africanos, sozinho contra o céu flamengo. Quando entrei no átrio da Centraal Station, com sua cúpula abobadada de sessenta metros de altura, o meu primeiro pensamento, suscitado talvez pela visita ao jardim zoológico e pela imagem do dromedário, foi que ali, naquele vestíbulo magnífico, embora então bastante decadente, devia ter havido jaulas para leões e leopardos embutidas nos nichos de mármore e aquários para tubarões, polvos e crocodilos, assim como, inversamente, em alguns jardins zoológicos é possível viajar com um trenzinho aos recantos mais afastados da Terra.

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