quinta-feira, janeiro 28

Quando os livros foram à guerra

Durante a Segunda Guerra Mundial, nos EUA, foi estabelecido um comitê de editores e um serviço especial do Departamento de Guerra e da Marinha, a Armed Services Editions (ASEs), para escolher, editar e enviar livros aos mais de dez milhões de soldados norte-americanos no front da guerra entre 1942 e 1945.

Foram editados nada menos que 1.322 diferentes títulos no total, a uma média de cerca de 30 diferentes obras por mês com tiragens, cada um, de pelo menos 65 mil exemplares. Eram livros impressos em um formato que cabia no bolso do uniforme militar, o que permitia aos soldados carregar as obras e ler inclusive em situações extremas, como dentro de trincheiras ou durante o descanso dos combates. Os livros chegaram até as mais distantes e isoladas ilhas do Pacífico, onde foram travadas batalhas com dezenas de milhares de mortos entre EUA e Japão. Também fizeram companhia aos soldados no Dia D, o desembarque na Normandia.

Soldado americano lendo uma edição da Armed
Services Edition de 'A tree grows in Brooklyn' 
Estes livros não apenas foram a principal, muitas vezes, única forma de lazer ou distração de mais de 10 milhões de soldados norte-americanos, da Europa ao Pacífico, como passaram a ser imensamente apreciados pelos soldados. Em When books went to War - The stories that helped us win World War II, (Mariner Books), Molly Guptill Manning conta um sem número de histórias comoventes envolvendo livros e soldados, desde relatos de obras que fizeram companhia aos combates em períodos de extrema angústia e solidão, livros que contribuíram para o ânimo da recuperação de feridos em hospitais, livros encontrados dentro dos bolsos do uniforme de soldados mortos em combate. Histórias de guerra, livros e leituras.

Ao final da guerra, os livros contribuíram para formar um público leitor. Jovens e adultos que não tinham o hábito da leitura, muitos que jamais haviam pensado em ler um romance, descobriram a leitura e os livros e passaram a ler e a contar com os livros em seu cotidiano, disseminando o hábito para a família e o entorno.

Em relação aos autores, que recebiam cartas dos leitores no front, carregadas de emoção, as edições de centenas de milhares de exemplares criaram diversos best-sellers e autores consagrados. Para os editores, mostrou de forma precisa que edições econômicas e acessíveis a um vasto público eram um ótimo negócio e, com isso, as edições de guerra contribuíram para fortalecer um mercado em massa de livros baratos nos EUA no pós-guerra. Outras coleções, além das Pocket Books, se popularizaram.

O ASEs foi formado por um grupo de editores que decidia o que publicar e vendia os livros ao governo norte-americano por um preço de custo de cerca de 1/5 do preço de um livro paperback tipo Penguin. Entre as editoras representadas estavam a Random House, W.W. Norton, Doubleday, além do editor da Publishers Weekly.

A seleção de livros atendia ao objetivo de oferecer livros os mais variados, de literatura à história, de esporte a dicionários, de livros de administração a manuais técnicos. Entre os primeiros livros selecionados e distribuídos, havia autores como Charles Dickens, John Steinbeck, Antoine de Sant-Exupéry, Howard Fast, Graham Greene, Herman Melville, Voltaire, Mark Twain, Jack London e Joseph Conrad.

Esta campanha do governo e editores tinha ainda um objetivo claro de disseminar ideais identificados à causa dos Aliados, a democracia, o liberalismo, pelos quais se lutava, em oposição ao totalitarismo nazista. Desde a queima de livros de autores democratas, de esquerda e judeus, no ano de ascensão do nazismo ao poder, em 1933, os nazistas destruíram (já durante a guerra) de forma deliberada bibliotecas e livros na Europa. Era preciso, portanto, se opor à barbárie em uma verdadeira guerra de livros.

A ação da agência procurava mostrar, portanto, que era uma guerra de valores e visões de mundo antagônicas e também difundir estas ideais dos EUA e dos Aliados aos próprios soldados. Ao final da conflito, também houve uma maciça distribuição de livros, com traduções, às tropas aliadas.

O livro conta ainda outras histórias, como a da grande campanha de doação de livros em 1942 pela National Defense Book Campaign (NDBC), depois Victory Book Campaign (VBC), que pretendia arrecadar dez milhões de exemplares doados espontaneamente e efetivou uma ampla campanha pública, com postos de doação e remessa aos soldados, além das discussões sobre escolha de títulos, tentativas de censura e as questões industriais ligadas a estas edições.

A Armed Services Editions funcionou até 1947. No final da guerra, o governo dos EUA criou um programa em massa para subsidiar formação educacional e profissional para os soldados que voltavam da guerra e tinham que iniciar uma vida civil. Para a autora, o contato com os livros da ASEs contribuiu para consolidar a ponte rumo à reconstrução do país e da vida pessoal de cada ex-combatente. Segundo ela, ao voltar para casa, muitos haviam lido Platão, Shakespeare, Dickens, livros de história, de negócios, matemática, ciência, jornalismo e direito (com, inclusive, uma seleção de títulos voltada para profissões).

Os egressos da guerra entenderam que valia a pena devotar tempo e energia à leitura e ao estudo. Afinal, escreve Manning, se eles liam dentro de uma trincheira em meio a bombardeiros, certamente teriam disponibilidade de ler para a formação educacional e profissional no pós-guerra e se engajariam em estudos formais.

When books came to war, para além de um fascinante capítulo de história cultural e social da guerra, mostra o valor central que os livros e a leitura podem ter em uma sociedade, mesmo em uma situação extrema de guerra e na reconstrução civil posterior. Manning estima que 123 milhões (cento e vinte e três milhões!) de exemplares foram impressos pela ASEs, além de 18 milhões via doação, todos enviados aos soldados. Mais, portanto, do que o estimados 100 milhões de livros destruídos deliberadamente pelo nazismo.

Roney Cytrynowicz

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