A Nilma Lacerda, que, ao falar da importância do mediador na alfabetização, tomou poeticamente como exemplo Graciliano Ramos
Em “Infância”, como não poderia deixar de ser, Graciliano Ramos conta como foi sua vida de menino, o que se deu na passagem do século XIX para o XX. Não só pelas mudanças tecnológicas e da organização social observadas entre aquele período e o atual — e mesmo entre aquele e a década de 1960, quando fui criança —, o livro nos leva a uma infância muito diferente da que conhecemos hoje. Graciliano nasceu e cresceu no Nordeste, região que já era sofrida ou ainda mais sofrida do que agora. Seca, pobreza, injustiça, pouco acesso a quase tudo — livros então — faziam parte do dia a dia do garoto que viria a ser um de nossos maiores escritores.
Graciliano devota particular atenção a sua luta para se alfabetizar. A gente talvez seja inclinada a achar que seus pendores (de futuro escritor) tornariam fácil a tarefa de dominar o beabá, mas, ó, doce ilusão, o que se vê em seu relato é um sofrimento só. Escolas precárias (um explicador, no mais das vezes, que se encarregava de ensinar em casa, juntando uns dois ou três meninos) e/ou uma pedagogia improvisada por algum parente. No caso de Graciliano, o pai tentou, e o “pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre”. Esse desastre é apontado do seguinte modo: “Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me.” Como esse menino ferido em sua autoestima deu a volta na frustração e virou quem virou não está nas páginas do livro, o que está lá é um olhar que se depara com as velhas dificuldades e sobre elas reflete, sem deixar de rir de tudo.
Logo depois de o pai desistir das aulas, Graciliano não se fez de rogado e pediu a ajuda de uma irmã. Chega-lhe então à mão o seguinte texto: “A preguiça é a chave da pobreza — Quem não ouve conselhos raras vezes acerta — Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” E o menino fica intrigado: quem seria Terteão? Quem? A irmã não sabia, nunca ouvira falar dele. Graciliano, seco, ri de si, e eu rio dele, mas, sejamos sinceros: como é duro aprender, em particular o português, língua estruturada em gramática tão árida.
Graciliano ilustra outras “alfabetizações” pelas quais passou ao longo da infância. Uma delas foi a de aprender o que, afinal, é o homem. E aprender o que é o homem é conviver com fronteiras muito tênues, pois ninguém é uma coisa só. Falo isso do alto de meus mais de cinquenta anos, quando já vi demais, mas um menino aprender, melhor, viver as contradições inerentes ao ser humano é duro e muitas vezes nem é notado. Graciliano notou e notou muito bem.
O melhor exemplo de sua acuidade está no capítulo “Fernando”, que começa assim: “É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso.” A partir daí, Graciliano conta que, antes de ter contato com Fernando, já conhecia a sua fama e “se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual”. Aparentado com coronéis, verdadeiros donos do mundo, Fernando fazia e acontecia, sem que nenhuma de suas atitudes violentas fosse punida, haja vista que a justiça não funcionava ali ou, por outra, a justiça se confundia com a vontade dos latifundiários e seus apaniguados. Graciliano cresceu temendo esse pau-mandado dos poderosos até presenciar uma cena no comércio que seu pai mantinha. Os empregados tiravam mercadorias de caixas de madeiras e, distraidamente, deixaram uma tábua com pregos solta no chão. Fernando, que matava o tempo na loja, se levantou, pegou um martelo e entortou os pregos, mostrando-se preocupado com a possibilidade de uma criança ferir-se com eles. As certezas de Graciliano ruíram, e o escritor termina o capítulo assim: “Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças.”
A lição aprendida por Graciliano, feito os devidos ajustes, está nos faltando na atual conjuntura, período no qual achamos que o outro é esse Fernando, até mesmo aquele histórico Nero, um monstro incurável.
Alexandre Brandão
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