Stanford Kay |
Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha expressão perdida e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia, e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha… amado? me apaixonado? Não sei. O livro me deixara transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me perturbado, desnorteado. E talvez, mesmo hoje, saber apenas isso seja realmente o bastante.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia “gostado” e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século 19. A bibliotecária fez questão de dizer: reconhecido no mundo todo, consagrado e visto como um gigante da literatura mundial. À medida que a ouvia, algo em mim me alertava, não sabia bem o quê. Instintivamente, abracei o livro, como se estivesse prestes a perdê-lo. Um estranho sentimento de invasão me dominava. Pensava em Arkadi Makarovitch, o protagonista de O adolescente, em Versilov e Katerina, os outros personagens, enquanto ela falava da fama e da importância de Fiodor Dostoiévski na literatura russa e universal. Hoje sei que uma batalha implacável iniciava em minha mente e sentimentos: eu lutava para não deixar o livro que eu havia amado ser sobrepujado pelo renome do seu autor. Resistia, pensando nas passagens preferidas, nas frases e imagens que haviam me impactado, no sofrimento e na esperança de Arcadi, na paixão de Versilov e Katerina. Eu mal sabia que essa é uma batalha antiga, e, de antemão, eterna. Atravessa décadas e séculos, ganha roupagens e trejeitos diferenciados, mas está sempre lá, levando tantas pessoas a escolherem, lerem e preferirem, não o livro, mas o escritor.
Quase por um instinto de defesa, perguntei à bibliotecária sobre os outros livros de Dostoiévski. Eu a acompanhei angustiada até uma estante, onde ela me apontou O idiota, Crime e castigo, Os Irmãos Karamazov, Os demônios, O jogador e tantos outros. Levei O idiota para casa, sem saber que carregava um romance que seria inesquecível para mim. No caminho, repetia o nome do autor, na intenção, vejo hoje, talvez de desmistificá-lo. Não queria a sua presença, quando eu abrisse as páginas de seu livro. Queria os personagens, queria o enredo, queria as emoções profundas que o mago russo sabia expressar tão bem, sim, com tanta magnitude, mas era a obra, não o autor, que eu desejava encontrar quando começasse a leitura. “Um grande escritor”, havia dito a bibliotecária, “muito profundo”, ela continuou, “renomado mundialmente”, sem perceber que impunha uma distância entre mim e o mago russo que eu não havia sentido até então. O meu encontro com Dostoiévski havia sido às escuras, por isso, talvez, nos tateamos e nos conhecemos verdadeiramente. E foi dessa forma, íntima, que ele havia se tornado grande para mim.
Claudia Lage
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