domingo, janeiro 24

Assim começa o livro...

Nunca vi nada assim: dois disquinhos de vidro presos na frente dos olhos dele com aros de arame. Ele é cego? Dava para entender se quisesse esconder olhos cegos. Mas ele não é cego. Os discos são escuros, parecem opacos do lado de fora, mas dá para enxergar através deles. Ele me conta que são uma invenção nova. "Protegem os olhos contra o brilho do sol", diz. "O senhor ia achar bom aqui no deserto. Evitam que fiquemos apertando os olhos o tempo todo. Dá menos dor de cabeça. Olhe." Toca de leve os cantos dos olhos. "Sem rugas." Recoloca os óculos. É verdade. Ele tem a pele de um jovem. "Na minha terra todo mundo usa isto."

Estamos sentados na melhor sala da hospedaria com uma garrafa entre nós e uma tigela de nozes. Não comentamos a razão para ele estar aqui. Ele serve aos poderes de emergência, isso basta. Em vez disso, falamos de caçadas. Ele me conta do último grande giro que deu, quando foram mortos milhares de veados, porcos, ursos, tantos que uma montanha de carcaças teve de ser abandonada a apodrecer ("O que foi uma pena"). Conto dos grandes bandos de gansos e patos que pousam no lago todo ano em suas migrações e dos métodos nativos de capturá-los. Sugiro levá-lo pescar uma noite num barco nativo. "É uma experiência que ninguém pode perder", digo; "o pescador leva tochas acesas e toca tambores em cima da água para atrair os peixes para as redes que colocou." Ele concorda balançando a cabeça. Conta da visita que fez a outro ponto da fronteira, onde as pessoas comem certas cobras como especialidades, e de um imenso antílope que matou.

Desloca-se tateando em meio à mobília estranha, mas não remove os óculos escuros. Retira-se cedo. Está aquartelado aqui na hospedaria porque é a melhor acomodação que a cidade oferece. Fiz os funcionários entenderem que se trata de uma visita importante. "O coronel Joll é da Terceira Divisão", disse-lhes. "A Terceira Divisão é a mais importante da Guarda Civil hoje em dia." Pelo menos é isso que ouvimos nos rumores que nos chegam atrasados da capital. O proprietário faz um gesto de concordância, as camareiras baixam a cabeça. "Ele tem de ficar bem impressionado conosco."

Levo meu colchonete para a plataforma, onde a brisa da noite alivia um pouco o calor. Nos tetos planos da cidade, dá para perceber ao luar outros vultos adormecidos. Debaixo das nogueiras da praça ainda escuto o murmúrio de conversas. No escuro, um cachimbo brilha como um vagalume, esmorece, brilha de novo. O verão está rodando devagar para o fim. Os pomares gemem sob sua carga. Não vou à capital desde que era moço.

Acordo antes do amanhecer, passo na ponta dos pés pelos soldados adormecidos, que estão se mexendo e suspirando, sonhando com mães e namoradas, desço a escada. No céu, milhares de estrelas olham para nós. Na verdade aqui estamos no teto do mundo. Acordar à noite, ao ar livre, é deslumbrante.

O sentinela no portão está sentado de pernas cruzadas e dorme profundamente, aninhando o mosquete. O quartinho do porteiro está fechado, sua carroça parada fora. Eu passo.

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