Nini Alaska |
quarta-feira, janeiro 31
Crónica aos zigue-zagues
Nós, homens, nunca saberemos o que é uma vida a nascer dentro do nosso corpo, numa intimidade absoluta. De certo modo tento compensar isso com o que escrevo. Vou parindo livros, mas os livros não me abraçam da mesma maneira
Numa entrevista a propósito deste último livro o jornalista perguntou-me
– Matou alguém em África?
respondi
– Passe à questão seguinte
e não percebeu que estava a dizer-lhe, com delicadeza, que isso não era uma questão que se pusesse, que mais não fosse por pudor, que mais não fosse por respeito humano. Eu nunca me atreveria a colocar essa questão a ninguém. Mas uma coisa posso contar, porque aliás foi publicada na Fotobiografia de Tereza Coelho a meu respeito e contada a ela por camaradas meus: Devo ter sido o único militar que, em Angola, torturou um bocado um Pide. Quando li o livro nem me recordava já do episódio, foram outros que o disseram, depois do dito Pide contar algumas histórias horríveis de África, e ao ler o que se passou vieram-me à cabeça os gritos do homem. Está lá escrito
(a Fotobiografia teve mais que uma edição)
na boca de, pelo menos, dois militares, mas claro que não vou falar dessa história. Também não me orgulho mas é verdade, e não foi feito às escondidas. Nunca fiz coisas às escondidas. Ainda hoje não percebo a intenção do jornalista nem quero pensar. Ganhou uma caixa? Ganhou um título? Mostraram--me, no facebook dele, essa pergunta e, por baixo da pergunta uma fotografia minha a tapar a cara, num gesto que faço muitas vezes quando estou cansado, nada tinha a ver com esse assunto, mas é lógico que quem tenha visto o retrato de imediato pensaria numa admissão de culpa da minha parte, o que é feio, muito feio. E aproveita para atacar o livro. Tem todo o direito de o atacar, sobretudo porque ficou furioso por eu ter dado antes da sua, uma entrevista a outra pessoa. Qual o mal? Uma entrevista não é uma notícia. Já dei tantas antes dessa sobre tantos romances e por conseguinte no lugar dele tanto me fazia, o que me ralava isso? Comigo, no lugar em que escrevo, estava o Prof. Gordon Love que assistiu a tudo, ele que vive em Portugal agora, não nos Estados Unidos, a traduzir o romance em apreço e a investigar a minha obra, e que por isso comigo, como assistiu às visitas de vários jornais estrangeiros e continuará a assistir nos próximos meses, trabalha aqui à minha frente e sinto- -me bem na sua companhia. Isto de que me ocupo é tão solitário, tão difícil, que o facto de haver uma pessoa por perto me faz bem. Um livro sempre foi para mim um penar profundo. Termino os dias exausto. E ver outra criatura a penar palavra de honra que ajuda. Quando estava a fazer quimioterapia a sala, bastante grande, encontrava-se cheia de companheiros de infortúnio, o que ajudava a sentir-me acompanhado. Auxiliaram--me tanto como a sua dignidade, a sua coragem, a solidariedade que me manifestaram sempre. Claro que aquilo não era muito agradável: era um horror. Mas fiquei a conhecer melhor os portugueses, sempre cheio de orgulho por ser um deles, sempre cheio de orgulho de estar rodeado de príncipes. Lembro-me de um homem numa situação terminal me dizer:
– Abrace-me que é o último abraço que me dá
e nunca esquecerei o seu sorriso, nunca esquecerei a sua cara quase encostada à minha. Morreu muito pouco tempo depois. Quer dizer: continua vivo em mim. Continuará para sempre vivo em mim, o sorriso não se vai apagar nunca. Trago-o comigo para me iluminar quando estiver muito escuro. Sempre que vou ao Serviço de Oncologia fazer revisões passo sempre pela sala da quimioterapia e cumprimento as pessoas uma a uma. Sinto-me entre irmãos junto deles. Sou um deles. Serei sempre um deles. Engraçado como o Prof. Gordon Love está cada vez mais português, o sotaque vai desaparecendo aos poucos, tem um calão e uma coleção de palavrões notável que melhora todos os dias, no caminho para aqui e daqui se vai enriquecendo porque faz o trajecto a pé. E vê ministros e deputados a dar com um pau dado que mora perto da Assembleia da República. Alto, ruivo, chegou magrinho e engorda que é uma beleza, já de barriga respeitável. De vez em quando fazemos uma pausa, tiramos ambos os óculos e conversamos um bocadinho antes de recomeçar, eu que ando a corrigir um livro que me está a dar um trabalhão sem fim. Olha, comecei este livro perto dele, o anterior também, chegou estava eu a acabar Para aquela que está sentada no escuro à minha espera, portanto agora conheço-o melhor, somos amigos oferece-me exemplares da Library of America, foi a Espanha com a família e trouxe-me de lá uma edição óptima da obra completa de Quevedo, autor que muito admiro, nascido no ano em que Camões morreu. Parafraseando o meu amigo George Steiner, em Tolstoi e Dostoievski, ou se é filho de Quevedo ou se é filho de Gôngora, e eu sou filho de Quevedo. Ou de Bashô, o grande poeta japonês do século XVII.
Uma tradução minha de um dos seus hai-ku:
Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
da criança morta.
Que extraordinário, não é? Mas voltando ao princípio e a
– Matou alguém em África?
O que me vem à cabeça é que me matei a mim: nunca mais tornei a ser o mesmo e julgo que isto se passa com toda a gente que lá esteve, é inevitável. Qualquer experiência radical nos muda, e toda a gente sabe isto, toda a gente passou por isto de uma maneira ou outra. Uma mulher, por exemplo, depois de ter um filho torna-se inevitavelmente uma nova pessoa. Freud falava muito da inveja do pénis, mas nunca falou da inveja, a maior parte das vezes inconsciente, que os homens têm de não poderem engravidar e parir, e quando fui médico senti isso tantas vezes nas psicoterapias, era tão óbvio. Nós, homens, nunca saberemos o que é uma vida a nascer dentro do nosso corpo, numa intimidade absoluta. De certo modo tento compensar isso com o que escrevo. Vou parindo livros, mas os livros não me abraçam da mesma maneira. Se fosse capaz de ter filhos em mim não escrevia, disso tenho a certeza. Só não sei como fazia para engravidar porque a ideia de um homem dentro de mim me repugna infinitamente, era lá capaz. Eu vi a minha mãe com todos os filhos lá dentro e ainda hoje a invejo. Vi-a dar de mamar a cinco galfarros e ela, que era muito bonita, ficava linda na sua comunhão absoluta. A única vez que a vi chorar foi quando um deles se perdeu dentro da sua barriga. E já contei que, quando o Pedro morreu, ela disse
– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto
e morreu também.
Quando foi do pai não disse
– Uma mulher não tem o direito de estar viva com o seu marido morto
ela que gostava muito dele e não voltou a ser a mesma pessoa nunca mais. Mas aguentou-se, que mais não fosse por nós. Quando eu estava com um dos cancros vi isso, tão claro, na cara dela. Teria morrido por mim também estava tão claramente escrito na sua cara, ela que não demonstrava os sentimentos e era corajosa e dura. Será que nós, homens, sabemos o que é o amor? Às vezes penso que sim, às vezes duvido. Auden: “diz-me a verdade acerca do amor”. Eu quero uma mulher que morra por mim. Como Modigliani teve. Há assim cabrões como ele, que têm essa sorte, Modigliani que morreu a dizer
– Querida, querida Itália
que não sei ao certo se é um País ou uma Mulher.
Susa Monteiro |
Numa entrevista a propósito deste último livro o jornalista perguntou-me
– Matou alguém em África?
respondi
– Passe à questão seguinte
e não percebeu que estava a dizer-lhe, com delicadeza, que isso não era uma questão que se pusesse, que mais não fosse por pudor, que mais não fosse por respeito humano. Eu nunca me atreveria a colocar essa questão a ninguém. Mas uma coisa posso contar, porque aliás foi publicada na Fotobiografia de Tereza Coelho a meu respeito e contada a ela por camaradas meus: Devo ter sido o único militar que, em Angola, torturou um bocado um Pide. Quando li o livro nem me recordava já do episódio, foram outros que o disseram, depois do dito Pide contar algumas histórias horríveis de África, e ao ler o que se passou vieram-me à cabeça os gritos do homem. Está lá escrito
(a Fotobiografia teve mais que uma edição)
na boca de, pelo menos, dois militares, mas claro que não vou falar dessa história. Também não me orgulho mas é verdade, e não foi feito às escondidas. Nunca fiz coisas às escondidas. Ainda hoje não percebo a intenção do jornalista nem quero pensar. Ganhou uma caixa? Ganhou um título? Mostraram--me, no facebook dele, essa pergunta e, por baixo da pergunta uma fotografia minha a tapar a cara, num gesto que faço muitas vezes quando estou cansado, nada tinha a ver com esse assunto, mas é lógico que quem tenha visto o retrato de imediato pensaria numa admissão de culpa da minha parte, o que é feio, muito feio. E aproveita para atacar o livro. Tem todo o direito de o atacar, sobretudo porque ficou furioso por eu ter dado antes da sua, uma entrevista a outra pessoa. Qual o mal? Uma entrevista não é uma notícia. Já dei tantas antes dessa sobre tantos romances e por conseguinte no lugar dele tanto me fazia, o que me ralava isso? Comigo, no lugar em que escrevo, estava o Prof. Gordon Love que assistiu a tudo, ele que vive em Portugal agora, não nos Estados Unidos, a traduzir o romance em apreço e a investigar a minha obra, e que por isso comigo, como assistiu às visitas de vários jornais estrangeiros e continuará a assistir nos próximos meses, trabalha aqui à minha frente e sinto- -me bem na sua companhia. Isto de que me ocupo é tão solitário, tão difícil, que o facto de haver uma pessoa por perto me faz bem. Um livro sempre foi para mim um penar profundo. Termino os dias exausto. E ver outra criatura a penar palavra de honra que ajuda. Quando estava a fazer quimioterapia a sala, bastante grande, encontrava-se cheia de companheiros de infortúnio, o que ajudava a sentir-me acompanhado. Auxiliaram--me tanto como a sua dignidade, a sua coragem, a solidariedade que me manifestaram sempre. Claro que aquilo não era muito agradável: era um horror. Mas fiquei a conhecer melhor os portugueses, sempre cheio de orgulho por ser um deles, sempre cheio de orgulho de estar rodeado de príncipes. Lembro-me de um homem numa situação terminal me dizer:
– Abrace-me que é o último abraço que me dá
e nunca esquecerei o seu sorriso, nunca esquecerei a sua cara quase encostada à minha. Morreu muito pouco tempo depois. Quer dizer: continua vivo em mim. Continuará para sempre vivo em mim, o sorriso não se vai apagar nunca. Trago-o comigo para me iluminar quando estiver muito escuro. Sempre que vou ao Serviço de Oncologia fazer revisões passo sempre pela sala da quimioterapia e cumprimento as pessoas uma a uma. Sinto-me entre irmãos junto deles. Sou um deles. Serei sempre um deles. Engraçado como o Prof. Gordon Love está cada vez mais português, o sotaque vai desaparecendo aos poucos, tem um calão e uma coleção de palavrões notável que melhora todos os dias, no caminho para aqui e daqui se vai enriquecendo porque faz o trajecto a pé. E vê ministros e deputados a dar com um pau dado que mora perto da Assembleia da República. Alto, ruivo, chegou magrinho e engorda que é uma beleza, já de barriga respeitável. De vez em quando fazemos uma pausa, tiramos ambos os óculos e conversamos um bocadinho antes de recomeçar, eu que ando a corrigir um livro que me está a dar um trabalhão sem fim. Olha, comecei este livro perto dele, o anterior também, chegou estava eu a acabar Para aquela que está sentada no escuro à minha espera, portanto agora conheço-o melhor, somos amigos oferece-me exemplares da Library of America, foi a Espanha com a família e trouxe-me de lá uma edição óptima da obra completa de Quevedo, autor que muito admiro, nascido no ano em que Camões morreu. Parafraseando o meu amigo George Steiner, em Tolstoi e Dostoievski, ou se é filho de Quevedo ou se é filho de Gôngora, e eu sou filho de Quevedo. Ou de Bashô, o grande poeta japonês do século XVII.
Uma tradução minha de um dos seus hai-ku:
Os quimonos secam ao sol.
Ai as mangas pequenas
da criança morta.
Que extraordinário, não é? Mas voltando ao princípio e a
– Matou alguém em África?
O que me vem à cabeça é que me matei a mim: nunca mais tornei a ser o mesmo e julgo que isto se passa com toda a gente que lá esteve, é inevitável. Qualquer experiência radical nos muda, e toda a gente sabe isto, toda a gente passou por isto de uma maneira ou outra. Uma mulher, por exemplo, depois de ter um filho torna-se inevitavelmente uma nova pessoa. Freud falava muito da inveja do pénis, mas nunca falou da inveja, a maior parte das vezes inconsciente, que os homens têm de não poderem engravidar e parir, e quando fui médico senti isso tantas vezes nas psicoterapias, era tão óbvio. Nós, homens, nunca saberemos o que é uma vida a nascer dentro do nosso corpo, numa intimidade absoluta. De certo modo tento compensar isso com o que escrevo. Vou parindo livros, mas os livros não me abraçam da mesma maneira. Se fosse capaz de ter filhos em mim não escrevia, disso tenho a certeza. Só não sei como fazia para engravidar porque a ideia de um homem dentro de mim me repugna infinitamente, era lá capaz. Eu vi a minha mãe com todos os filhos lá dentro e ainda hoje a invejo. Vi-a dar de mamar a cinco galfarros e ela, que era muito bonita, ficava linda na sua comunhão absoluta. A única vez que a vi chorar foi quando um deles se perdeu dentro da sua barriga. E já contei que, quando o Pedro morreu, ela disse
– Uma mãe não tem o direito de estar viva com um filho morto
e morreu também.
Quando foi do pai não disse
– Uma mulher não tem o direito de estar viva com o seu marido morto
ela que gostava muito dele e não voltou a ser a mesma pessoa nunca mais. Mas aguentou-se, que mais não fosse por nós. Quando eu estava com um dos cancros vi isso, tão claro, na cara dela. Teria morrido por mim também estava tão claramente escrito na sua cara, ela que não demonstrava os sentimentos e era corajosa e dura. Será que nós, homens, sabemos o que é o amor? Às vezes penso que sim, às vezes duvido. Auden: “diz-me a verdade acerca do amor”. Eu quero uma mulher que morra por mim. Como Modigliani teve. Há assim cabrões como ele, que têm essa sorte, Modigliani que morreu a dizer
– Querida, querida Itália
que não sei ao certo se é um País ou uma Mulher.
Sentido para a vida
Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer.
A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.
Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia.
Raul Brandão, " Se Tivesse de Recomeçar a Vida "
terça-feira, janeiro 30
Intimidade que não se divide
Esboço do passado
Há dois dias - domingo, 16 de Abril de 1939, para ser mais exacta -, Nessa disse que, se começasse a escrever as minhas memórias , em breve seria demasiado velha; teria oitenta e cinco anos e estaria muito esquecida: basta lembrar o infeliz caso de Lady Strachey. Uma vez que estou farta de escrever a vida de Roger, talvez dedique duas ou três manhãs a elaborar um esboço. Enfrento várias dificuldades. Em primeiro lugar, a enorme quantidade de coisas de que me consigo recordar; em segundo, as várias e diferentes maneiras que existem de escrever memórias. Como leitora assídua de memórias, conheço muitas formas diversas. Todavia, se começo a percorrê-las e a analisá-las , bem como aos seus méritos e falhas, as manhãs - não posso despender de mais do que duas ou três , no máximo - passar-se-ão. Então, sem parar para escolher o meu caminho, segura de que ele acabará por surgir - e, caso isso não suceda , não importa -, começo : a primeira recordação.
É de flores vermelhas e roxas sobre um fundo preto: o vestido da minha mãe; e ela estava sentada num comboio ou num autocarro, comigo ao colo. Via, portanto, de perto as flores do vestido que ela usava; ainda consigo ver o roxo, o vermelho e o azul, parece-me , contra o preto; acho que deviam ser anémonas. Talvez fôssemos para St. Ives; se bem que, a julgar pela luz , devia ser de noite , portanto, o mais provável era que estivéssemos de regresso a Londres. Não obstante, por razões artísticas ´, é mais conveniente supor que íamos para St.Ives, pois isso conduzirá à minha recordação seguinte, que parece ser também a primeira, sendo, na realidade, a mais importante de todas as minhas recordações. Se a vida possui uma base sobre a qual se ergue , se é uma vasilha que se enche e enche e enche, então a minha vasilha ergue-se, sem dúvida, sobre esta recordação. A de estar deitada , meio adormecida, meio acordada , na cama do quarto das crianças, em ST Ives. A de escutar as ondas rebentarem, uma, duas , uma,duas, salpicando a praia., e rebentar , uma , duas, uma duas, por trás de um estore amarelo. A de ouvir o estore arrastar o cordão pelo chão quando o vento o puxava para fora. A de estar deitada e escutar a água e ver a luz e sentir: parece quase impossível que esteja aqui; de sentir o mais puro êxtase que sou capaz de conceber.
Poderia passar horas a tentar escrever isso como deveria ser escrito, a fim de transmitir o sentimento que, mesmo neste momento, continua muito forte dentro de mim. Contudo, não seria bem-sucedida ( a menos que tivesse uma sorte fantástica); atrevo-me a dizer que apenas seria bafejada por tal sorte se tivesse começado por descrever a própria Virgínia.
E aqui me deparo com uma das dificuldades dos autores de memórias, uma das razões pelas quais, embora eu tenha lido inúmeras, tantas fracassaram. Deixam de fora a pessoa a quem as coisas aconteceram. Tal deve-se ao facto de ser tão difícil descrever qualquer ser humano. Dizem então: " Isto é o que sucedeu", mas não descrevem como era a pessoa sobre quem recaem tais acontecimentos. E esses acontecimentos pouco valem a não ser que conheçamos primeiro a pessoa por detrás deles. Quem era eu então? Adeline Virgínia Stephen, a segunda filha de Leslie e Julia Prinseo Stephen, nascida a 25 de Janeiro de 1882, descendente de um grande número de pessoas, algumas famosas, outras obscuras; nascida no seio de uma grande rede de conhecimentos, nascida não de pais ricos, mas de pais remediados, nascida num mundo de finais do século XIX, um mundo muito comunicativo, letrado, epistolar, que apreciava fazer visitas e sabia exprimir-se; de tal maneira que, se quisesse dar-me a esse trabalho, poderia escrever muito aqui, não só sobre a minha mãe e o meu pai, mas também sobre tios e tias, primos e amigos. No entanto, ignoro quanto disso , ou que parte disso, me fez sentir o que senti no nosso quarto em St. Ives. Não sei até que ponto sou diferente dos demais. Esta é a outra das dificuldades do escritor de memórias. Contudo, para nos descrevermos a nós fielmente, temos de ter algum termo de comparação; era inteligente, estúpida, bonita, feia, apaixonada, fria. Em virtude , parcialmente, de nunca ter frequentado a escola, de jamais ter competido em nada com crianças da minha idade, nunca pude comparar os meus dotes e defeitos com os de outras pessoas. Mas é claro que houve uma razão externa por trás de intensidade desta primeira impressão: as ondas e o berloque no fio do estore; a sensação, como a descrevo por vezes para mim mesma , de estar dentro de uma uva e de ver através de uma película amarela semitransparente, devia-se , em parte, aos muitos meses passados em Londres. A mudança de quarto foi muito grande. E houve ainda a longa viagem de comboio; e a agitação. Lembro-me do escuro, das luzes, o rebuliço da hora de deitar.
Virgínia Woolf
Poderia passar horas a tentar escrever isso como deveria ser escrito, a fim de transmitir o sentimento que, mesmo neste momento, continua muito forte dentro de mim. Contudo, não seria bem-sucedida ( a menos que tivesse uma sorte fantástica); atrevo-me a dizer que apenas seria bafejada por tal sorte se tivesse começado por descrever a própria Virgínia.
E aqui me deparo com uma das dificuldades dos autores de memórias, uma das razões pelas quais, embora eu tenha lido inúmeras, tantas fracassaram. Deixam de fora a pessoa a quem as coisas aconteceram. Tal deve-se ao facto de ser tão difícil descrever qualquer ser humano. Dizem então: " Isto é o que sucedeu", mas não descrevem como era a pessoa sobre quem recaem tais acontecimentos. E esses acontecimentos pouco valem a não ser que conheçamos primeiro a pessoa por detrás deles. Quem era eu então? Adeline Virgínia Stephen, a segunda filha de Leslie e Julia Prinseo Stephen, nascida a 25 de Janeiro de 1882, descendente de um grande número de pessoas, algumas famosas, outras obscuras; nascida no seio de uma grande rede de conhecimentos, nascida não de pais ricos, mas de pais remediados, nascida num mundo de finais do século XIX, um mundo muito comunicativo, letrado, epistolar, que apreciava fazer visitas e sabia exprimir-se; de tal maneira que, se quisesse dar-me a esse trabalho, poderia escrever muito aqui, não só sobre a minha mãe e o meu pai, mas também sobre tios e tias, primos e amigos. No entanto, ignoro quanto disso , ou que parte disso, me fez sentir o que senti no nosso quarto em St. Ives. Não sei até que ponto sou diferente dos demais. Esta é a outra das dificuldades do escritor de memórias. Contudo, para nos descrevermos a nós fielmente, temos de ter algum termo de comparação; era inteligente, estúpida, bonita, feia, apaixonada, fria. Em virtude , parcialmente, de nunca ter frequentado a escola, de jamais ter competido em nada com crianças da minha idade, nunca pude comparar os meus dotes e defeitos com os de outras pessoas. Mas é claro que houve uma razão externa por trás de intensidade desta primeira impressão: as ondas e o berloque no fio do estore; a sensação, como a descrevo por vezes para mim mesma , de estar dentro de uma uva e de ver através de uma película amarela semitransparente, devia-se , em parte, aos muitos meses passados em Londres. A mudança de quarto foi muito grande. E houve ainda a longa viagem de comboio; e a agitação. Lembro-me do escuro, das luzes, o rebuliço da hora de deitar.
Virgínia Woolf
sábado, janeiro 27
A estupidez
Páscoa branca
(…) Começa a nevar. Silenciosamente a nevar. E a terra, endurecida como um cadáver, cobre-se de branco, os ramos começam a desenhar-se em branco sobre o céu de um cinzento agora mais claro, numa delicadeza impressionante, confundindo-se com ele. Contenho a respiração. Toda eu espanto. Os flocos balançam, bailam lá fora onde não há sopro de vento, dentro do quarto, dentro de mim, brancura imaculada, tranquila… e então; por entre os troncos negros das macieiras, mudo como a natureza, a cauda entre as pernas altas, flocos de neve a cobrir-lhe o pêlo, o cão. Seguiu- me, portanto. Como há pouco, no cimo da escada da gare, fico transida de emoção. Era-me dolorosamente familiar, conhecia-o desde sempre, amava-o desde sempre, ouvia-o uivar por mim nas horas de angústia. “Tu?”, perguntei. E a palavra implantou-se no silêncio como uma árvore no deserto.
(…)
Vasto e verde, tão verde, o planalto estende-se até à orla da floresta. Nunca antes o azul do céu fora tão transparente, o amarelo dos dentes-de-leão tão radiante, o ar tão macio. Lado a lado, o cão e eu detemo-nos para em seguida recomeçarmos o nosso jogo de agarra, correndo e saltando para a direita, para a esquerda e em ziguezague, até cairmos exaustos sobre a relva, eu a cara em fogo, ele ofegante, a língua de fora. “Pobre, pobre”, digo e enterro a cabeça no seu pêlo, de onde lhe tiro carinhosamente algumas pétalas de macieira. E falo-lhe. Conto-lhe coisas, muitas coisas, e ele ouve, silencioso, pacífico como o cair das pétalas na Primavera e o da neve no Inverno. Não há pressa, não há horas. Tínhamos abandonado o tempo para nos instalarmos na vasta planície verde, onde as flores em lume são eternas. Ali não se conhece nem fim nem princípio, nada foi, nada é, nada será. Uma criança fala, e as suas palavras vão de alma a alma, em linha recta, sem curvas, sem desvios. Palavras sem fechaduras, sem chaves, sem rótulos, mas livres como pássaros, nuas como adolescentes banhando-se em fontes de floresta, imensas como o mar onde navegam barcos que não buscam margens nem destinos. E não há idade encerrada num ciclo iniciado nas trevas e terminando nas trevas. Sonhamos como se tivéssemos chegado da luz, vivêssemos na luz, regressássemos à luz…
– Posso entrar?
É a dona do hotelzinho que me traz o café. Pousando o tabuleiro sobre a toalha cor de morango, diz:
– O café vai-lhe saber bem, num dia como este.
E olhando o nevão por detrás da janela:
– Coisa tão rara, uma Páscoa branca.
– A janela, dantes, era muito estreita – digo eu – mas acho-a bonita assim larga.
E ela, surpreendida:
– Conhecia a casa? – Conhecia. E as macieiras também.
Ilse Losa, “Páscoa Branca”
sexta-feira, janeiro 26
Anônimo pensador
As bibliotecas ajudam-te a passar melhor as épocas sem dinheiro do que o dinheiro te ajudaria a passar as épocas sem bibliotecas
Dois velhinhos
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:
— Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
— Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
— Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.
Dalton Trevisan
quinta-feira, janeiro 25
As muitas infâncias
Dia desses, fui convidado para um bate-papo com crianças, mas, infelizmente, a conversa foi cancelada. Deveria falar como me aproximei da literatura, acrescentando como a questão da violência interfere na relação livro-infância. Fiz umas anotações-guia, e são elas que, de modo geral, divido com vocês. Ah, sim, a linguagem é adulta, na hora do vamos ver, manteria outro nível, mas jamais, em hipótese alguma, falaria como se estivesse diante de animais, gorjeando onomatopeias para bebê dormir.
Cresci num mundo muito diferente do de hoje. Não havia internet nem celular; havia televisão, mas, durante muito tempo, não na minha casa. A primeira TV que tivemos foi em 1970, um pouco antes da conquista da Copa. Eu tinha nove anos.
O que fazia uma criança sem TV, internet e celular? Fora de sala de aula — o número de crianças que não frequentava a escola era grande —, a molecada brincava na rua, nos quintais. Brincava de pique esconde, de mamãe da rua, de balança caixeta, de bolinha de gude; jogava futebol; fazia guerra de mamona; pulava córrego com vara de bambu; roubava fruta dos vizinhos. Nos domingos, ia à matinê e, no fim de todos os dias, cansada, dormia cedo.
Poucas faziam um trenzinho a mais: liam um livro na hora de dormir. Liam espontaneamente, porque ajudava a desacelerar dos dias de tanto corre-corre e pula-pula. Eu lia? Só por volta dos doze anos, a leitura foi se tornando uma atividade corriqueira, que eu buscava. O que, muito cedo, eu fazia era imaginar coisas, fazer versinhos, músicas. Bolava números de circo (acrobacia, palhaçada) e convidava os vizinhos para ver. Na porta de casa, armava um jogo de argola, que muita gente parava para jogar. Investia o lucro em sorvete e figurinhas. Colecionar figurinhas era a coisa mais importante do mundo, e, graças a elas, uma vez ganhei um fogão. E o que uma criança fazia com um fogão? Nada, ué, dava pra mãe, e a mãe vendia.
O querido Carabolante mandou a turma de doze anos ler um livro de gente grande: “Capitães de areia”, de Jorge Amado, que conta a história de uns meninos de rua, muito diferentes do que eu era, ainda que fossem da minha idade. Putz, como aquilo me fez bem! O livro me acompanhou pelos dois ou três meses que gastei para lê-lo e depois fazer o trabalho. A partir de então, ler passou a ser uma atividade que se encaixava perfeitamente nas demais. É verdade que, entrando na adolescência, uma novidade — forte concorrente da rotina estabelecida — apareceu na minha vida: as meninas, quer dizer, a atração por elas.
Brincando até não poder mais, lendo livros que contavam histórias ao mesmo tempo diferentes e parecidas com as minhas e metido em paqueras, acabei, entre uma pelada e um mamãe da rua, entre “O escaravelho do Diabo” e “Lucíola”, rascunhando uns versos, uns versinhos de amor, feitos para impressionar.
Encontrei na leitura — e na escrita — terreno para alimentar a minha já robusta imaginação. Por que fui assim? Por que a fantasia sempre me atraiu? Não sei explicar, mas quem é que sabe tudo de si?
O mundo é violento desde sempre. Às vezes, a violência está mais distante, às vezes mais próxima. Na minha infância, numa cidade pequena, violência era briga de rua, eram os meninos mais fortes se impondo. Eram os meninos da periferia fazendo valer seu destemor contra a boa vida dos bem-nascidos. Era isso e mais algum crime raro, quase sempre de fundo passional, restrito ao mundo adulto. Violência, violência mesmo estava lá no Oriente Médio, eu via na TV. Estava também nos porões da ditadura, mas eu não via na TV. Hoje a violência é na esquina — de grandes ou de pequenas cidades —, por isso a infância foge da rua. Poderia ser um estímulo à leitura, mas parece que os jogos eletrônicos têm falado mais alto.
Alexandre Brandão
Lucy Fleming |
O que fazia uma criança sem TV, internet e celular? Fora de sala de aula — o número de crianças que não frequentava a escola era grande —, a molecada brincava na rua, nos quintais. Brincava de pique esconde, de mamãe da rua, de balança caixeta, de bolinha de gude; jogava futebol; fazia guerra de mamona; pulava córrego com vara de bambu; roubava fruta dos vizinhos. Nos domingos, ia à matinê e, no fim de todos os dias, cansada, dormia cedo.
Poucas faziam um trenzinho a mais: liam um livro na hora de dormir. Liam espontaneamente, porque ajudava a desacelerar dos dias de tanto corre-corre e pula-pula. Eu lia? Só por volta dos doze anos, a leitura foi se tornando uma atividade corriqueira, que eu buscava. O que, muito cedo, eu fazia era imaginar coisas, fazer versinhos, músicas. Bolava números de circo (acrobacia, palhaçada) e convidava os vizinhos para ver. Na porta de casa, armava um jogo de argola, que muita gente parava para jogar. Investia o lucro em sorvete e figurinhas. Colecionar figurinhas era a coisa mais importante do mundo, e, graças a elas, uma vez ganhei um fogão. E o que uma criança fazia com um fogão? Nada, ué, dava pra mãe, e a mãe vendia.
O querido Carabolante mandou a turma de doze anos ler um livro de gente grande: “Capitães de areia”, de Jorge Amado, que conta a história de uns meninos de rua, muito diferentes do que eu era, ainda que fossem da minha idade. Putz, como aquilo me fez bem! O livro me acompanhou pelos dois ou três meses que gastei para lê-lo e depois fazer o trabalho. A partir de então, ler passou a ser uma atividade que se encaixava perfeitamente nas demais. É verdade que, entrando na adolescência, uma novidade — forte concorrente da rotina estabelecida — apareceu na minha vida: as meninas, quer dizer, a atração por elas.
Brincando até não poder mais, lendo livros que contavam histórias ao mesmo tempo diferentes e parecidas com as minhas e metido em paqueras, acabei, entre uma pelada e um mamãe da rua, entre “O escaravelho do Diabo” e “Lucíola”, rascunhando uns versos, uns versinhos de amor, feitos para impressionar.
Encontrei na leitura — e na escrita — terreno para alimentar a minha já robusta imaginação. Por que fui assim? Por que a fantasia sempre me atraiu? Não sei explicar, mas quem é que sabe tudo de si?
O mundo é violento desde sempre. Às vezes, a violência está mais distante, às vezes mais próxima. Na minha infância, numa cidade pequena, violência era briga de rua, eram os meninos mais fortes se impondo. Eram os meninos da periferia fazendo valer seu destemor contra a boa vida dos bem-nascidos. Era isso e mais algum crime raro, quase sempre de fundo passional, restrito ao mundo adulto. Violência, violência mesmo estava lá no Oriente Médio, eu via na TV. Estava também nos porões da ditadura, mas eu não via na TV. Hoje a violência é na esquina — de grandes ou de pequenas cidades —, por isso a infância foge da rua. Poderia ser um estímulo à leitura, mas parece que os jogos eletrônicos têm falado mais alto.
Alexandre Brandão
A polêmica em torno de um poema em Berlim
Na parede de um prédio em Berlim, está estampado um dos poemas clássicos de Eugen Gomringer, considerado um dos criadores da poesia concreta ao lado dos brasileiros Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos. Chama-se Um admirador:
avenidas
avenidas e flores
flores
flores e mulheres
avenidas
avenidas e mulheres
avenidas e flores e mulheres e
um admirador
Estampado na parede da escola superior Alice Salomon Hochschule, no bairro de Berlin-Hellersdorf, desde 2011, o poema causou polêmica no ano passado, quando foi acusado de espelhar a passividade da mulher como objeto e a situação feminina como não agente dos próprios passos, dos próprios olhos. Nesta terça-feira, as autoridades locais decidiram que, numa planejada reforma da fachada da escola em meados deste ano, o texto de Gomringer será substituído por um poema de Barbara Köhler.
Estamos passando por um momento difícil, em que nos vemos em meio a uma conversa extremamente necessária e importante, que começou tarde. Mas não tarde demais. E é por ser uma conversa tão importante e tão tardia, a que discute finalmente a misoginia e a violência contra a mulher em nossa sociedade, que me parece muito importante saber onde concentrar nossas energias. E que erros evitar.
Estamos vendo no Brasil uma onda de boicotes e conversas muito pouco civis, ainda que pareçam cheias de fervor republicano e cidadão. Exposições fechadas por supostas apologias a atos criminosos, boicotes a palestras tanto à direita quanto à esquerda. Este talvez seja um assunto pesado demais para uma coluna sobre literatura. Mas trata-se, afinal, de um poema. Por ter visto o meu desejo criminalizado por tanto tempo, não tenho a menor vontade de criminalizar o desejo de outros.
Não sei se a você, querido leitor, este poema soa sexista. Não há nele, certamente, qualquer violência ou apologia à violência. Não sei mais onde traçaremos a linha da liberdade de expressão e liberdade artística se todos, dentro de uma comunidade, começarem a tentar fazer desaparecer os discursos que desagradam à sua visão de mundo, sem que haja qualquer desvio constitucional em tais discursos.
Ricardo Domeneck
avenidas
avenidas e flores
flores
flores e mulheres
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avenidas e mulheres
avenidas e flores e mulheres e
um admirador
Estampado na parede da escola superior Alice Salomon Hochschule, no bairro de Berlin-Hellersdorf, desde 2011, o poema causou polêmica no ano passado, quando foi acusado de espelhar a passividade da mulher como objeto e a situação feminina como não agente dos próprios passos, dos próprios olhos. Nesta terça-feira, as autoridades locais decidiram que, numa planejada reforma da fachada da escola em meados deste ano, o texto de Gomringer será substituído por um poema de Barbara Köhler.
Estamos passando por um momento difícil, em que nos vemos em meio a uma conversa extremamente necessária e importante, que começou tarde. Mas não tarde demais. E é por ser uma conversa tão importante e tão tardia, a que discute finalmente a misoginia e a violência contra a mulher em nossa sociedade, que me parece muito importante saber onde concentrar nossas energias. E que erros evitar.
Estamos vendo no Brasil uma onda de boicotes e conversas muito pouco civis, ainda que pareçam cheias de fervor republicano e cidadão. Exposições fechadas por supostas apologias a atos criminosos, boicotes a palestras tanto à direita quanto à esquerda. Este talvez seja um assunto pesado demais para uma coluna sobre literatura. Mas trata-se, afinal, de um poema. Por ter visto o meu desejo criminalizado por tanto tempo, não tenho a menor vontade de criminalizar o desejo de outros.
Não sei se a você, querido leitor, este poema soa sexista. Não há nele, certamente, qualquer violência ou apologia à violência. Não sei mais onde traçaremos a linha da liberdade de expressão e liberdade artística se todos, dentro de uma comunidade, começarem a tentar fazer desaparecer os discursos que desagradam à sua visão de mundo, sem que haja qualquer desvio constitucional em tais discursos.
Ricardo Domeneck
quarta-feira, janeiro 24
A grande alegria
Alessandra Vitelli |
Assim, dos vinte aos trinta anos trabalhei duro de manhã até a noite e todo o meu tempo era utilizado para conseguir pagar as dívidas. Quando me lembro dessa época, só me vem à cabeça que eu trabalhei muito. Imagino que a vida das pessoas normais na casa dos vinte seja mais divertida, mas quase não tive condições de aproveitar a juventude por falta de tempo e dinheiro. Mas mesmo nessa época eu lia livros sempre que conseguia. Por mais que estivesse ocupado, por mais que a vida fosse difícil, a leitura continuou sendo uma grande alegria para mim, assim como a música. Ninguém podia tomar de mim essa alegriaHaruki Murakami, "Romancista como vocação"
Lixeiros turcos montam biblioteca com livros encontrados no lixo
Coletores de lixo, de Ancara, capital da Turquia, abriram uma biblioteca pública somente com livros que foram jogados fora.
A biblioteca foi montada no distrito de Çankaya quando os coletores passaram a guardar os livros que encontravam no lixo.
Durante meses, conforme os trabalhadores iam recolhendo os livros abandonados com o objetivo de montar a biblioteca, moradores ficaram sabendo do projeto e passaram a fazer doações.
A ideia inicial era que somente funcionários da empresa de coleta de lixo e seus familiares pudessem usar os livros. No entanto, a coleção aumentou e a biblioteca abriu ao público em geral em setembro do ano passado, com o apoio da Prefeitura da cidade.
“De um lado, existiam aqueles que abandonavam os livros nas ruas. De outro, havia pessoas que estavam procurando esses livros”, disse o prefeito de Çankaya, Alper Tasdelen, à CNN.
A biblioteca já conta com mais de 6.000 livros de todos os gêneros. O local também abriga uma seção de quadrinhos e de pesquisas científicas. Além disso, há a disponibilidade e livros em inglês e francês.
O prédio onde fica a biblioteca era uma antiga fábrica de tijolos, com longos corredores.
Os clientes podem pegar os livros por até duas semanas. Além da biblioteca, escolas, programas educacionais e até prisões estão recebendo os livros que iriam para o lixo.
terça-feira, janeiro 23
Cães ajudam crianças a ler melhor na Lituânia
Na Lituânia, crianças têm cães como aliados em uma terapia para ganharem confiança e aperfeiçoarem a leitura.
“Ao ler para um cachorro, a criança não fica estressada. Ela se acalma porque ninguém vai interrompe-la ao primeiro erro ou pedir que recomece a leitura de uma passagem. As crianças têm o controle da situação e isso é algo que lhes é conveniente”, disse Viktorija Pukenaite, coordenadora do projeto.na Biblioteca Nacional em Vilnius.
As sessões duram cerca de 15 minutos e envolvem crianças de 4 a 12 anos.
Os jovens leitores podem abraçar e acariciar o animal durante o período da leitura. Para que essa relação seja tranquila, os cães precisam passar por um curso de terapeuta antes de ingressarem no projeto.
Segundo a AFP, o programa, lançado em 2016, tem como objetivo contribuir para a manutenção a 100% da taxa de aptidão para leitura das pessoas com mais de 15 anos no país.
“Ao ler para um cachorro, a criança não fica estressada. Ela se acalma porque ninguém vai interrompe-la ao primeiro erro ou pedir que recomece a leitura de uma passagem. As crianças têm o controle da situação e isso é algo que lhes é conveniente”, disse Viktorija Pukenaite, coordenadora do projeto.na Biblioteca Nacional em Vilnius.
As sessões duram cerca de 15 minutos e envolvem crianças de 4 a 12 anos.
Os jovens leitores podem abraçar e acariciar o animal durante o período da leitura. Para que essa relação seja tranquila, os cães precisam passar por um curso de terapeuta antes de ingressarem no projeto.
Segundo a AFP, o programa, lançado em 2016, tem como objetivo contribuir para a manutenção a 100% da taxa de aptidão para leitura das pessoas com mais de 15 anos no país.
Livros não valem tronos
No céu, entre livros
Não consigo passar em frente a um sebo sem entrar. Já me vi apressado a caminho de compromissos em cidades que não a minha e, ao vislumbrar uma porta anunciando livros usados, algo me compeliu a entrar, indiferente ao fato de que chegaria atrasado. Aconteceu certa vez em Curitiba. Estava indo para uma entrevista quando vi, no outro lado da rua, o sebo Fígaro. Entrei -e me esqueci da entrevista. Depois dessa, aprendi. Sempre que vou a Curitiba, já saio do avião direto para o Fígaro.
Em São Paulo, dedico uma tarde inteira aos sebos da praça João Mendes e adjacências. Em Belo Horizonte, faço o mesmo no edifício Maleta. Conheço os sebos de Porto Alegre, Salvador, Natal. Nos do Rio, não me dou apenas com os gatos -sou íntimo até dos ácaros e, a alguns, chamo pelo nome. E não há sebo desprezível. O menor sebo que conheci era quase um buraco na parede, no Flamengo. Nas três primeiras vezes em que o visitei encontrei três preciosidades.
Há um famoso sebo em Nova York, o Strand, na esquina de Broadway e Rua 12, que se anuncia como tendo "18 milhas de livros" -28,96 km de prateleiras, do chão ao teto. Quando entrei nele pela primeira vez, em 1972, disse para mim mesmo a frase que nunca abandonei: "Quando morrer, não quero ir para o céu. Quero vir para este sebo". Com os anos, adaptei-a a muitos outros sebos, principalmente brasileiros, até que acabei por generalizar: não quero ir para este ou aquele sebo, mas para os sebos -todos.
Fred Bass, que herdou o Strand de seu pai nos anos 1950, quando a loja era uma portinha, e a transformou no maior sebo do mundo, morreu na semana passada, aos 89 anos. Depois de uma vida inteira entre estantes, Bass acabara de se aposentar. A morte é a aposentadoria, só que mais radical.
Pelo menos, Fred Bass já passara a vida no céu.
segunda-feira, janeiro 22
Com ou sem história
Maria do Rosário Pedreira
Duvidar sempre
Há, por exemplo, entre as mariposas, certa espécie noturna da qual as fêmeas são em número muito mais reduzido do que os machos. As mariposas se reproduzem da mesma maneira que todos os outros insetos: o macho fecunda a fêmea, e esta põe ovos. Quando se captura uma dessas fêmeas (e numerosos naturalistas já comprovaram o fato), os machos vão dar ao lugar onde ela se encontra prisioneira, depois de voarem vários quilômetros de distância, viajando horas e horas através da noite. Presta atenção! A vários quilômetros de distância os machos sentem a presença da única fêmea existente nas imediações. Tentou-se buscar uma explicação para o fato, mas é muito difícil de explicar. Talvez os machos tenham o sentido do olfato extraordinariamente desenvolvido, como os bons cães de caça, que conseguem achar e seguir um rastro imperceptível. Compreendes? A Natureza está cheia de fatos como este, que ninguém consegue explicar. Mas imagino que se, entre essas mariposas, as fêmeas fossem tão freqüentes quanto os machos, estes talvez não tivessem um olfato tão fino. Se o têm é porque se viram na necessidade de exercitá-lo a tal ponto e a intensificar sua sensibilidade. Quando um animal ou um homem orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo. O mesmo acontece com o que antes dizíamos. Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.
(...) É necessário perguntar-se sempre, duvidar sempre. Mas a coisa é muito simples. Se uma dessas mariposas noturnas de que falamos pretendesse orientar toda a sua vontade em direção a uma estrela ou a outro fim semelhante, é claro que nada conseguiria. Mas nem sequer pretende isso. Busca apenas o que tem para ela um sentido e um valor, algo que lhe é necessário e de que não pode prescindir. E é então precisamente quando consegue também o inacreditável: desenvolver um sexto sentido, que só ela possui entre todos os animais. Nós, os homens, temos um campo de ação muito mais vasto e interesses mais amplos do que os animais. Mas também nós nos achamos inscritos num círculo relativamente pequeno e não conseguimos ultrapassá-lo. Posso imaginar muitas coisas, imaginar, por exemplo, que meu maior desejo seria chegar ao Pólo Norte ou algo semelhante; mas só poderei querer isso com suficiente intensidade e realizar esse desejo quando ele realmente existir em mim e todo o meu ser se achar penetrado por ele. Quando isso acontece, quando intentas algo que te é ordenado de dentro do teu próprio ser, acabas por consegui-lo e podes atrelar tua vontade como se fosse um animal de tiro. Se eu me esforçasse agora no sentido de que, por exemplo, o nosso pároco não usasse óculos, não haveria de conseguir nada. Seria apenas um jogo. Mas, quando no outono passado, surgiu em mim o firme propósito de mudar de lugar na classe, tudo aconteceu maravilhosamente. Logo apareceu um aluno, que até então estivera doente e cujo nome começava por uma letra anterior à inicial do meu, e como alguém devesse dar-lhe o lugar nos primeiros bancos, fui eu, desde logo, quem lhe cedeu o lugar, precisamente porque minha vontade já se encontrava preparada para aproveitar a primeira ocasião.
domingo, janeiro 21
Mundo nas mãos
Alelu Moreh |
O que um escritor nos dá não são livros. O que ele nos dá, por via da escrita, é um mundo.Mia Couto
Caminho da manhã
Sarah Wilkins |
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles escorre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "'Livro Sexto"
sábado, janeiro 20
Os dois burrinhos
Muito lampeiros, dois burrinhos de tropa seguiam trotando pela estrada além. O da frente conduzia bruacas de ouro em pó; e o de trás, simples sacos de farelo. Embora burros da mesma igualha, não queria ser o primeiro que o segundo lhe caminhasse ao lado.
– Alto lá! – dizia ele – não se emparelhe comigo, que quem carrega ouro não é do mesmo naipe de quem conduz feno. Guarde cinco passos de distância e caminhe respeitoso como se fosse um pajem.
O burrinho do farelo submetia-se e lá trotava, de orelhas murchas, roendo-se de inveja do fidalgo…
De repente…
Osh! Oah! São ladrões da montanha que surgem de trás de um tronco e agarram os burrinhos pelos cabrestos.
Examinam primeiramente a carga do burro humilde e, – Farelo! – exclamaram desapontados – o demo o leve! Vejamos se há coisa de mais valor no da frente.
– Ouro, ouro! – gritam, arregalando os olhos. E atiram-se ao saque.
Mas o burrinho resiste. Desfere coices e dispara pelo campo afora. Os ladrões correm atrás, cercam-no e lhe dão em cima, de pau e pdra. Afinal saqueiam-no.
Terminada a festa, o burrinho do ouro, mais morto que vivo e tão surrado que nem suster-se em pé podia, reclama o auxílio do outro que muito fresco da vida tosava o capim sossegadamente.
– Socorro, amigo! Venha acudir-me que estou descadeirado…
O burrinho do farelo respondeu zombeteiramente:
– Mas poderei por acaso aproximar-me de Vossa Excelência?
– Como não? Minha fidalguia estava dentro da bruaca e lá se foi nas mãos daqueles patifes. Sem as brucas de ouro no lombo, sou uma pobre besta igual a você…
– Bem sei. Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu, eles…
E ajudou-o a regressar para casa, decorando, para uso próprio, a lição que ardia no lombo do vaidoso.
Monteiro Lobato
Livros e livrinhos
Ser gagá
Ser Gagá não é viver apenas nos idos do passado: é muito mais! É saber que todos os amigos já morreram e os que teimam em viver, são entrevados. É sorrir, interminavelmente, não por necessidade interior, mas porque a boca não fecha ou a dentadura é maior do que a arcada.
Ser Gagá é ficar pensando o dia inteiro em como seria bom ter trinta anos ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado, quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time, em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN. É só pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang, descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema mudo, e sentir no peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que trocam dois brotinhos, que, no entanto, o ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova, falar “Sossega Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um buraco na roupa e dar graças a Deus, por ser na roupa.
Ser Gagá é sentir plenamente que tudo que se leu, que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que estuda. Ser Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o tarado!” É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais charmosos” de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter uma esperança senil nos cientistas. É reparar, nos mais jovens, o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe, nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a felicidade de ter dentes próprios. E fazer grandes planos qüinqüenais que espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade, mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos.
É se apegar, desesperadamente, pelo tremendo impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o caixão no próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele. É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor, uma palavra há tempos esquecidos.
Ser Gagá é procurar com afã a importância do cargo para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça, espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem, nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês, e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É ouvir que alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanha. É casar com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável prova de um filhinho.
Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar tudo que inventam, todas as idéias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar de dizer numa ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter vez e nem misericórdia.
Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito frio.
Ser Gagá é ficar pensando o dia inteiro em como seria bom ter trinta anos ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar olhando os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio, pensando em morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora que o separa dos cem metros da esquina, porque é preciso resistir. É dobrar o jornal encabulado, quando chega alguém jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os íntimos da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos no Time, em Milestones. Não é saber o Who is who, mas os WHEN. É só pensar em comer, como na infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro horas, só de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang, descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema mudo, e sentir no peito a punhalada. É surpreender, subitamente, um olhar irônico que trocam dois brotinhos, que, no entanto, o ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova, falar “Sossega Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente, um buraco na roupa e dar graças a Deus, por ser na roupa.
Ser Gagá é sentir plenamente que tudo que se leu, que se aprendeu, que se viu e se viveu não vale nada diante do que estuda. Ser Gagá é estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o tarado!” É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais charmosos” de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter uma esperança senil nos cientistas. É reparar, nos mais jovens, o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe, nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a felicidade de ter dentes próprios. E fazer grandes planos qüinqüenais que espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade, mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos.
É se apegar, desesperadamente, pelo tremendo impulso da existência, aos filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que eles não o querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está bem de saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o tempo todo. É sentir o caixão no próprio corpo. É saber que já não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele. É já não ter prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor, uma palavra há tempos esquecidos.
Ser Gagá é procurar com afã a importância do cargo para de novo ser solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça, espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem, nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter sabido francês, e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora! É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo usava magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É ouvir que alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanha. É casar com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável prova de um filhinho.
Ser Gagá é, num esforço mortal, aceitar tudo que inventam, todas as idéias, as modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar de dizer numa ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter vez e nem misericórdia.
Ser Gagá é fogo. Ou melhor, é muito frio.
Millôr Fernandes
sexta-feira, janeiro 19
A grande alegria
Luc Tuymans Assim, dos vinte aos trinta anos trabalhei duro de manhã até a noite e todo o meu tempo era utilizado para conseguir pagar as dívidas. Quando me lembro dessa época, só me vem à cabeça que eu trabalhei muito. Imagino que a vida das pessoas normais na casa dos vinte seja mais divertida, mas quase não tive condições de aproveitar a juventude por falta de tempo e dinheiro. Mas mesmo nessa época eu lia livros sempre que conseguia. Por mais que estivesse ocupado, por mais que a vida fosse difícil, a leitura continuou sendo uma grande alegria para mim, assim como a música. Ninguém podia tomar de mim essa alegriaHaruki Murakami, "Romancista como vocação"
A leitura faz você feliz
Ler não é apenas fundamental: é necessário! Um livro nos coloca em contato com o outro, nos tira de nós mesmos, nos faz lançar um novo olhar para o mundo. Além de ser uma ótima companhia!
Quando lemos, ficamos sabendo sobre assuntos que não conhecíamos ou dos quais sabíamos muito pouco. O nosso repertório cultural se amplia quando entramos em narrativas imaginárias.
A nossa capacidade imaginativa fica mais elástica e menos formatada, sobretudo, quando é tão fácil termos a mão um smartphone com conteúdos selecionados de acordo com o nosso perfil. A leitura de um livro nos dá uma liberdade de trânsito por outros universos culturais com muito mais solidez do que as fórmulas prontas das redes sociais.
Por isso, aqui estão as 10 razões pelas quais vale a pena você ler mais:
1. Os protagonistas das histórias que preferimos estão de alguma forma relacionados com a nossa vida. Alguns estudos sugerem que muitas pessoas se lembram de ter lido pelo menos uma história que tenha mudado suas vidas e que isso leva a mudanças reais no cérebro. Em suma, alguns personagens podem “influenciar” nosso modo de pensar e nosso comportamento. Também por esta razão é importante escolher não casualmente o que se lê ou o que se lê para uma criança.
2. Estreitamente ligado ao ponto anterior, a leitura gera empatia. A leitura, de fato, leva a uma espécie de simulação de experiências sociais e, portanto, a uma maior empatia com os outros, a uma maior criatividade e a um comportamento cooperativo.
3. Regularmente a leitura de romances aumenta a conectividade de diferentes áreas do cérebro, incluindo as associadas ao processamento linguístico e à resposta sensorial primária, o que ajuda a compreender e visualizar o movimento. E, de acordo com o estudo publicado na revista Brain Connectivity, isso permanece mesmo depois de terminar o livro.
4. Ler um livro estende sua vida. De acordo com a pesquisa da Universidade de Yale em New Haven, de fato, os leitores, independentemente do sexo e estilos de vida, vivem dois anos mais do que aqueles que não tocam em uma folha.
5. A leitura ajuda no desenvolvimento das crianças: a leitura em voz alta para os filhos é um hábito precioso porque estimula o cérebro e melhora o desenvolvimento da linguagem.
6. A leitura combina o sono: ler antes de ir dormir é um bom hábito por vários motivos, sendo um deles adormecer mais sereno.
7. Reduz o estresse e previne ansiedade e depressão: estudos epidemiológicos descobriram que muitos pacientes que sofrem de ansiedade e depressão tiveram um declínio nos sintomas ao ler constantemente romances. Por outro lado, também foi demonstrado que a leitura relaxa os sentidos.
8. Ler em voz alta para cães ajuda as crianças. Parece estranho, mas não é. De fato, uma pesquisa mostrou que ler em voz alta para um cachorro pode ajudar as crianças em idade escolar a melhorar suas habilidades de leitura e construir relacionamentos positivos com os livros e a escola.
9. A leitura abre a mente e cura as feridas da alma porque uma história se conecta com o mundo, fornece incentivos para sair de uma dificuldade ou inconveniente, ajuda a enfrentar o medo de falhas e dores e a entender que elas fazem parte da vida.
10. A leitura estimula toda a atividade cerebral e aumenta a conectividade do cérebro, é um remédio para a memória e, em geral, para todas as funções cognitivas.
Ficou convencido de que ler faz bem para o corpo e para a alma? Vale ler romance, poesia, biografia, enfim, qualquer livro que lhe dê prazer, felicidade ou que o faça sair do eixo!
Quando lemos, ficamos sabendo sobre assuntos que não conhecíamos ou dos quais sabíamos muito pouco. O nosso repertório cultural se amplia quando entramos em narrativas imaginárias.
A nossa capacidade imaginativa fica mais elástica e menos formatada, sobretudo, quando é tão fácil termos a mão um smartphone com conteúdos selecionados de acordo com o nosso perfil. A leitura de um livro nos dá uma liberdade de trânsito por outros universos culturais com muito mais solidez do que as fórmulas prontas das redes sociais.
1. Os protagonistas das histórias que preferimos estão de alguma forma relacionados com a nossa vida. Alguns estudos sugerem que muitas pessoas se lembram de ter lido pelo menos uma história que tenha mudado suas vidas e que isso leva a mudanças reais no cérebro. Em suma, alguns personagens podem “influenciar” nosso modo de pensar e nosso comportamento. Também por esta razão é importante escolher não casualmente o que se lê ou o que se lê para uma criança.
2. Estreitamente ligado ao ponto anterior, a leitura gera empatia. A leitura, de fato, leva a uma espécie de simulação de experiências sociais e, portanto, a uma maior empatia com os outros, a uma maior criatividade e a um comportamento cooperativo.
3. Regularmente a leitura de romances aumenta a conectividade de diferentes áreas do cérebro, incluindo as associadas ao processamento linguístico e à resposta sensorial primária, o que ajuda a compreender e visualizar o movimento. E, de acordo com o estudo publicado na revista Brain Connectivity, isso permanece mesmo depois de terminar o livro.
4. Ler um livro estende sua vida. De acordo com a pesquisa da Universidade de Yale em New Haven, de fato, os leitores, independentemente do sexo e estilos de vida, vivem dois anos mais do que aqueles que não tocam em uma folha.
5. A leitura ajuda no desenvolvimento das crianças: a leitura em voz alta para os filhos é um hábito precioso porque estimula o cérebro e melhora o desenvolvimento da linguagem.
6. A leitura combina o sono: ler antes de ir dormir é um bom hábito por vários motivos, sendo um deles adormecer mais sereno.
7. Reduz o estresse e previne ansiedade e depressão: estudos epidemiológicos descobriram que muitos pacientes que sofrem de ansiedade e depressão tiveram um declínio nos sintomas ao ler constantemente romances. Por outro lado, também foi demonstrado que a leitura relaxa os sentidos.
8. Ler em voz alta para cães ajuda as crianças. Parece estranho, mas não é. De fato, uma pesquisa mostrou que ler em voz alta para um cachorro pode ajudar as crianças em idade escolar a melhorar suas habilidades de leitura e construir relacionamentos positivos com os livros e a escola.
9. A leitura abre a mente e cura as feridas da alma porque uma história se conecta com o mundo, fornece incentivos para sair de uma dificuldade ou inconveniente, ajuda a enfrentar o medo de falhas e dores e a entender que elas fazem parte da vida.
10. A leitura estimula toda a atividade cerebral e aumenta a conectividade do cérebro, é um remédio para a memória e, em geral, para todas as funções cognitivas.
Ficou convencido de que ler faz bem para o corpo e para a alma? Vale ler romance, poesia, biografia, enfim, qualquer livro que lhe dê prazer, felicidade ou que o faça sair do eixo!
quinta-feira, janeiro 18
Criação
Todos os escritores têm o direito de experimentar as possibilidades da língua através de todas as formas imagináveis e ampliar ao máximo o limite da sua eficácia. Sem esse espírito aventureiro, nada de novo será criadoHaruki Murakami
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