(...)Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:
— Este não pode! Está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!
Huseyin Sonmezay |
— D.Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado,cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.
— Senhor doutor — respondia minha avó —,sou avó deste menino e tua mãe.Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem.Levo o menino sem condição nenhuma e,se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes,que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.
E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abestalhado para a vida,e meu avô,que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:
— Uma de cada?
— Uma de cada — confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não-proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós.
— Mande levar. E agora aos livros!
João Ubaldo Ribeiro, "Um Brasileiro em Berlim"
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