sexta-feira, novembro 30

Assistência no frio


Cura

John Singer Sargent 
Palavras são, na minha não tão humilde opinião, nossa inesgotável fonte de magia. Capazes de ferir e de curar
 J.K. Rowling, Harry Potter e as Relíquias da Morte

Livro une gerações

Raquel Díaz Reguera

A casa das duas janelas

André Deymonaz 
A casa tinha apenas uma porta, sempre fechada, ladeada por duas pequenas janelas, sempre abertas. Os passarinhos não precisavam de porta aberta para adentrar àquela casa: faziam-no por uma das janelas, à livre escolha de suas asas. Dentro da casa, o velho solitário lia livros antigos balançando-se em sua cadeira enquanto o sono não lhe vencia. E o sono sempre vencia, forte e inabalável, aquele contendor já fraco e sem forças. Pelo chão, grãos de milho que o velho espalhava logo cedo para atrair as aves. Ele gostava do convívio com os pássaros. Seus cantos se espalhavam pelos cantos da casa e fazia do velho um velho quase feliz. E nada lhe exigiam. Um dia acabou o milho. A seca não permitira a colheita do grão. Nada mais havia a oferecer aos pássaros, além de um sorriso amarrotado pelo tempo e um jeito sereno de ver a vida. Mas, para sua surpresa, os bichos não o abandonaram e continuaram a fazer a mesma festa diária, ainda que sem o milho que outrora lhes era oferecido. O velho sorria a cada ‘serenata’. Lembrava-se, quando em vez, dos tempos áureos antes da rasteira que a vida lhe preparara, levando seus bens, inclusive uma casa com várias portas e janelas. Sobrou-lhe aquela, apenas. A porta, agora sem utilidade, vivia sempre fechada porque os amigos o abandonaram tão logo tomaram conhecimento de sua derrocada, do início de sua estrada rumo à pobreza. Ninguém por ela entrava ou entraria. Hoje, final do dia, o velho, cansado e desiludido, fecha as janelas (a porta, nem precisa pois fechada já está), coloca o livro que lê sobre a mesa, enxuga uma lágrima teimosa e insistente e deita. Ainda assim e apesar de tudo, sonha. Imagina o dia em que a amizade seja verdadeira e em que os homens não precisem de milho para enfeitar a vida dos amigos com seus cantos. Sonha com o dia em que os amigos sejam como os pássaros, que valorizam muito mais a amizade que um grão de milho. Com o dia em que uma porta aberta tenha serventia.

quinta-feira, novembro 29

O que nos salva


Mau tempo no canal

Ao entardecer os campos enchiam-se de neblina, o Pico ficava baço e monumental nas águas. Dos lados da estrada da Caldeira sentiu-se uma tropeada, depois pó e um cavaleiro no encalço de uma senhora a galope: 

― Slowly! Let go him alone ... 

Os cavalos meteram a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo. 

― Ah, não posso mais ... O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale ... 

― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar ... prender e folgar ... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro lado. That’s dangerous! ... 

Roberto Clark exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água. 

― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Jóia, que apanhou aquele passo escangalhado da charrette ... 

― Quê? A égua de teu pai, o peru? ... Half-bred ... Já lhe disse que tem de vendê-la. 

― Ah! Se o tio conseguisse! ... 

― Com o dobro do dinheiro da Jóia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos. 

Margarida sorriu; mas mostrou-se reservada, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. 
Para tirar o avô das escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo de escorregar nos limos. Mas teimava; metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava defronte. 

Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!

― Estás velha, hem? ... 

― Velha, não; mas enfim ... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ... 

― Viajar ou envelhecer? 

― Talvez as duas coisas ... 

Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas. 

... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém. 

O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.
Vitorino Nemésio, "Mau Tempo no Canal"

quarta-feira, novembro 28

Tem sempre livros para colher


Invocação

Consumiu dez anos para formar sua imponente biblioteca. Hoje, toda vez que passa diante dela, renova o apelo: "Ó, vós, que me fitais, por que não me ajudais?"
Raul Drewnick

Dia de ir às compras


Ai, madre, moiro de amor

Passei a noite a sonhar com cantigas de amor e cantigas de amigo, feliz de ter nascido nesta nossa língua portuguesa, cujo som me lembra o do vento em setembro, na Beira Alta, quando eu era pequeno e tudo parecia cantar, os pinheiros, o granito, a erva, a serra ao longe, o burro da nora às voltas, às voltas, e eu dentro daquele milagre de sons enquanto o correio das seis passava lá em baixo.

Que saudades da minha avó a chamar-me

– Filho

à janela, do meu pai a fumar na varanda para a serra, dos bandos de pássaros que só voltariam para o ano e eu sentado numa pedra no pinhal do Zé Rebelo, a assistir à chegada das primeiras nuvens do outono. Os Quatro Caminhos, velhas de luto, um cão magríssimo que não dava por mim, trotando sem pressa a pensar, a pensar. Muito pensam os cães, não é, muito pensam os cães. Muros de pedra vã. Um lagarto quieto, numa atitude de arranque. Os primeiros assobios secretos do vento. O meu avô, de casaco de linho, a olhar os castanheiros, a minha mãe tão nova. Os surpreendentes olhos azuis do meu irmão Miguel, as extraordinárias covinhas nas bochechas do seu sorriso. A Senhora Dona Lucrécia sentada no alto das escadas, em silêncio, imóvel, e eu, não sei porquê, cheio de medo dela: se por acaso me olhasse lá de cima desatava a fugir. E uma voz muito distante de mim no meu ouvido sempre:

Ai madre, moiro de amor

enquanto o Mondego

(que bonita palavra, Mondego)

Susa Monteiro

nascia num fiozinho, na serra, a tropeçar, coitado, a tropeçar. E o cheiro da vinha, as pipas que levavam as uvas, um par de bois enormes a puxarem aquilo. Que esquisito ser bicho, que esquisito ser pessoa também, tomar banho numa selha, mover a bomba da água: o Vergílio parava a carroça sempre ao lado do poço, às vezes deixava-me pegar um bocadinho na rédea, o João não tinha medo das vespas. A cozinha sempre quente, e grande e escura.

Querer eu em maneira de provençal
fazer um cantar de amigo

O Pedro a abrir castanhas com uma pedra sobre outra pedra. À tarde vinham buscar a Dona Lucrécia da varanda, ao colo. Ciganos de bigode que não cumprimentavam a gente vendiam na feira mulas, roupa, no largo a seguir à Igreja de São Miguel. O senhor vigário jogava as cartas ao domingo, sob a latada, a empregada dele para nós

– Meninos meninos

a oferecer-nos figos e eu não sabia o que pensar. A minha avó comprou-me um caderno no senhor Casimiro para eu escrever lá dentro. O meu pai

– Mostra cá

e devolvia-me aquilo em silêncio, intrigado

Ai eu coitada
como vivo em grã cuidado

e então a noite começava devagarinho, insectos, sombras, as primeiras luzes da serra. O meu medo do escuro porque tantos sons secretos sempre, um galho contra o nosso postigo, a bater, a bater, pessoas crescidas no andar de cima, o meu avô em silêncio sempre: como não ouvia equilibrava um sorriso vago na boca. Nunca falou conosco e gostava de trovoadas, ia para a varanda assistir aos relâmpagos. A gente tratava-o por Avô Dois, o Avô Um era o pai do meu pai, lia livros gordos, coisas de guerras. Explicaram-me que ficou surdo numa delas, em França, porque apanhou gases nas trincheiras. Não perguntei o que significavam gases, o que significavam trincheiras. Lia o jornal também, que íamos buscar ao meio dia, à estação dos comboios. No jornal havia sempre uma página cheia de retratos com cruzes em cima, ou seja pessoas que moravam debaixo da terra, num lugar ao lado da Igreja. Não, a sério, o que seria a morte?

Querer eu em maneira de provençal
fazer um cantar de amigo

e depois acordei. Aqui. Feliz de ter nascido nesta nossa língua portuguesa. Se me passar pela veneta chegar à porta agora estou na Beira outra vez. E pode ser que encontre um miúdo loiro a atazanar um sapo com um pedaço de cana. Porque é setembro. O mês em que nasci, o mês em que não páro de nascer.

terça-feira, novembro 27

Passeio à cachoeira


A aurora

A aurora chegou vestida de cor-de-rosa, passou pela vidraça, passou através de minhas pálpebras, acordou meus olhos. Mas não me acordou a alma, que ficou dorme-não-dormindo, boba e semi-iluminada. Depois, ela, a aurora, foi esvoaçar sobre os telhados, e era como se aquilo estivesse acontecendo no passado.

Meus olhos ficaram espiando aquela aurora doida que esvoaçava e se adelgaçava e deixava nascer de seu ventre róseo os primeiros passarinhos matutinos.

Como são vivos e novos os passarinhos enxotados pela aurora! Como a alma de um homem é boba e vadia! Como a doçura da preguiça de uma criatura que amanhece é infinita! Como às vezes, ao surgir o dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de todos os crimes, crimes não, de todas as coisas feias que cometeu.

Que nem cometeu, que deixou acontecer. Quem nos perdoa, não sabemos. Talvez seja assim: o sofrimento se junta, vai se juntando dentro da gente, lacerando, doendo, até que um dia a dor é tanta que nos pune. Então, ficamos perdoados. Puros, recomeçamos de alma nova, passada a limpo como um exercício de escola.

Voltando à aurora, ela começou a sentir que morria. Ficou pálida. Um vento frio levantava as grinaldas da janela. As árvores começaram miraculosamente a dar folhas e frutos. Os pássaros se coloriram. Trens fumacentos avançaram sobre a cidade. Homens gritavam vendendo coisas. Ah, a aurora foi ficando palidíssima e morreu, morreu bem em cima de meus olhos, no instante em que as duas últimas estrelinhas eram riscadas do show noturno.

Amanhecia implacavelmente.

Aí chegou a vez do enterro da aurora. O coche foi levado por andorinhas de sobrecasaca, foi levado para muito longe, para muito além de um monte escuro, e desapareceu.

Fiquei só outra vez. Por um momento quis que ela voltasse. Depois resolvi ser novamente um homem, com duas pernas, dois braços, dez dedos práticos, com uma cabeça que deve decidir onde devo pôr os meus pés. É meio mórbido ficar lamentando indefinidamente a perda de uma aurora, mesmo uma aurora especial como aquela, capaz de perdoar-nos os pecados.

Ergui-me da cama resoluto como um rei e fui lavar a cara. Escovei os dentes com um máximo de alegria. Abençoado sejas, irmão dentifrício, que me refrescas a boca.

Em jejum, acendi como sempre o primeiro cigarro. Que me dá tosse. Não importa. Abençoado sejas, irmão fumo, irmão fumaça que sobes para o céu.

Deitei-me na cama de novo enquanto os cavalos dos poemas antigos traziam o Sol em atropelada brilhante. Vi-os fortes e louros irromper pelo céu onde tinha morrido de morte linda a aurora. 

Abençoado seja o Sol. Abençoado seja o dia. Abençoado seja o descanso. Abençoados sejam os pássaros diurnos e noturnos. Abençoadas sejam as criaturas de todo o mundo. Abençoado o fogo; a terra; o ar; a água. Abençoada seja a aurora. Que me perdoa de meus pecados.
Paulo Mendes Campos

segunda-feira, novembro 26

Saindo a passeio


As flores do bem

Baudelaire, como se falasse do Brasil, lembra que “A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez/ Habitam nosso espírito e o corpo viciam/ E adoráveis remorsos sempre nos saciam”. Em seu As Flores do Mal, de 1857. Marco da poesia simbolista, o livro logo foi apreendido pela censura. O autor, e seu editor, acabaram multados. E seis poemas tiveram que ser suprimidos, antes que voltasse às livrarias. Mas essa é outra história. Lembrando Baudelaire, hoje escrevo sobre flores. Do Bem. E não, como as dele, do Mal.

Uma é a Dama da Noite (Epiphyllum Oxipetalum). Gentilmente doada pelo amigo Euler Lucena. O cactácio floresce, no Nordeste, só duas vezes por ano. Às 22 horas. Para morrer três horas depois. Com forte perfume, próprio de uma dama da noite, sempre que vai abrir fazemos vigília. Em Gravatá. Sentados, à sua volta, para contemplar esse momento raro e belo da natureza. E vale a pena tanta espera. Podem acreditar.

A outra é a flor do Baobá (Adansonia Digitata). A árvore veio da África, onde é considerada sagrada. Segundo consta, vivem 6 mil anos. Embora a mais antiga, conhecida como Árvore de Grootboom, tenha chegado apenas a 1.300 (África do Sul). Cabendo hoje, essa primazia, ao Baobá de Sunland (também na África do Sul), pouco mais novo. Há muitas lendas, sobre ela. Como a de que dá só uma flor, a cada 50 anos. Minhas preferidas são a de que mortos, enterrados próximos, mantêm vivos seus espíritos enquanto ela viver. Ou a de que seus galhos são habitados por espíritos.

Em Gravatá, plantamos 13. Quase todas doadas pelo queridíssimo casal Ieda e Ernani (que Deus o tenha, comunista velho) Lemos. Como demoram 200 anos para ficar adultas, já combinei com os filhos que, daqui a dois séculos, todos vamos dar as mãos – com seus filhos, netos e sucessores – para grande abraço familiar, em volta de uma delas. Têm, hoje, cerca de 2 metros de diâmetro. Mas não param de engordar.

As flores do Baobá têm cheiro de carniça, mas quem se preocupa com isso? “Seu perfume exala o medo”, como nas flores de Baudelaire. Uma delas abriu esta semana. E, como duram só 24 horas, fomos testemunhar. Dia seguinte, já estava morta. A vida é mesmo “perto e breve”, como uma vez me disse Millor. Veio, em seu lugar, o fruto. O Mucua. Uma cápsula seca usada como alimento. Da França, trouxe uma espécie diferente – nomeada, pelos vendedores, comoBaobá de Apartamento; que cresce em jarros e vai até, no máximo, dois metros. Quem passar na rua onde moro poderá vê-la, do meu lado, no escritório em que todas as noites escrevo. Como se fôssemos cúmplices. E, de alguma forma, somos. Na crença, ou ilusão, da permanência.

Valendo ainda lembrar O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry. Em que está, parecendo certos personagens da vida pública brasileira, que “Para reis, o mundo é muito simples. Todos os homens são súditos”. No livro, o narrador descreve acidente que fez seu avião cair no Deserto do Saara. E, lá, encontrou menino com cabelos de ouro e um cachecol amarelo, habitante de planeta (ou asteroide) onde criava baobás. A árvore do Pequeno Príncipe é um Baobá!!!

O que poucos sabem é que, provavelmente, tudo começou quando seu autor, Saint-Exupéry, entre 1929 e 1930, trabalhava na Companie Generale Aéropostale. Fazendo, como piloto de avião, rota que incluía Natal e Recife. Era conhecido aqui, pela dificuldade na pronúncia do nome, como Zé Perrí. E viu centenário Baobá na Rua São José (Natal), em terreno depois adquirido por Diógenes da Cunha Lima. Só para garantir que não fosse um dia derrubado. E também viu, encantado, o enorme exemplar que fica em frente ao nosso Palácio do Campo das Princesas. O Baobá do Pequeno Príncipe, quem sabe?, talvez seja o do Recife.
 

Semente leitora

Isadora Zeferino

Professor Guinsburg

A modernidade ampliou a potência das civilizações que têm sua alma no livro. Mas, além do conhecimento, divino ou humano, a leitura trouxe como efeito colateral o apego à letra, em detrimento do sentido. Milhares foram assassinados devido à leitura inculta, praticada por fiéis delirantes. Hoje o meio impresso é obnubilado pela internet. Mas a eficácia dos instrumentos que divulgam mensagens, tolas ou sábias, leva ao pedantismo ou zelo fanático. No Renascimento, editores e acadêmicos lançam a corrida ao livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo exige imenso labor coletivo. Para a venda dos volumes concorrem potentados, financistas, religiosos. O livro atinge setores amplos, anuncia a nova era científica, humanística, estatal.

Entre os ávidos consumidores das letras surgem indivíduos que delas se empanturram. Da indigestão literária brota a cultura pela metade, uma nova forma de ignorância douta. O apedeuta é prisioneiro de falas absurdas, as quais considera verdadeiras. Na Encyclopédie, Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, afetação de estilo e maneiras”.

O número dos que usam muitos textos e pouca ciência se mantém constante. Hoje a voga de edições caras para enfeitar prateleiras cede o passo aos escritos baratos de autoajuda, romances levemente pornográficos, biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram os seguintes em termos editoriais: Inglaterra, 184 mil; Alemanha, 93.600; França, 66.530; Espanha, 76.430; Itália, 61.100. Os elementos são fornecidos por Jakub Marian. Em 2013, na França, os campeões de vendagem foram Asterix e três livros contendo os 50 matizes de cinza; 25% dos livros vendidos eram romances; 21%, de juventude; 13%, de turismo; 8%, escolares; 6%, quadrinhos; 6%, de aperfeiçoamento docente. Das edições eletrônicas de 2014 na França, cerca de 8,3 milhões de livros foram “baixados”. Para 1 milhão de compradores de livros foram oferecidos 26 milhões de livros impressos. Cerca de três quartos dos compradores de textos digitais também compraram livros impressos.

Há uma reflexão a ser feita. Sim, ondas de tolices eletrônicas “deram o direito de falar a uma legião de idiotas que antes apenas falava numa tasca de aldeia e depois de uns copos de vinho, sem prejudicar a comunidade. A televisão já tinha colocado o idiota de aldeia num patamar onde ele se sentia superior. O drama da internet é que promoveu esse idiota a portador da verdade” (Umberto Eco).

Mas nas redes existem páginas com saber rigoroso e útil. No Perseus Project é possível ler parte da literatura grega clássica, textos cujas palavras remetem a dicionários, gramáticas, estudos científicos. A Gallica, Biblioteca Nacional da França, apresenta gratuitamente milhões de livros digitalizados, antigos e modernos. Livrarias eletrônicas como a Questia oferecem a preço irrisório milhares de textos com os respectivos estudos. Mesmo quando o impresso dominou, o vezo pedante ou fanático recebeu o desafio de autores, editores e técnicos que publicavam livros essenciais para a vida espiritual. No Brasil tivemos vários que buscaram romper o círculo da mediocridade satisfeita. Um deles foi Jacob Guinsburg, o idealizador da Editora Perspectiva.

Examinando o catálogo da editora surgem textos que sintetizam a cultura moderna e a antiga. E não apenas nos múltiplos setores do pensamento – ética, estética, história, poesia, teatro, dança, teoria literária, religião, filosofia, arquitetura –, mas nos estudos eruditos de vanguarda que procuram entender aqueles campos de maneira inovadora e plural, ecumênica. O número de autores reunidos no rol dos publicados pela Perspectiva é espantoso. Citei acima uma sequência frásica de Umberto Eco contra a barbárie movida pela comunicação de massas ignaras. O desencanto do pensador deve ser percebido na sua trajetória acadêmica e pública. Guinsburg publicou-o em seus trabalhos iniciais, especialmente Obra Aberta e Apocalípticos e Integrados. Em ambas vemos uma pesquisa sem nostalgia das elites ou rendição ao populismo cultural. Tratava-se, para ele, seguindo o conselho de Spinoza, de não rir da cultura moderna nem chorar, mas de compreender. A mesma atitude assumida, ao longo de 97 anos, por J. Guinsburg.

Cada leitor das preciosidades unidas por J. Guinsburg recorda com carinho um ou outro título. Admiro o monumento erguido por Erich Auerbach: o livro Mimesis. Deixo as querelas suscitadas pelo autor na teoria e na história literárias. Trata-se de uma síntese encantadora da cultura ocidental, dos gregos aos nossos dias. Uma obra assim justificaria qualquer editora. Sem exagero, digo: volumes às centenas e centenas, no catálogo da Perspectiva, trazem a marca daquela genialidade. A produção promovida pela Perspectiva foi analisada em extensão e profundeza por estudiosos de todos os setores. Não me alongarei mais.

Devemos homenagear o ser humano Guinsburg. Em décadas de amizade, sempre fomos acolhidos por ele com simpatia, generosidade, entusiasmo e saber. Prudência política era o seu nome, ele que atravessou os regimes de força no Brasil, as lutas entre esquerda e direita, as intolerâncias. Defensor dos direitos humanos, assistiu ao antissemitismo triunfante que levou ao Holocausto sem jamais duvidar da força presente em seu povo. Sorvemos cada átimo de sua companhia. Com jeito de quem nada sabia, ele aprofundava informações históricas, antropológicas, políticas as mais diversas. Indicava de modo discreto caminhos de pesquisa. Ele se foi no momento em que nossa gente entra num labirinto ameaçador, quando a ausência do espírito cultural manifesta um vazio ameaçador. Fará enorme falta.

Mas os livros que publicou guardam o antídoto contra a ignorância, a truculência das seitas, o gigantesco pedantismo que circula na internet. Obrigado, professor Guinsburg!

*Jacó Guinsburg, 96 anos, editor da Perspectiva, foi entrevistado pela revista Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, em "Senhor do Tempo"

sábado, novembro 24

Bom dia para compras


A volta dos hippies

São namorados. Companheiros, como preferem dizer. Ele tem 22 anos e veio do Ceará. Família tradicional no Nordeste, pai proprietário rural, cinco irmãos. Ela tem 21 anos, do Rio mesmo, pais desquitados, três irmãos, morando todos com a mãe. Dois anos atrás, cada um por si, resolveram largar tudo e se mandar. Ele trabalhava numa agência de publicidade, ordenado razoável, mas não tinha jeito para a coisa. Ela estudava Comunicação, achava o ensino péssimo, os professores incapazes: ficar quatro anos na escola por um diploma? Bem, não era propriamente isso o que ela queria da vida. Então o que você queria? Sei lá, diz ela: viver. E ele também: eu queria curtir a vida, saca? Resolveram trocar uma situação segura por um salto no escuro. E ganharam o mundo.

A fase de contestação política tinha sido rápida: manifestos, passeatas, comícios, tudo isso de súbito também já era. Preferiram ficar na deles. A princípio a gente só estava a fim de curtir um som, entende? Respondem sempre assim, um falando em nome de ambos, nunca na primeira do singular, mas numa forma vagamente coletiva que dá a impressão de estarem falando em nome de uma comunidade a que pertencem chamada gente. Pois a gente passava o dia inteiro tirando um som, era legal; sempre tinha um que curtia um violão, uma flauta doce… E os discos: Areta Franklin, Jane Joplin, Jimmy Hendrix, o pessoal todo da pesada, Pink Floyd. Como ouvir música sem puxar um fumo? Foi a fase em que todo aquele que não fumava maconha era careta. Ou, pior ainda, se, como eu, preferia um uísque: biriteiro.
 Julia Blackshaw
Desprezo? Sem esta, bicho: a gente não despreza ninguém, pelo contrário: o barato é justamente estar ligado, saca? a gente se sentindo bem com todo mundo, sem grilo, cada um na sua. Tão legal que até fica sendo pouco e alguns vão mais longe, muito pirados: bolinha, ácido, cheiro, pico.

Viagem sem volta: dependência, tráfico, chantagem, prostituição, loucura, morte.

Eles dois não foram’ apanhados na escalada infernal. Tiravam um sarro de vez em quando, mas sem aquela da dimensão mística, de fundo religioso ou coisa parecida. Para eles, “toda experiência, mesmo negativa, é sempre positiva”. Então saíram por aí: Parati, Búzios, carnaval na Bahia. Ela já de vestido longo e cabeleira frisada à moda de Gal ou Bethânia; ele de túnica branca, calças boca-de-sino, cabelos pelos ombros. Não sabiam o que queriam: justamente para ficar sabendo é que saíram de casa.

Pois agora os hippies estão voltando. Estes dois, pelo menos, estão de tornaviagem: passaram pela fase da vida primitiva em meio a pescadores; pela defesa da natureza contra a poluição do mundo civilizado, a fase ecológica; pela macrobiótica, a meditação transcendental, Herman Hesse, filosofias orientais, zen-budismo. Estão de volta, e, coisa espantosa: pensando em se casar.

Acreditam que o casamento até que tem lá a sua graça, principalmente para alguém como eles: pretendem montar casa, morar juntos e, quem sabe? até mesmo ter filho. Casando direitinho a família ajuda. Estão dispostos a trabalhar, se for preciso: trabalho humilde, não precisarão de muito para viver felizes: artesanato, para vender na Praça General Osório. Já sabem o que querem: fazer alguma coisa de útil e viver em paz.

Sem perceber, eles correm o risco de acabar descobrindo que hoje em dia o legal é ser legal.
Fernando Sabino

sexta-feira, novembro 23

TV inteligente


O bom e o mau

O pior leitor é o passivo, resignado, que aceita tudo e lê o livro como uma receita ou bula para o bem viver. Este é o não-leitor. Porque o texto de auto-ajuda é um compêndio de trivialidades, palavras que não questionam, não intrigam nem fazem refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Um bom leitor reescreve o livro com a imaginação de um escritor. Alguns vão mais longe. Com os olhos no texto e um lápis na mão, eles fazem anotações nas margens das páginas, sublinham frases, cravam aqui e ali pontos de interrogação
Milton Hatoun

Leitura e yoga


Mãe e filho

Nada era pior do que saber que a mãe não voltaria mais a andar. Ficava prostrada na cama, a doença arrancando-lhe o sorriso do rosto na pele envelhecida. O momento de alívio era quando conseguia reconciliar o sono. Na rotina do medicamento, a agulha furava a veia do pulso, por onde o soro era levado para reforçar o sangue enfraquecido no sistema de defesa do corpo. O irmão trazia para junto da cama o suporte de aço com quatro pés e rodízios, o soro no tubo pendurado no gancho, descendo lentamente pela mangueira, gota a gota. Seguia lentamente para penetrar no corpo da mãe. O tempo enfadonho repetia-se no corpo abatido, lambia os minutos demorados no quarto.

A moça que cuidava da mãe mudava seu corpo com cuidado para o outro lado. Limpava as feridas com algodão embebido na água oxigenada. Tentava atenuar as dores nas costas por ter o corpo permanecido tanto tempo na mesma posição. A mãe acordava gemendo, as costas queimando, os olhos umedecidos.

Tentava consolá-la, não perdesse a fé em Deus, todos nós estávamos esperançosos de que um dia ela voltasse a andar com as suas pernas incansáveis, os passos seguros, dando vida ao corpo por entre os cômodos do apartamento. Os dias voltariam ao ritmo normal, sua voz esbanjando afeto quando se dirigia a um dos filhos, de suas mãos, até certo ponto divinas, chegariam até à mesa as comidas deliciosas, doces e bolos com confeito, como ela gostava de fazer.

Como não lembrar os ensinamentos que na infância a mãe tanto havia dado?

“Menino, já para dentro, Que vem o vento ventoso, Levado, levando cisco! Menino, já para dentro! Boa romaria faz quem em sua casa está em paz”. E essas adivinhas: “O que é, o que é, o ano todo no deserto o mais quente é? Responda certo, menino esperto”. Como esquecer essa de pura carícia: Da noite o beijo. A melhor sombra de dia. Quem é?

A casa era pequena, mas em tudo os dias tinham suas mãos zelosas. Colocava nos vasos aquelas rosas, como sonho na manhã perfumando, irradiavam pelos ares ternura. Davam vida à máquina de costura suas pernas ativas. Os bordados, beleza sempre tecida por mãos finas, eram admirados por quem visse. Como o mundo de Deus era grandão de bondade com as suas recomendações e conselhos. Dizia que primeiro a obrigação, depois, filho, é que vem a diversão.

Nada era pior do que saber que a mãe não voltaria mais a andar. O tempo usurpava sem dó a beleza da vida, embora não houvesse revolta enquanto durava a agonia. O amor por ela dobrava porque como filho eu sabia disso.

quinta-feira, novembro 22

Mr. Bookmann


Pensamento sobre cães

Um homem muito sábio, escrevendo recentemente sobre o surgimento e o desenvolvimento da nossa espécie, sugere que a domesticação do cachorro teve a mesma importância que o uso do fogo para o primeiro homem. Pela associação com o cachorro, o homem dobrou a percepção e, além disso, o cão - dormindo aos pés do homem primordial - permitiu-lhe descansar um pouco sem ser perturbado por animais sorrateiros. Os usos do cachorro mudam. Um dos primeiros tratados sobre cães em inglês foi escrito por uma abadessa ou prioresa num grande convento religioso. Ela lista o cão de guarda, o de caçar coelhos, o cão da Espanha chamado spaniel e usado para encontrar aves feridas, o cão "venatório" etc. e, finalmente, diz: "Existem aqueles pequenos cães brancos levados por damas para afastar delas as pulgas". Quanta sabedoria havia aqui. O cãozinho de colo não era um enfeite, mas uma necessidade.

O cachorro em nossos dias, mudou de função. É claro que ainda temos cães usados para a caça e os galgos para as corridas, e os pointers, setters e spaniels para as complicadas profissões, mas, na população total de cachorros, estes são minoria. Muitos cães são usados como enfeite, contudo a maior parte serve de consolo para a solidão. O confidente de um homem ou de uma mulher. Uma plateia para os tímidos. Um filho para quem não tem filhos. Nas ruas de Nova York, entre as sete e nove da manhã, vê-se a lenta procissão de cachorro e dono seguindo da rua para a árvore, para a boca de incêndio, para o caixote de lixo. São cães de apartamento. São levados à rua duas vezes por dia e, embora seja um cliché, é espantoso como dono e cachorro se parecem. Chegam a andar igual, a ter o mesmo tipo de cabeça.

Nos Estados Unidos, estilos e cães mudam. Há alguns anos o airedale era o mais popular. Agora é o cocker, mas o poodle está quase lá. Há uns mil anos consigo lembrar de que havia boxers por toda a parte.

Nos Estados Unidos, tendemos a levar ao extremo raças de cães que não trabalham. Criamos collies com cabeça tão comprida e estreita que não conseguem mais encontrar o caminho de casa. O dachshund ideal é tão comprido e baixo que sua espinha cede. Nossos dobermanns são paranóicos. Desenvolvemos um boston bullcom a cabeça tão grande que os filhotes só podem nascer por cesariana.

Não é sensato lamentar o cão de apartamento. Sua expectativa de vida é quase o dobro do cachorro do campo. O seu tédio, provavelmente, é muitas vezes maior. Certo dia entrei num táxi e dei o endereço de uma loja de animais. O motorista perguntou:

- O senhor quer um cachorro? Porque eu posso lhe arrumar um cachorro. Arranjo cachorros.
- Não é um cachorro, mas como é isso de arranjar cachorros?

- É assim - disse o taxista. - Sábado à noite, num apartamento, tem um sujeito e a mulher secando uma garrafa de gin. Aí pela meia-noite começam a brigar. Ela diz: "Esse seu cachorro é danado. 

Quem é que limpa a sujeira , o leva a passear e dá comida, e quando chega apenas lhe faz um carinho na cabeça. E o sujeito diz: "Não fale assim do meu cachorro". "Odeio-o", diz ela. "Tá bom colega", diz ele, "Se é assim que quer... Venha Spot", e ele e o cachorro vão para a rua. O sujeito senta-se num banco, pega o bicho ao colo e chora. Em seguida, os dois vão para um bar e o sujeito conta para todo mundo que mulher nenhuma pode tratar seu amigo assim. Bem, dali a pouco eles fecham o bar e já é tarde e o efeito do álcool começa a passar e o sujeito quer ir para casa. Aí, entra num taxi e dá o cachorro ao motorista. Acontece comigo todas as noites de sábado.

Já tive alguns cachorros espantosos. Um que recordo com prazer foi um english setter enorme. Via coisas incompreensíveis. Latia durante horas para uma árvore, mas só para aquela árvore. Na estação das uvas só comia uvas, que colhia da parreira, uma uva de cada vez. Na estação das peras vivia de peras derrubadas pelo vento, mas não tocava em maçãs. Com o passar dos anos foi ficando cada vez mais transcendental. Acho que finalmente acabou desacreditando das pessoas. Pensava que eram um sonho seu. Reunia todos os cães da vizinhança e fazia-lhes conferências ou sermões silenciosos e certo dia concentrou a atenção em mim por uns bons cinco minutos e depois foi embora. Ouvi falar dele em diferentes partes do estado. As pessoas tentavam fazê-lo ficar, mas num ou dois dias ele partia. Minha opinião era que tinha visões e tornou-se missionário. O seu nome era T-Dog. Muito tempo depois, a mais de cem quilômetros de distância, vi um letreiro pintado numa cerca que dizia “T-God”. Estou convencido de que ele trocou as letras de seu nome e desde então saiu pelo mundo para levar sua mensagem a todos os cães.

Tive todos os tipos de cachorro, mas há um que sempre quis e nunca tive. Nem sei se ainda existe. Costumava haver no mundo um english bull terrier branco. Era atarracado, mas rápido. O seu focinho era pontiagudo e os seus olhos eram triangulares, de forma que a expressão era de um riso cínico. Era amigável e nada brigão, mas se fosse forçado a lutar era ótimo. Fazia uma ideia favorável e decente de si mesmo e nunca era covarde. Era um cão pensativo, voltado para si mesmo, mas ainda assim tinha uma curiosidade enorme. Era pesado de ossos e ombros.O pescoço fazia um belo arco. Às vezes cortavam a orelha, mas nunca o rabo elevado. Era um bom cachorro para um passeio. Um cachorro excelente para dormir ao lado da cama de um homem. Era delicado em seus sentimentos. Sempre quis um deles. Pergunto-me se ainda existe no mundo.

John Steinbeck, "A América e os americanos"

quarta-feira, novembro 21

Arranha-céu

Robert Neubecker

Feitiço brasileiro

Ela era alemã, e seu nome era Maria. Esse é o nome de mulher mais comum no mundo. Maria é grafada dessa maneira em português, latim, espanhol, galego, italiano, catalão, alemão, sueco, norueguês, ocitano, islandês, sardo, romeno; às vezes muda uma ou duas letras finais, como Mary, em inglês, Marie em holandês, Maren em dinamarquês, Mari em galês, Marija em servo-croata, Mari em esloveno e albanês, Marika em húngaro, Maryen em turco, Malia em havaiano…

Chega, estou me exibindo, eu tenho esse defeito, ou característica, sou bem exibicionista, mas não daqueles que sofrem de uma forma de perversão sexual que consiste em exibir as partes íntimas, não, não, meu exibicionismo é pura ostentação.

Pavel Chudnovsky

Enfim, voltando à minha amiga alemã, eu a conheci em Berlim. Alguém, não me lembro quem, nos apresentou dizendo que ela sabia falar e escrever português muito bem e queria conhecer pessoas que falassem essa língua. Maria era uma mulher muito bonita, na casa dos trinta e poucos (só não vou dizer o nome completo dela porque esta é uma história verídica, tudo que eu conto aqui aconteceu realmente). Depois de algum tempo estávamos conversando na cama, e fodendo, é claro, foder com ela era muito bom.

Voltei para o Brasil, mas Maria e eu nos correspondíamos com frequência, mandávamos cartas longas, com poemas, enfim, era mais uma oportunidade para eu me exibir. Um dia a Maria me disse que estava vindo ao Brasil.

Fui esperá-la no aeroporto. Ela chegou, como sempre com vestido de seda, a saia um pouco acima do joelho, certamente de uma daquelas marcas francesas caras, cheia de anéis, colar de pérolas, pulseira de pedras preciosas.

“Estas joias eu comprei em Paris, eu adoro ouro e brilhantes, principalmente esmeraldas”, ela disse quase enfiando o anel na minha cara. “Os sapatos são Roger Vivier, não existe outra marca tão boa em todo o mundo.”

Ela também tinha o seu lado exibicionista.

Levei-a para minha casa, eu moro num apartamento que ocupa um andar inteiro, num prédio na praia, num bairro elegante — caramba! já estou me exibindo novamente, mas isso tudo é verdade, eu evito me gabar, ainda nem disse que sou um homem bonito.

No mesmo dia em que chegou, Maria me disse que queria ir na macumba. Praias, ela conhecia muitas, mas ouvira falar em macumba, uma cerimônia religiosa de pretos e brancos idiotas que acreditam que espíritos podem baixar mediante batuque de tambores e cantilenas.

“Você acredita em macumba, José?”

Claro que o meu nome verdadeiro não é José. O único nome verdadeiro aqui é Maria.

“Eu acredito em saci-pererê”, respondi.

“O que é isso?”

“É uma espécie de duende. Pode ser branco ou preto, usa cachimbo e um gorro vermelho. Luta capoeira.”

“Está falando sério?”

“Claro que estou falando sério. Esqueci de dizer que ele, o saci-pererê, tem apenas uma perna.”

“E como é que ele anda?”, perguntou Maria forçando um tom irônico na voz.

“Dando pulinhos. Quando subo as escadas da igreja da Penha de joelhos sempre encontro lá no pátio da igreja um saci-pererê. Mas só falo com o saci se ele for preto. Não gosto de saci-pererê branco, eles são mentirosos.”

“Você pensa que é muito engraçado?”

“Eu sou muito engraçado, tenho orgulho disso.”

“E quando é que nós vamos a uma macumba?”

“Sexta-feira. As macumbas legítimas são às sextas-feiras, vou investigar o melhor lugar. Hoje é segunda, temos alguns dias para fazer amor.”

Ficamos fodendo segunda, terça, quarta e quinta o dia inteiro e também fodemos na sexta de manhã. Eu e a Maria tínhamos uma libido, uma pulsão sexual muito forte.

A macumba era à noite, num terreiro que ficava num bairro distante do local onde eu morava. Não vou dizer onde era, esta é uma história verídica, como já disse, tudo que conto aqui aconteceu realmente e não quero dar pistas para que descubram minha identidade. Sou uma pessoa importante, tenho que me proteger, neste mundo de hoje as pessoas vivem fazendo mexericos pelo celular.

"chegamos ao terreiro da ialorixá ou mãe de santo, a sacerdotisa-chefe daquele terreiro de candomblé" Foto: Mario Tama / GettyImages

Fomos de carro, andamos um longo tempo por uma estrada barrenta até que chegamos ao terreiro da ialorixá ou mãe de santo, a sacerdotisa-chefe daquele terreiro de candomblé. Não existe mais o babalaô, o sacerdote supremo masculino, depois da morte do último deles, Martiniano do Bonfim, também conhecido como Ojé L’adê, que procurou reforçar o conceito de pureza nagô consultando os babalorixás através dos candomblés do povo kelu, da nação ioruba.

“O povo brasileiro é muito supersticioso, talvez porque a maioria seja de mestiços, e os mestiços, os negros em geral, temem coisas inócuas, depositam confiança em coisas absurdas, sei que você não é mestiço, é cético, mas o povo brasileiro…”, dizia Maria.

Afinal chegamos no terreiro. A mãe de santo, dona Dida, era uma mulher velha, gorda, que estava vestida de branco. No centro do terreiro, ao som dos tambores, várias mulheres, também de branco, dançavam em círculo. Ela olhou para Maria e disse:

“Misifia…” só entendi isso, o resto devia ser em ioruba, língua creio que congolesa.

Maria sussurrou no meu ouvido:

“Esses negros brasileiros são muito primitivos, ignorantes, aliás, na verdade, acho que o povo brasileiro em geral…”

O som dos atabaques não deixou que eu entendesse o resto. A roda de macumbeiras começou a dançar e a cantar, ao som dos atabaques e tambores, em torno de mim e de Maria. Então, inesperadamente, dona Dida apareceu perto de mim e de Maria e disse:

“Misifia…”

Como sempre, não entendi o resto. Então a mãe de santo tirou o colar, depois os anéis de esmeralda, depois a pulseira de ouro, depois os sapatos da Maria, que não esboçou qualquer reação, parecia embriagada. Descalça, Maria começou a dançar seguindo a roda das macumbeiras, todas negras, destacando-se com sua cabeleira loura como se fosse um tocha de fogo.

As macumbeiras e Maria dançaram por algum tempo. Depois os tambores silenciaram. Abracei Maria que, lentamente, voltou a si.

A mãe de santo, dona Dida, entregou as joias e os sapatos para Maria dizendo “Misifia” etc.

Voltamos para casa, passamos pela estrada barrenta, chegamos no asfalto. Eu e Maria em silêncio. Ela fingia que nada havia ocorrido.

Nunca tocamos nesse assunto.

Como eu disse, só acredito no saci-pererê.

Maria voltou para a Alemanha. Mas enviamos e-mails, um para o outro, quase que diariamente. Isso durante mais de dez anos. Um dia recebi uma mensagem que me deixou muito animado. Maria dizia que estava vindo ao Brasil e queria me ver.

Ela chegaria dentro de dez dias. Na véspera de sua chegada, não consegui dormir, nervoso, ansioso, tive medo de ter um ataque cardíaco.

Afinal, depois de muito sofrimento ela chegou. Me ligou do aeroporto.

“Meu amor, cheguei, estou indo para sua casa.”

Fui ver a minha cara no espelho. Escolhi a roupa que devia usar, minhas mãos tremiam.

Tocaram a campainha.

Fui atender.

Abri a porta, não era Maria. Era uma mulher gorda, enorme.

“Sim?”, eu disse.

“Sou eu, não está me reconhecendo?”

Fiquei calado.

“Sou eu, Maria.”
Rubem Fonseca,93 anos, publica nova coletânea de contos, "Carne crua" (Nova Fronteira)

terça-feira, novembro 20

Tributo ao leitor infantil


Kamala

- Eu sou Kamala.
O som da sua própria voz pareceu-lhe romper o encanto que a dominava, e estremeceu toda, deixando cair a cabeça sobre o peito sem poder dar um passo, se bem que a fuga lhe parecesse a única salvação possível. Tinha despendido toda a sua força naquelas três palavras; não lhe ficou nenhuma para suportar a sua vergonha. Estava à mercê de Nalinaksha, estava à mercê da sua bondade.
Lentamente, Nalinaksha levou as mãos de Kamala aos lábios, e disse-lhe: 

- Eu sei! 

Atraiu-a a si, pôs-lhe ao pescoço uma das grinaldas que ela tinha entrelaçado no dia anterior, e murmurou: 

- Inclinemo-nos diante d'Ele... 



Enquanto os dois, lado a lado, tocavam com as frontes o branco pavimento de mármore, o Sol da manhã abençoou-lhes as cabeças inclinadas. 

Erguendo-se, Kamala prosternou-se uma vez mais diante de Nalinaksha. A sua penosa timidez tinha-a abandonado. A sua alegria nada tinha de exuberante, mas sentia-se invadida por uma calma infinita. Cada recanto do seu coração estava cheio de um sentimento absoluto de dedicação, e pareceu-lhe que oferecia, com o seu respeito, a sua vida inteira. De repente, as lágrimas jorraram dos seus olhos, brotadas de uma fonte desconhecida: eram as lágrimas da alegria submergindo por completo a lembrança dos desgostos passados. 

Não lhe falou mais, e, depois de ter desviado da jovem fronte os cabelos ainda húmidos, o marido saiu do escritório. 

Kamala entregou-se aos seus trabalhos quotidianos, como se se entregasse ao serviço de um deus. A tarefa mais ínfima representava para ela uma prece, subindo ao céu na mais confiante alegria. Ao cair da tarde, Nalinaksha entrou no quarto de Kamala com uma braçada de grandes flores de aruns.
- Kamala – disse ele –, põe estas flores na água para as conservar frescas: esta noite iremos pedir a bênção a nossa mãe. 

- Mas – disse ela timidamente – eu não vos disse nada... 

- Eu sei tudo. 

Kamala, corando, velou o rosto com o sari... 
Rabindranath Tagore , "O Naufrágio"

Leitura noturna

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Livraria de antigamente

Outro dia, falando sobre o Rio de hoje, Antônio Callado disse que sente falta de uma livraria como aquela de antigamente. E citou a Freitas Bastos e a Civilização Brasileira. A Freitas Bastos ficava no andar térreo do Liceu de Artes e Ofícios, no prédio que foi abaixo para dar lugar à atual sede da Caixa Econômica Federal. O local era privilegiado — esquina da Rua Bittencourt da Silva com Largo da Carioca. No primeiro andar desse prédio, ficavam a redação e a oficina d’O Globo. Ali, Callado começou a sua vida de jornal, ao lado de Nelson Rodrigues e do hoje editor Alfredo Machado, antes de passar ao “Correio da Manhã” e de ir para a Inglaterra trabalhar na BBC durante a guerra.

A referência à Freitas Bastos presumo que esteja ligada, na reminiscência de Callado, a essa antiga sede d’O Globo. por onde passei vários anos depois. Quanto à Civilização Brasileira. está associada à editora do mesmo nome e, claro, ao nosso amigo Enio Silveira, o bravo intelectual que desde cedo se projetou como editor e livreiro. Como editor de Callado, Ênio lançou a 1ª edição de “Quarup”. Como autor, também eu passei pela Civilização. com uma novela que foi incluída no livro dos Sete Pecados Capitais. Enio teve a idéia e me incumbiu do pecado da avareza.


Com uma ponta de nostalgia, Antônio Callado devia estar pensando num tipo de livraria que já não existe hoje no Rio — grande estabelecimento em que era possível encontrar de tudo. Tudo aqui tanto se refere a livro como a gente. Ou pelo menos certa classe de gente chegada a livros: o professor e o aluno, o romancista consagrado e o poeta inédito, o erudito em busca de uma raridade bibliográfica e o curioso atrás de uma novidade. Essas livrarias dos anos 40 e 50 ainda conservavam uma atmosfera da remota tradição do salão literário. Não era apenas uma loja para vender livros. Eram também um ponto de encontro para o bate-papo, a troca de idéias e de fuxicos.

Não sei se há uma história das livrarias do Rio. Sei, porém, que ela anda dispersa em muitos livros de memórias, em biografias e em crônicas da cidade. A livraria faz parte da vida cultural de uma nação. No caso do Rio, que ainda se ousa chamar de capital cultural do Brasil, as livrarias têm uma história inseparável da própria história de nossas letras. Para não ir muito longe e ficar num exemplo notório, bastaria evocar Machado de Assis na Livraria Garnier. Era lá, na Rua do Ouvidor, que à tarde ele se tornava visível, cercada pelos velhos amigos e pelos novos admiradores. Na mesma rua, anos mais tarde. na Livraria José 0lympio, Graciliano Ramos assinava o ponto todo santo dia, num grupo a que pertencia também José Lins do Rego.

A propósito da entrevista de Antônio Callado, andei me lembrando das livrarias de antigamente em Belo Horizonte. Mera coincidência, leio num jornal de Minas a noticia da morte de Oscar Nicolai. Tinha 78 anos. Nasceu em Buenos Aires e aos oito meses foi para Porto Alegre. Em 1930, instalou-se em Belo Horizonte, como representante da Editora Globo. Estabeleceu-se primeiro na Av. Paraná. Comprou depois um bar na Av. Afonso Pena e ali conheceu o esplendor e a glória, com a livraria situada no endereço comercial mais caro da cidade. Era impossível importar livros da Europa, sobretudo da França, por causa da guerra. Com um espaço de catedral, a Livraria Nicolai tinha tudo que editava no Brasil e abriu um horizonte para a América Latina, em particular para Argentina, Chile e México.

Mais do que isso, porém, o que o Nicolai nos abriu foi um crédito baseado mais em nossa fome de leitura do que em nossa capacidade financeira. Fora o felizardo do Sábato Magaldi, que tinha o respaldo paterno, todos nós atolávamos em dívidas. Bom psicólogo, ou excelente vendedor, o Nicolai deixava que levássemos os livros para casa, a titulo de experiência, com direito a devolução. Claro que ninguém conseguia devolver nada e tinha que cair com o dinheiro, mesmo a prestação.

Quando submarinos nazistas afundaram navios brasileiros, a Livraria Alemã foi saqueada e incendiada. Foi um ato digno de Hitler. A família Blubm mudou-se para o Rio. O Nicolai prosperou e cresceu. A livraria era espaçosa e acolhedora, onde encontrávamos os livros, nossos amigos, e os nossos amigos, amigos dos livros. Com o sistema de crédito pioneiro e cordial, Oscar Nicolai estimulou o vicio impune da leitura e contribuiu para a nossa definitiva dependência desse objeto de consumo, todavia sagrado, que é o livro.
Otto Lara Resende

segunda-feira, novembro 19

Ainda não acabou o feriadão

Mordillo

Curtinhas e talvez pretensiosas

O velho Machado conversando com Bentinho: já disse que não sei nada do Escobar e da Capitu. Eu sou só o autor.

***

De Oswald para Mário de Andrade: aquele ali de tílburi não é o Graça Aranha?

***

Nada mais gentil que um poema concretista quando abre sua piscina para crianças da vizinhança num dia de abril.

***

Consta que os poemas concretos foram os primeiros a acolher projetos de aquecimento solar.

***

Linguagem comportada, pronomes no lugar. Não há mais burgueses a espantar.

***
Willem Boon

Para os frasistas que vieram depois de Millôr restou pouco mais que o descaramento do plágio.

***

O poeta velho hoje tem pena de sua poesia: tantos anos em tão má companhia.

***

Foi um morto exemplar. Aceitou todos os elogios sem ruborizar.

***

Será punido quem, como eu, passar a vida ostentando a tristeza como patrimônio.

***

Quando assobia teu nome, o vento finge ser flauta.

***

Um dia você faz a besteira de se declarar poeta. Aí passa a vida inteira tentando provar.

***

Seres ou não seres poeta – a preocupação de toda a tua vida – é hoje tão importante quanto saber se o olho cego de um defunto é o esquerdo ou o direito.

***

Ah, se Deus a ventura me desse de ser desencaminhado pela voz da moça do GPS.

***

Do declarante ao leão do IR: pode me comer, mas poupe os meus dependentes.

***

De uma frase longa ao escritor: não está na hora de abrir um parágrafo?

***

Se eu estivesse morto, quem de meu gato cuidaria e de minha melancolia?

***

Louvados sejam os tolos que há séculos alimentam com seu sangue o mito do amor.

***

Se os teóricos tivessem o dom da síntese, diriam que literatura é o ato de escrever.

***

Olavo Brás Martins já não estava bom demais? Precisava dos Guimarães Bilac?

***

Eu, se fosse fazer uma campanha de reabilitação dos aforismos, começaria mudando seu nome.

***

Adolescência radiante: o pecado morava ao lado ou um pouco adiante.

***

Não nasci para escrever. Experimentei – e fui me viciando.

***

De Mario Quintana ao passarinho: está desafinando, mas você é novo. Vai melhorar.
Raul Drewnick

domingo, novembro 18

Passear


Leitora

Confesso o vício de ler
Jacques Chapiro
afago
cada palavra
Bebo o feitiço das histórias
cada rosa cada asa
por onde a busca se enlaça
Revolvo-me na ruptura
ou na ternura descalça
onde a caneta sutura
Tomo o corpo da leitura
enredo-me no seu abraço
ora vestida ora nua
Ao longo deste prazer
não há nada que eu não faça
em entrega e em devassa
Indo mais longe no ler
encontro o cisne e a rola
na tocaia do prazer
Tenho a paixão da leitura
teima na escrita do perigo
e estremeço de prazer ao entreabrir um livro
Corro as mãos nas suas espáduas
desnudo frases de feltro
afloro as suas pálpebras
Entrelaço as consoantes
com as vogais e o enredo
diante das fantasias no sobressalto do medo
Descubro escusas passagens
pelas cisternas dos livros
ao desfolhar suas páginas
Na entrega e no sustido
nas lágrimas e no sorriso
entre o ardil e o tigre
Ora cumprindo
a harmonia
ora querendo a transgressão
Sou uma leitora voraz
tenho um trato com a audácia
e outro com o perdimento
Entre a leitura e a escrita
existe um espaço sedento
rebeldia e firmamento
Digo tempo e confissão
das cartas das bibliotecas
das literaturas secretas
Corro nas linhas dos livros
tropeçando
de avidez

Na cama quero as palavras
Enoveladas errantes
com elas sou viajante
No rumo da minha
vida
estão os livros e as estantes
Gosto de beber o cheiro
do interior da leitura
temperado com canela e as coisas obscuras
Deleito-me com a poesia
endoideço com o romance
esquivamento das mulheres
com a sua escrita de leite
de linho e alquimia
de aço rumorejante
Encontro a rima cismada
dobo a palavra a vapor
na teima de quem porfia
Vou em busca do fulgor
corro atrás da literatura
dos textos e da leitura
Sou dependente dos livros
sem eles posso morrer
perco-me de tão perdida se proibida de ler
Maria Teresa Horta, "Pessoa: Revista de Ideias", Nº 4 (Setembro de 2011)

sábado, novembro 17

Para o leitor, não tem outro


Assim começa o livro....

— Ora, ora! Lá vem de novo o capote velho!

Essa exclamação escapava de um escriturário do tipo daqueles que nos escritórios de advocacia chamam de pula‑brejo e que naquele momento mordia com apetite um pedaço de pão; separou um pouco de miolo para fazer uma bolinha que atirou zombeteiramente pela abertura de uma janela na qual estava encostado. Bem mirada, a bolinha ressaltou quase até a altura dos caixilhos, depois de ter acertado o chapéu de um desconhecido que atravessava o pátio interno de um edifício situado na rue Vivienne, onde residia o advogado Derville.

— O que é isso, Simonnin, não brinque com os outros, senão ponho você no olho da rua. Por mais pobre que seja, um cliente é sempre um homem, que diabo! — disse o escriturário principal, interrompendo a soma de uma nota de despesas.

Geralmente, um pula‑brejo é, como Simonnin, um garoto de treze a catorze anos, que em todos os escritórios de advocacia se encontra sob a dominação especial do escriturário principal, de cujos pequenos serviços e recados amorosos se encarrega quando vai levar os ofícios aos meirinhos e as petições ao Palácio de Justiça. Ele tem a ver com os meninos de rua parisienses por seus modos e com a chicana por seu destino. É um garoto quase sempre implacável, irrefreável, indisciplinável, fazedor de rimas indecentes, trocista, ávido e preguiçoso. Apesar disso, todos esses pequenos auxiliares têm uma mãe velha que mora num quinto andar, com a qual compartilham os trinta ou quarenta francos que recebem por mês.

— Se é um homem, por que então o senhor o chama de capote velho? — disse Simonnin, fazendo a cara do estudante que pega o professor em erro.

Voltou a comer o pão e o queijo encostando o ombro no montante da janela, pois ele descansava de pé, como os cavalos dos cabriolés, uma das pernas erguida e apoiada na outra pela ponta do sapato.

— Que peça poderíamos pregar nesse sujeito? — disse em voz baixa o terceiro escriturário, chamado Godeschal, parando no meio de um raciocínio que elaborava numa petição minutada pelo quarto escriturário e cujas cópias eram feitas por dois novatos vindos da província. Depois continuou seu improviso:

— … Mas, em sua nobre e benevolente sabedoria, Sua Majestade, Luís Dezoito (escreva por extenso, ouviu, ó sábio Desroches, pois que redige o original!), a alta missão a que é convocada pela Divina Providência!…… (ponto de exclamação e seis pontinhos: no Palácio são pios o bastante para perdoá‑los), e seu primeiro pensamento foi, como prova a data do decreto abaixo citado, reparar os infortúnios causados pelos terríveis e tristes desastres de nossos tempos revolucionários, restituindo a seus fiéis e numerosos servidores (numerosos é uma lisonja que deve agradar ao Palácio) todos os seus bens não vendidos, quer se encontrassem no domínio público, quer se encontrassem no domínio ordinário ou extraordinário da Coroa, quer enfim se encontrassem nas dotações de estabelecimentos públicos, porque somos e nos pretendemos capazes de sustentar que é esse o espírito e o sentido do célebre e tão leal decreto promulgado em…

— Esperem — disse Godeschal aos três escriturários. — Essa frase celerada encheu o fim da minha página. Bom — prosseguiu, molhando com a língua o verso do fólio a fim de poder virar a página espessa de seu papel timbrado —, se quiserem lhe pregar uma partida, digam que o senhor Derville só pode falar com seus clientes entre as duas e as três da manhã: veremos se esse velho malfeitor vai aparecer!

E Godeschal retomou a frase iniciada:

— … promulgado em… Estão prontos?

— Sim! — exclamaram os três copistas.

Tudo avançava ao mesmo tempo, a petição, a conversa e a conspiração.