terça-feira, março 31

Depois de muitos dias...

Depois de muitos dias de névoa seca, vieram as chuvas. Fazia um friozinho de inverno em país tropical ou de começo de outono em país temperado. Quinta-feira o dia deu novamente em chuvoso, com as nuvens escuras ameaçando um fim de semana enevoado. Ventos altos, no entanto, espancaram as nuvens para longe e o céu deu estrelas claras e uma lua fulgurante. Os que olhavam para o céu sentiram de súbito a falta que lhes faziam, sem que o notassem, os astros luminosos.

Na manhã de sexta, o sol se abriu. Na praia, havia pouca gente. Em Ipanema, no espaço já determinado pelos cronistas sociais como “bem” para a frequência de pessoas elegantes, não se via um só grã-fino. No lugar deles, havia um bando de pessoas diferentes: mocinhas ainda mal arrumadas dentro de seus corpos, gordas já repousadas dentro das banhas, três rapazes e um menino. As mulheres, pudemos contá-las, eram 22. A um canto, perto do paredão, se amontoavam roupas e bananas. Não era preciso nenhuma argúcia para ver que na manhã de sexta-feira, uma família suburbana, esquecendo os compromissos e os aborrecimentos, recebera com toda a simplicidade e exaltação o milagre do sol. A dona da casa, aquela mais sacudida de carnes, mãe de uma meia dúzia daquelas meninas, abriu uma janela, viu a luz cantando nas árvores, e sentiu uma coisa. A coisa era antilógica, doida, mas forte e inelutável como um desejo de amor.

“Hoje vamos todos tomar banho de mar em Ipanema.”

As meninas correram a buscar suas roupas de banho, já sem uso há muitos outros meses, fora de moda há alguns anos, e por isso mesmo eternas e cheias de poesia em seu colorido desbotado.

“Telefona para Juca; fala com ele para trazer o ônibus”. Juca, aquele de calção mescla, tinha um ônibus velho.

Outros telefonemas foram dados, convocando parentes e amigos da vizinhança. O lirismo, decididamente, tinha visitado o subúrbio na manhã de sexta-feira.

Ei-las agora em Ipanema, como um bando de marrecas alegres na água fria. Não sabem comportar-se, não sabem andar, não sabem pentear-se. Sabem apenas viver. Gritam de contentamento, correm umas atrás das outras, espapaçam-se sem poses na areia morna. Nos intervalos, comem bananas e sorriem. Enquanto isso, as sombras dos grã-finos ausentes, desagradadas com o alvoroço, vaiam a vida.

Leitura colore o mundo

 Olaf Hajek

A tempestade do destino

Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.

(...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.

E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.

Haruki Murakami, "'Kafka à Beira-Mar"

segunda-feira, março 30

Falou!

Sem os livros sou infeliz. Com os livros existe a possibilidade da felicidade
 (Sem indicação de autor,rascunhado em pedaço de papel encontrado entre as páginas de um livro de sebo)

Ver o mundo pela janela


No princípio era a palavra

Gisela Navarro Fuster
Em 1898, um obscuro escritor norte-americano, Morgan Robertson, publicou um romance intitulado “Futility or The Wreck of the Titan” ("Futilidade ou o naufrágio do Titan"). Robertson, que, na sua juventude, trabalhara em navios, como moço de cabine, conta no livro a história de um enorme transatlântico, o Titan, considerado inafundável, o qual, na sua primeira viagem, bate contra um iceberg e afunda. Quatorze anos mais tarde, um gigantesco navio de passageiros, o Titanic, bateu contra um iceberg e afundou, dando origem a um dos mais fascinantes mitos da História moderna.

Lembrei-me de Morgan Robertson na sequência da atual pandemia de coronavírus, e de uma breve troca de mensagens com o escritor português Gonçalo M. Tavares. “Por ironia trágica estou há anos a escrever um livro enorme, chamado ‘A peste nos Estados Unidos da América’, uma epopeia”, revelou Gonçalo. Quanto a mim, concluí nos últimos dias do ano passado um novo romance, “Os vivos e os outros”, no qual imagino um grupo de escritores que, na sequência de uma tempestade e, logo a seguir, de um evento apocalíptico, permanece isolado numa pequena ilha da costa oriental de África, a Ilha de Moçambique.

Gonçalo não se surpreende: “Essas coisas andam no ar”, diz. Penso o mesmo. Escritores, e criadores em geral, são simples antenas. Captam o que anda no ar.

Há alguns anos, o escritor moçambicano Mia Couto contou-me uma história de que gosto muito. O meu amigo terminara de escrever “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), romance no qual conta a história de Silvestre, um homem desiludido com a humanidade, que arrasta os dois filhos para uma região isolada porque, diz-lhes, o mundo acabou. O livro estava pronto, mas ainda não fora publicado, quando Mia recebeu uma proposta de trabalho, enquanto biólogo, que implicava uma viagem pelo interior do país. Numa aldeia remota encontrou um velho que lhe disse ser cego. Na manhã seguinte, porém, Mia encontrou-o a ler. “Mas você não me disse que era cego?”, perguntou-lhe. E o homem respondeu: “Só não sou cego enquanto leio.”
 Leitores não são ilhas. São universos em expansão
Na verdade, não tenho a certeza se a ficção adivinha o futuro, ou se, pelo contrário, o constrói. Esta é, aliás, a tese do meu novo romance. O que faço, afinal, é levar a sério a primeira frase de um dos livros mais lidos (e, provavelmente, menos compreendidos) do mundo — a Bíblia. “No princípio era a palavra”, afirma a Bíblia. Ou seja, antes do real, existia a palavra. É a palavra que cria a realidade.

Os magos, ou xamãs, em todas as culturas ao redor do globo, antes e depois da afirmação do cristianismo, acreditam no mesmo. Não por acaso, a poesia começou por ser uma disciplina da magia. A palavra evoca os deuses, dá existência a seres e a objetos. A palavra cria e descria os enredos, desenha a linha do tempo.

O momento que vivemos inquieta porque não conseguimos ver para além da montanha. Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao que vem depois?

Talvez a resposta já tenha sido dada, algures, por algum escritor. Também por isso, nada melhor do que aproveitar os dias de isolamento para ler. Ler, aliás, é a melhor maneira de contrariar o isolamento. Leitores não são ilhas. São universos em expansão.
Jose Eduardo Agualusa

domingo, março 29

Conselho aos 'atletas'


De repente

Pierre Pivet
E de repente, caminhando nesse dia de novembro, atribulado de deveres, no ano trigésimo quinto de minha história confusa e malbaratada, quando todas as amarguras já bebi, nem de todo sábio, nem de todo bobo, não tendo outro propósito no espírito senão o de abrir bem os olhos, pegar os objetos, ouvir, provar os vinhos turvos, respirar este aroma vegetal de outras tardes antigas, receber, enfim, a dádiva dos sentidos e cumpri-la, aquecendo-me ao sol, molhando-me na chuva e no mar, de repente, em meu caminho, cruzando por um cego embriagado e crianças de uniforme, imaginando com remorso que a gente esperdiça tempo demais a trabalhar sem amor, de repente, sem qualquer disposição para o jornalismo, grave e sereno às quatro horas da tarde, empenhado em não deixar o dia partir inutilmente, dedicando-me com toda a honestidade a enamorar-me do mundo e deste momento inelutável, como quem segura um vaso de louça, de repente, repito, ocorreu-me de novo o milagre, e doeu-me — coisa espantosa — uma saudade magnífica de Paris na primavera, os plátanos agitando as ramas no ar silente, os bancos à beira do rio, onde li e reli que sob a ponte Mirabeau corre o Sena, e a alegria sempre vinha após a pena, e era uma saudade mais de mim a vadiar pelas ruas e os bosques, indo e vindo pelo cais da margem esquerda, remexendo livros empoeirados, admirando a cor e o imponderável de Paris, brincando com as pontes o eterno jogo da poesia, afeiçoando-me até morrer pela ilha de São Luís, as torres góticas encostadas em luz de ouro, e outras cores, outras ramagens, ruas que faziam por si mesmas o meu destino, os vinhos tintos do crepúsculo, as brisas eufóricas, uma saudade, disse eu, sem jeito, feérica, rue Gît-Le-Cœur, rue de Hautefeuille, rue de la Harpe, rue du Chat Qui Pêche, uma saudade que me dispersava, fatalizando-me suavemente, inclinando-me às águas quiméricas do tempo, como me perco no olhar de quem amo.

Em casa, com livros e flores

 Alicia Varela

Mercado editorial brasileiro já sofre impacto do coronavírus

Após meia década de crise, o mercado editorial brasileiro deve enfrentar em 2020 o seu pior ano, segundo as estimativas de livrarias e editoras de diferentes portes. Todas elas têm sofrido com a queda nas vendas — em alguns casos superiores a 90% — em decorrência do fechamento das livrarias e da expectativa de uma nova recessão econômica diante da pandemia do coronavírus.

A queda nas vendas e a falta de perspectiva econômica puseram em lados opostos parte dos livreiros e dos editores. Na última quarta-feira o grupo Juntos pelo Livro, que reúne 102 editoras de diferentes portes, publicou uma carta aberta em resposta aos “comunicados de diversas redes de livrarias e distribuidores nos últimos dias, informando-nos unilateralmente sobre suspensões de pagamentos por tempo indeterminado, prorrogações de prazos de pagamentos para faturas vencidas ou vincendas, ou, ainda, de suspensões de envios de acertos de consignação igualmente sem previsão de retomada.” Entre as livrarias citadas pelo site PublishNews estavam a Livraria da Vila, a Blooks e a Leonardo Da Vinci, além das redes Saraiva e Cultura, em recuperação judicial.

Ahmedabad (Índia)
Segundo Luiz Fernando Emediato, dono da Geração Editorial, a carta pública foi decidida após uma reunião de emergência feita no domingo. O editor afirma que a intenção das editoras signatárias é receber os valores referentes às vendas realizadas antes do fechamento das lojas:

— Até março eles têm que pagar, porque receberam. De agora em diante nós vamos negociar. O que não se pode admitir é um e-mail avisando "por causa da pandemia vamos suspender os pagamentos”.

A carta pública – e a citação das livrarias – incomodou parte dos livreiros.

— Me parece equivocado colocar livrarias pequenas no mesmo balaio de grandes redes devedoras ou empresas com capacidade financeira. A Da Vinci, especificamente, pediu apenas uma coisa: que seus atrasos no pagamento não fossem protestados tendo em vista uma situação inédita na história. Não falamos em não enviar acertos ou qualquer outra coisa — afirma Daniel Louzada, dono da Livraria Da Vinci.

Presente nos cinemas de rua, a Blooks está com cinco de suas seis lojas fechadas desde o sábado retrasado, junto do fechamento dos teatros e salas de cinema. No final da semana passada, sua loja no shopping Frei Caneca, em São Paulo, também fechou. A proprietária, Elisa Ventura, afirma que seu faturamento caiu a zero nas duas últimas semanas.

— A gente tem uma loja online muito limitada. A gente está atendendo três vendas por dia — diz Elisa.

Ela afirma que, embora sua prioridade seja o pagamento dos 25 funcionários (em férias coletivas), seu objetivo é renegociar com os fornecedores:

— Ninguém está propondo dar calote. Estou pedindo um pouco de calma. Minha receita virou zero.

Samuel Seibel, presidente da Livraria da Vila, afirmou que “em nenhum momento falamos em suspensão de pagamento”:

— Temos feito contato com nossos fornecedores para tratar de reprogramação destes pagamentos. Sempre fomos e continuaremos a ser parceiros das editoras.

A “da Vila” tem, agora, buscado uma nova estratégia para o comércio digital – o seu foco sempre foram as lojas físicas –, com sugestões de livros feitas por seus livreiros.

O cenário não é melhor para outras livrarias, como a Argumento, do Rio de Janeiro. Com as duas lojas fechadas – no Leblon e na Barra da Tijuca – a livraria tem realizado vendas de livros pedidos via WhatsApp.

— Realizamos mais ou menos 10 vendas por dia. Cada venda tem sido de 5 a 8 livros. – afirma Marcus Gasparian, um dos sócios da Argumento, e também responsável pela entrega dos livros. O número representa 10% de seu faturamento anterior.

A Livraria da Travessa – que vinha em um projeto de expansão, com a abertura de uma unidade em São Paulo, em Lisboa e a construção de outra em Niterói – está fechada desde a última quinta-feira, mantendo apenas o site, responsável por 15% de suas vendas, em funcionamento.

Para o proprietário da rede, Rui Campos, o momento é de negociação.

— Como o governo vai se comportar em termos de apoio, redução de encargos, como vai ser a relação com senhorios, como os shoppings vão lidar com seus lojistas? Tudo isso a gente vai ter que negociar — afirma. — Da mesma forma que a gente tem que focar nosso esforço em manter as lojas abertas e manter os funcionários, os editores têm que fazer esse esforço de fazer o mercado livreiro funcionando.

A Janela Livraria, inaugurada no início de março no Rio de Janeiro com a proposta de ser uma livraria de rua, também parou suas atividades e estuda alternativas para manter-se.

— Mantivemos a inauguração [em 13 de março], mas percebemos logo no início da semana que a livraria-café virou um lugar que atraía as pessoas para fora de casa. Diante da velocidade dos acontecimentos, qual o sentido de ficar abertos? – afirma Letícia Bosisio, uma das proprietárias da livraria.

O editor e livreiro Alexandre Martins Fontes, dono da livraria Martins Fontes – com duas lojas em São Paulo – e da editora WMF Martins Fontes, tem se equilibrado entre os dilemas dos dois lados do setor.

— Como editor passei a receber comunicados, telefonemas das principais livrarias brasileiras pedindo uma prorrogação do prazo de pagamento. Não tenho outra opção a não ser concordar com esse pedido. Do lado do livreiro, nós fizemos uma seleção das principais editoras e estamos pedindo uma prorrogação do prazo de pagamento. — afirma Fontes, que pretende, até onde for possível, manter o pagamento das pequenas editoras.

Com o fechamento das lojas na última quinta-feira – uma delas na avenida Paulista – Fontes ficou sem 70% do seu faturamento. Pretende investir na venda pela internet.

— Vamos fazer um trabalho mais agressivo de vendas especiais, de acordos especiais com as editoras.

No entanto, reconhece que o cenário é pouco promissor, diante da recessão que se avizinha. No primeiro final de semana as vendas pela internet caíram em torno de 10%.

Nesse contexto, a Amazon Brasil enviou, na quarta-feira, um e-mail a uma série de editoras estabelecendo uma taxa “Covid-19” com uma nova tabela de descontos pelo pagamento antecipado dos livros adquiridos das editoras. Até então, a varejista descontava de 2% a 8% do valor a ser pago às editoras, conforme a quantidade de dias antecipados. Agora, propõe, pelos dias antecipados, taxas que vão de 0,5% a 2% “por tempo indeterminado”.

Procurada, a Livraria Cultura não retornou à reportagem. A Saraiva afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “não irá se posicionar”.

A Companhia das Letras pretende dar auxílio aos pequenos livreiros, recebendo pedidos de livros do Grupo e remetendo-os aos clientes.

— É nossa obrigação tentar dar apoio à cadeia livreira – afirma Otávio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras.

O grupo anunciou neste mês o cancelamento de todos os lançamentos previstos para o mês de abril e trabalha na expectativa de cancelar também os lançamentos de maio. Mesmo diante das incertezas, a Companhia das Letras não pretende lançar apenas em e-book os livros previstos.

— Achamos que é ruim para a obra e para o autor ter o livro lançado somente em e-book – diz Costa.

A Todavia, por sua vez, além de cancelar os lançamentos previstos para abril, reduziu os lançamentos de maio e junho de seis para dois livros a cada mês. E tem investido tanto no formato e-book – até 31/3 os e-books da editora estão com desconto de até 70% - quanto nas vendas de livros pelo site da editora, também com desconto. Ainda assim, a editora prospecta um cenário de “queda drástica” nas vendas.

— [A gente não sabe] se vai haver uma migração grande para o on-line ou se o off-line vai sofrer muito, porque depende de correio, estoque — afirma Flávio Moura, um dos sócios da Todavia.

A Globo Livros tem trabalhado com foco no comércio online, para estimular o consumo de livros e para ampliar a venda de e-books.

— Vamos focar em títulos cujo leitor clássico é adepto de compras pela internet — afirma o diretor Mauro Palermo. 

A editora não pretende alterar a quantidade de livros a serem lançados em 2020 — num cenário de fechamento das livrarias por dois ou três meses.

— Vamos adiar por tempo indeterminado o lançamento de títulos que apresentem como público alvo leitores mais reativos à compra pela internet.

A Carambaia cancelou seus lançamentos para abril, maio e junho. Ainda assim, mantém alguns livros em produção.

— A partir do momento em que os livros estiverem prontos a gente espera o que vai acontecer – diz Fabiano Curi, diretor editorial da Carambaia.

A editora tem no comércio digital uma fonte importante de faturamento — entre 60% e 65% de suas vendas são pela internet — mas não espera que haja um crescimento nas vendas pelo e-commerce.

— Essa visão é otimista demais. A gente está vendendo em torno de 15%, 20% do que normalmente a gente vende. Não acredito que esse número vá mudar — afirma Curi.

Nesta sexta-feira (27), o Sindicado Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a Associação Brasileira de Livrarias (ANL), a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e a Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros) enviaram, em conjunto, ofícios ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e ao presidente do BNDES, Gustavo Montezano, solicitando medidas de auxílio ao setor. Entre os pedidos de livreiros e editores, estão a abertura de linhas de crédito em bancos públicos, a prorrogação do pagamento de impostos por 180 dias e a manutenção dos programas governamentais de aquisição de livros.

— O BNDES já sinalizou linhas de créditos para micro, pequenas e médias empresas. Temos uma oportunidade histórica, porque os juros nunca estiveram tão baixos. Editores e livreiros precisamos buscar crédito e financiamento, ser pró-ativos — diz Marcos da Veiga Pereira, editor da Sextante e presidente do SNEL. — Comunicar aos editores a suspensão dos pagamentos foi uma reação de desespero dos livreiros, foi a primeira reação de quem teve que fechar a loja e viu sua receita cair a zero de um dia para o outro. Não é hora de de botar a faca no pescoço de ninguém, não vai adiantar nada. O que precisamos agora é fazer uma grande renegociação. Meu recado é: vamos buscar crédito e financiamento para voltar aos negócios.Danilo Thomaz

sábado, março 28

Em tempos de isolamento


Folclore de Deus

Para Deus, tudo dos homens é o mesmo folclore: o cego Deraldo e Goethe, o inventor da roda e Einstein, Vitalino, de Caruaru, e Rodin, a "Saudade de Ouro Preto" e a "Heroica"; Lampião e Napoleão são rimas aos ouvidos de Deus.

O sabugo de milho vira foguete nas mãos do menino, mas o foguete vira sabugo nas mãos transespaciais de Deus.

Para Deus, tudo dos homens é a mesma simplicidade: a bola é de Paulo; Paulo corre atrás da bola; Eva Curie viu a ave; vovô Freud viu o ovo. Deus acha graça em nossos elementos. 

Há doenças dispendiosas que se tratam anos a fio em hospitais suntuosos; há homens fortes que (só) carregam nos estádios o secreto câncer de viver; mas para Deus todas as doenças são dores de cabeça.

Para Deus, todos os homens são pobres: mendigos das esquinas de Wall Street, indigentes dos cartéis do aço, flagelados dos subterrâneos petrolíferos; mas Deus prefere os pobres sinceros, e os faz invisíveis.

Deus é o único hipnotizador: crescei e multiplicai-vos, e os homens inventam passagens sobre e sob o rio, semânticas, paixões assassinas; mas, a uma certa hora, ele nos convence de que estamos mortos; de mãos cruzadas e olhos estarrecidos, a gente acorda.

Deus é a moeda clandestina em um país estrangeiro: pobres de nós se confundimos a sua efígie de ouro de lei com perfil niquelado de César.

Para Deus, todos nós somos loucos metidos em camisas de onze varas: sobre os ombros do paciente, ele coteja os graus de certeza neurótica do analista.

O que seguras em tua mão é aquilo que te prende; o que possuis é aquilo que te priva; mas Deus diz: bebe a água sem bebê-la; anda por toda parte sem ir a parte alguma.

Na semente, Deus é árvore; na árvore, Deus é a semente. 

Onde a palavra começa, a palavra acaba, e aí está Deus.

Para Deus, todos os homens levam nos bolsos objetos escondidos: selos antigos, uma esfera de aço, um anzol enferrujado, um canivete sem folha; por isso é preciso, de pena de nós mesmos, fazer força para não chorar. Pois todo menino enterra seu tesouro.

Deus é a luz, e assim a energia é a matéria multiplicada pelo quadrado da velocidade de Deus. 

Deus dá nozes a quem tem dentes: ao funâmbulo, Deus estende a corda; o sofrimento, Deus dá a quem tem alma; a alegria, essa Deus a reservou para quem não tem nada.

Deus é o grande madrugador: ele estava de pé entre folhagens portentosas na úmida aurora do mundo; e ele andava em ti enquanto dormias.

Mas Deus é também o grande boêmio: ele passou por tua noite quando bebias teu penúltimo copo de vinho; talvez não o viste, mas todos os teus sentidos se alertaram, e bebeste um gole inquieto e enxugaste teus lábios com o dorso da mão e sentiste saudade de tua casa. 

Deus é a chave de ouro do poema; mas as outras 13 chaves pendem de teu chaveiro; e os metais de tuas chaves abrem aposentos de frustração, onde não te encontras.

Deus é o guardião, a zaga, o meia-apoiador, o ponta-de-lança e o entendimento misterioso entre as linhas; o ferrolho não prevalecerá contra ele; por isso as multidões vibram com o seu virtuosismo.

Para ele, o homem primitivo será o último homem, e o primeiro homem foi o único sábio. Sendo o centro do círculo, todos os pontos que formam o tempo são equidistantes de Deus.

Refresque tuas palavras


O filho perpétuo

A guerra carregou as pessoas, os seus próprios filhos desapareceram como se fossem ondas, nuvens, plumas sem peso. A guerra é um mar que se afoga sozinho. Foi pelo regresso do mar que Baraza pediu a Deus pelo dia de hoje

Baraza senta-se num velho tronco da mangueira. Ocupa aquele assento com a gentileza de uma sombra. Do outro lado do terreiro, à distância de uma vida, fica a improvisada maternidade da aldeia: quatro estacas de madeira sustentando uma casota de capim e adobe. Baraza espera que a sua mulher, Farai, dê à luz aquele que será, jura ele, o último dos seus filhos. Proclama alto essa certeza como se decretasse o fim de toda a humanidade.

Sentado nesse velho tronco, Baraza vai afiando o silêncio. Com essa lâmina ele irá golpear o tempo da espera. No casebre em frente abre-se, enfim, uma porta e emergem as parteiras cantando. É um rapaz, conclui. Se fosse uma menina elas dançavam. É assim que se procede na sua aldeia.


– Não entre já – manda uma das parteiras. – Deixe que os ossos da criança sequem mais um pouco.

– O parto já aconteceu – diz uma outra. E acrescenta – Mas esse menino ainda continua a nascer.

Baraza volta a sentar-se, surpreendido com a docilidade com que aceita as ordens das parteiras. Há momentos em que devemos obedecer às mulheres. Este é um deles, condescende ele. Retira do bolso uma velha garrafa de tontonto. Ergue a cabeça, leva a garrafa à boca. Enche os olhos de sol enquanto a garrafa se foi vazando. Quando os lábios se tornam vidro, Baraza faz estalar a língua nos dentes. Se a intenção era impressionar alguém, melhor teria sido ter ficado quieto. Não há ninguém naquele terreiro. Passam-lhe pela cabeça os seus cinco filhos. Todos nascidos naquele mesmo casebre, daquelas mesmas mãos, daquele mesmo ventre.

Os filhos estão a levar-me o rosto, pensa ele, fazendo deslizar os dedos pelas rugas da testa. Das vezes anteriores, aquele terreiro estava cheio de gente, a espera tinha sido partilhada. A guerra carregou as pessoas, os seus próprios filhos desapareceram como se fossem ondas, nuvens, plumas sem peso. A guerra é um mar que se afoga sozinho. Foi pelo regresso do mar que Baraza pediu a Deus pelo dia de hoje.

As parteiras finalmente se retiram. Passam por ele e executam uma espécie de vénia. Uma delas sugere que regresse no dia seguinte. Não se visita no escuro quem acabou de nascer. Baraza faz de conta que escuta. E permanece calado e quieto como se fosse feito da madeira do assento.

Deixa que a noite ganhe peso, aproxima-se da maternidade e abre a porta sem ruído. Quase tropeça na mulher, deitada numa esteira que ocupa todo o quarto. Está adormecida, vencida pela exaustão. Baraza ajoelha-se para separar o menino dos braços da mãe. Esforço vão. Não são braços que fundem os dois corpos. São lianas de uma árvore que sangra.

Confirma então aquilo que suspeitava: o filho era defeituoso. Tão escasso de tamanho que os dedos do pai se assustam e recuam no escuro. Como se diz na sua aldeia: há crianças que têm raízes nas pedras. E é mais a raiva do que a tristeza que faz Baraza crispar as mandíbulas.

De repente, ele se ergue, decidido. Embrulha o menino num pano, coloca-o num caixote e leva-o para fora do casebre. Atravessa os escuros atalhos até chegar ao pátio da casa onde reside. Amarra o caixote ao selim da sua velha bicicleta, toma a estrada de areia que vai até à cidade. No caminho, várias vezes parece escutar um choro ténue vindo das estranhas da caixa. Detém-se, preocupado. Uma criança chorando no meio da noite terá a sua voz para sempre tomada pelas feiticeiras. Depois, volta a ficar tranquilo. Aquele pranto não passa de uma ilusão. Não é possível que o filho saiba chorar. Aquele recém-nascido ainda não começara a viver.

Uma semana depois, Baraza regressa à aldeia. Veio pedalando célere para chegar antes do fim do dia. Sabia que a esposa estaria dentro de casa, deitada como a tinha deixado na maternidade. Estava certo de que Farai não daria conta da sua chegada. As casas da aldeia não possuem janelas. As paredes são tão espessas que apenas os parentes as atravessam. Para isso, porém, é preciso que a travessia aconteça durante o dia. À noite, as paredes tornam-se ainda mais espessas. É por isso que ninguém chega depois do pôr do sol.

É nessa hora do poente que Baraza entra em casa junto com a bicicleta. Amarra-a nas traves do tecto com nós tão apertados como se nunca mais a fosse usar. Da penumbra emerge um fio de voz.

– Onde fostes, marido?

O homem não responde. Junto à fogueira prepara um chá. Sopra na chávena de alumínio, os olhos enevoados pelo vapor.

– Onde está o meu filho? – pergunta a mulher.

– Entreguei-o.

– A quem?

– A uma enfermeira. Uma do hospital. Disse-me que tratava dele.

– Conhecia essa enfermeira?

– O que interessa isso?

– Porque o levou de mim?

– Não fui eu quem o levou. Você sabe disso, mulher.

Farai levanta-se e pontapeia a chaleira. E logo se arrepende. Pede desculpa, diz que foi sem querer, que tropeçou. Está cansada. Não dorme há dias, o seu corpo ainda parece estar em trabalho de parto. O marido levanta-se para recolher a chaleira e volta a colocá-la sobre as pedras da fogueira.

– Quero ver essa mulher – declara Farai.

– Que mulher?

– Essa que ficou com o meu filho…

– Nunca mais me peça tal coisa.

Em silêncio, Baraza reúne pedaços de lenha e volta a acender o fogo. A mulher acena com a cabeça como se o homem lhe tivesse falado. E começa a preparar a refeição. Depois, o homem come sozinho enquanto a mulher o contempla. Sem dizer palavra, Farai estende a esteira para que, saciada a fome, ele se deite e repouse. Veio de longe, o marido. Veio empurrando o seu próprio corpo do outro lado do rio.

Quando o homem já dorme, Farai deita-se na mesma esteira. Enrosca-se no dorso de Baraza, esse é o seu modo de se ir embora. Porque é ela a enfermeira. É ela a mulher. É ela a mulher a quem o marido entregou o seu filho perpétuo.

sexta-feira, março 27

Saudades


Vergonha de viver

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo. Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero ficar só! grita a alma do tímido que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o quente aconchego das pessoas. Vai, Carlos, vai ser gauche na vida. (Não sei se estou citando Drummond do modo certo, escrevo de cor.)

E para pedir aumento de salário – a tortura. Como começar? Apresentar-se com fingida segurança de quem sabe quanto vale em dinheiro – ou apresentar-se como se é, desajeitado e excessivamente humilde.

O que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de repente cheio de audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que parece contundente. Mas logo depois, espantado, sente-se mal, julga imerecido o aumento, fica todo infeliz.

Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação deserta. Donde se telefonava para a fazenda que ficava a meia hora dali, num caminho perigosíssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo. Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida.

Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava à minha frente. Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando finalmente cheguei à fazenda não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente cair nos braços do fazendeiro.

Nessa fazenda que recebia hóspedes e que era maravilhosa com seus bichos, sofri horrores. Só depois de uns três dias é que comecei a conversar com os outros hóspedes e a me descontrair na hora das refeições, pois eu tinha vergonha de comer na frente de estranhos e muita fome.

Lá estava um japonês que me perguntou se eu jogava xadrez. Respondi audaciosamente que ele me ensinasse, que eu aprenderia logo e jogaria com ele. E de repente me vi tendo que enfrentar tantas regras de jogo e com vergonha de não aprender. Mas logo em seguida aprendi superficialmente a jogar. Acontece que, creio eu, por puro acaso dei um xeque-mate no japonês que não quis mais jogar comigo. Senti-me infeliz, achava que o japonês não me perdoaria e que não gostava de mim. Fiquei muito tímida com ele. Foi pois com enorme espanto que o ouvi me dizer na hora da despedida, com uma delicadeza toda oriental que não elogia na cara, o que seria sufocante para a minha timidez. E ele disse: “Agradeço aos seus pais por terem feito você.”

De 12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês. Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida mais complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão-branco cozido na água e sal. Era o castigo de minha desenvoltura de tímida.

E quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.

Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.

Aos nove anos escrevi uma peça de teatro em três atos, que coube dentro de quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava do amor aos nove precoces anos.

quinta-feira, março 26

Cama pronta pra quarentena


Ao correr da máquina

Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva, enquanto que a chamada compreensão é tão limitada. Perdi amigos. Não entendo a morte. Mas não tenho medo de morrer. Vai ser um descanso: um berço enfim. Não a apressarei, viverei até a última gota de fel. Não gosto quando dizem que tenho afinidade com Virgínia Woolf (só a li, aliás, depois de escrever o meu primeiro livro): é que não quero perdoar o fato de ela se ter suicidado. O horrível dever é ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver a própria realidade. Descobrir a verdade. E, para sofrer menos, embotar-me um pouco. Pois não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer, se sinto totalmente o que as outras pessoas são e sentem? Eu vivo na delas mas não tenho mais força. Vou viver um pouco na minha. Vou me impermeabilizar um pouco mais. – Há coisas que jamais direi: nem em livros e muito menos em jornal. E não direi a ninguém no mundo. Um homem me disse que no Talmude falam que há coisas que se podem contar a muitos, há outras a poucos, e outras a ninguém. Acrescento: não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Sinto que sei de umas verdades. Mas não sei se as entenderia mentalmente. E preciso amadurecer um pouco mais para me achegar essas verdades. Que já pressinto. Mas as verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não, nem pensem que vou falar em Deus: é um segredo meu.

Está fazendo um dia lindo de outono. A praia estava cheia de um vento bom, de uma liberdade. E eu estava só. E naqueles momentos não precisava de ninguém. Preciso aprender a não precisar de ninguém. É difícil, porque preciso repartir com alguém o que sinto. O mar estava calmo. Eu também. Mas à espreita, em suspeita. Como se essa calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto me fascina.

Com duas pessoas eu já entrei em comunicação tão forte que deixei de existir, sendo. Como explicar? Olhávamo-nos nos olhos e não dizíamos nada, e eu era a outra pessoa e a outra pessoa era eu. É tão difícil falar, é tão difícil dizer coisas que não podem ser ditas, é tão silencioso. Como traduzir o profundo silêncio do encontro entre duas almas? É dificílimo contar: nós estávamos nos olhando fixamente, e assim ficamos por uns instantes. Éramos um só ser. Esses momentos são o meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de: estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que estou atingindo um plano mais alto de humanidade. Foram os momentos mais altos que jamais tive. Só que depois... Depois eu percebi que para essas pessoas esses momentos de nada valiam, elas estavam ocupadas com outras. Eu estivera só, toda só. É uma dor sem palavra, de tão funda. Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. Música não ouço há bastante tempo pois estou procurando me dessensibilizar. Mas um dia desses fui pegada desprevenida, ao ver o filme "Cada um vive como quer". Tinha música e eu chorei. Não é vergonha chorar. É vergonha eu contar em público que chorei. Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então.

Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal. Eu queria um emprego de poucas horas por dia, digamos duas ou três horas, e que me fizesse (o emprego) lidar com pessoas. Tenho jeito para isso, embora pareça um pouco ausente às vezes. Mas, quando estou com uma pessoa verdadeira, fico verdadeira também. Se vocês pensam que vou recopiar o que estou escrevendo ou corrigir este texto, estão enganados. Vai é assim mesmo. Só que lerei para corrigir erros datilográficos.

A propósito de uma pessoa de quem estou me lembrando agora e que usa uma pontuação completamente diferente da minha, digo que a pontuação é a respiração da frase. Acho que já disse uma vez. Escrevo à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética? Porque parece que em jornal se tem de ser terrivelmente explícito. Sou explícita? Pouco se me dá.

Agora vou interromper para acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo.

Voltei. Estou agora pensando em tartarugas. Quando escrevi sobre bichos, disse, de pura intuição, que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim a ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou escrever sobre tartarugas. Elas me interessam muito. Aliás, todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento. Parece que, se fomos modelados, sobrou muita matéria energética e formaram-se os bichos. Para que serve, meu Deus, uma tartaruga? O título do que estou escrevendo agora não devia ser “Ao correr da máquina”. Devia ser mais ou menos assim, em forma interrogativa: “E as tartarugas?” E quem me lê se diria: é verdade, há muito tempo que não penso em tartarugas. Agora vou acabar mesmo. Adeus. Até sábado que vem.

Ilumina em qualquer tempo


Freio de arrumação

Dizem que a literatura é como a vida, mas essa frase também pode ser lida de trás para a frente. Desde que a Luz existe, a experiência humana na Terra é perpetuada e compreendida porque organizada em narrativas. É onde o real e as ficções se misturam.

Nesse jogo, as histórias criadas pela imaginação podem ser a reprodução estética do mundo material. Mas elas também se antecipam ao que chamamos de realidade. Quer uma prova? O novo coronavírus dá um freio de arrumação na existência humana e nos coloca num cenário que parece saído de um livro.

Freio de arrumação enquanto trafegávamos na pista da intolerância, do egoísmo, do capitalismo selvagem, da sede de poder. Somente isso, convenhamos, renderia um argumento e tanto para se construir uma novela, uma ficção.


O Covid-19, na sua natureza silenciosa e invisível, traz uma resposta, objetiva, a um questionamento que muitas vezes é feito pelos interessados em literatura: para que servem os clássicos? Pegue o livro “A Peste”, romance escrito em 1947 por um dos mais importantes escritores do século passado, o franco-argelino Albert Camus.

Conta a história que se passa na cidade de Orã, na Argélia, onde os habitantes vivem o cotidiano tranquilamente até que ratos começam a aparecer do subterrâneo. Os bichos morrem, aos milhares, transmitindo a peste e obrigando a população a sofrer dramas semelhantes ao que nós, brasileiros, vivemos hoje.

Primeira resposta objetiva: comprovando que a vida é feita em narrativas, os livros parecem mais integrais do que a realidade que vivemos (ou que vemos). Além de contar a situação de epidemia, Camus, o autor do clássico, nos leva a repensar a condição humana e os nossos papéis.

Na chamada vida real, nem sempre temos consciência dos nossos momentos. A gente não presta atenção na vida. Lendo, sim. “A peste” é uma representação da vida com reflexão. Agora, o novo coronavírus, assim como a doença do romance, nos favorece a enxergar nossos limites e fraquezas.

Estamos sendo obrigados a encontrar ou a desmistificar princípios. Estamos tendo uma possibilidade única de pensar sobre a ética. Ou sobre as virtudes. Ou sobre a espiritualidade. Há, de fato, um limiar pequeno entre os clássicos, a narrativa histórica, a vida.

No freio de arrumação e na literatura, a peste reorienta não apenas a nossa maneira de ver o mundo. Mas, também, o próprio mundo: o Covid-19 levou para dormir até São Paulo, a cidade que nunca dorme. O Rio, pelo menos por enquanto, deixou de ser maravilhoso.

Nesse isolamento a que estamos obrigados, nenhum caminho leva a Roma, as muralhas da China ficaram prestes a ruir, não se vê mais romantismo nas gôndolas em Veneza, e apagaram-se as luzes de Paris. Quando sairmos da quarentena, e voltarmos para as ruas, ninguém será o mesmo. Seremos narrativas.
Cícero Belmar

quarta-feira, março 25

Navegação em tempos digitais


A leitura é a maior das amizades

A amizade, a amizade que diz respeito aos indivíduos, é sem dúvida uma coisa frívola, e a leitura é uma amizade. Mas pelo menos é uma amizade sincera, e o facto de ela se dirigir a um morto, a uma pessoa ausente, confere-lhe algo de desinteressado, de quase tocante. E além disso uma amizade liberta de tudo quanto constitui a fealdade dos outros. Como não passamos todos, nós os vivos, de mortos que ainda não entraram em funções, todas essas delicadezas, todos esses cumprimentos no vestíbulo a que chamamos deferência, gratidão, dedicação e a que misturamos tantas mentiras, são estéreis e cansativas. Além disso, — desde as primeiras relações de simpatia, de admiração, de reconhecimento, as primeiras palavras que escrevemos, tecem à nossa volta os primeiros fios de uma teia de hábitos, de uma verdadeira maneira de ser, da qual já não conseguimos desembaraçar-nos nas amizades seguintes; sem contar que durante esse tempo as palavras excessivas que pronunciámos ficam como letras de câmbio que temos que pagar, ou que pagaremos mais caro ainda toda a nossa vida com os remorsos de as termos deixado protestar. Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.

 Tania Samoshkina
Com os livros, não há amabilidade. Estes amigos, se passarmos o serão com eles, é porque realmente temos vontade disso. A eles, pelo menos, muitas vezes só os deixamos a contragosto. E quando os deixamos, não temos nenhum desses pensamentos que estragam a amizade: — Que terão eles pensado de nós? — Não tivemos falta de tacto? — Teremos agradado? — nem o medo de sermos esquecidos por um deles. Todas estas agitações da amizade expiram no limiar dessa amizade pura e calma que é a leitura. Também não há deferência; só rimos com o que diz Molière na exata medida em que lhe achamos graça; quando ele nos aborrece, não temos medo de mostrar um ar aborrecido, e quando estamos decididamente fartos de estar com ele, pomo-lo no seu lugar tão bruscamente como se ele não tivesse nem gênio nem celebridade. A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós falamos para os outros, mas calamo-nos para conosco mesmos. É por isso que o silêncio não traz consigo, como a palavra, a marca dos nossos defeitos, das nossas caretas. Ele é puro, é verdadeiramente uma atmosfera. Entre o pensamento do autor e o nosso não interpõe elementos irredutíveis refratários ao pensamento, os nossos egoísmos diferentes. A própria linguagem do livro é pura (se o livro for digno desta palavra), tornada transparente pelo pensamento do autor que dele retirou tudo quanto não fosse ele próprio até o transformar na sua imagem fiel; cada uma das frases, no fundo, semelhante às outras, dado que todas são ditas através da inflexão única de uma personalidade; daí uma espécie de continuidade, que as relações da vida e o que estas associam ao pensamento como elementos que lhe são estranhos excluem e que permite muito rapidamente seguir o próprio fio do pensamento do autor, os traços da sua fisionomia que se refletem neste espelho tranquilo. Sabemos apreciar os traços de cada um deles sem termos necessidade de que sejam admiráveis, pois é um grande prazer para o espírito distinguir essas pinturas profundas e amar com uma amizade sem egoísmo, sem frases, como dentro de nós mesmos.
Marcel Proust, "O Prazer da Leitura"

terça-feira, março 24

Boa viagem!

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Vamos disseminar o vírus da leitura

A maior herança que podemos deixar para nossos filhos (e netos) é o gosto e hábito pela leitura. Em tempos de coronavírus, nada mais oportuno do que estimular pais, avós, tios e todos os que estão colaborando nos mutirões de apoio às famílias para tratar desse assunto.

São comprovadas as vantagens de habituar as crianças com livros e leitura desde o berço. Isso permite que associem o gosto pela leitura ao prazer de estar com um adulto querido. Por isso, falamos em “leitura desde o berço”. Desde cedo, a criança deve receber doses variadas de leitura ao longo do dia – nas brincadeiras da manhã, nas leituras associadas às rotinas do dia, nas leituras no sofá e, sem faltar, nas leituras na hora de dormir.
 

Há várias características de uma boa leitura interativa. É preciso explicar os adjetivos boa e interativa. A boa leitura inclui a vontade de ler, o envolvimento do leitor, a prosódia que reflete a interpretação da leitura com foco na criança. A leitura interativa merece maiores explicações.

A interação natural da criança com os livros é colocá-los na boca. Isso ela faz com qualquer objeto – a criança apreende o mundo pelos sentidos. A boca está associada à necessidade e prazer da alimentação. Se não for de comer, pode servir para lamber, mastigar… Enfim, a criança tem suas diversas formas de explorar novos objetos. Livros de pano, livros grossos com lados arredondados, tudo isso evita problemas e ajuda a aproximação da criança com o livro.

Mas tem muito mais. A interação é a conversa em torno do livro – da capa, da contracapa, do autor, da ilustradora, das ilustrações, do enredo, dos ritmos, das músicas associadas. Tudo pode ser objeto de conversa, de interação. Na medida em que a criança cresce, a interação vai se sofisticando – ele identifica os livros, palavras, repete algumas, demonstra preferências. Nada a ver com interrogatórios ou com questionários “cobrando” a leitura.


Mas tem mais. A interação está na conversa – relacionar o que está no livro com o que está no mundo e vice-versa: o carro, o trem, o cachorro, a menina que visita a avó, e assim por diante. É dessa forma que a criança vai aprendendo a estabelecer relação entre o mundo da leitura e a leitura do mundo – a frase de efeito é de Marisa Lajolo.

A leitura interativa é que faz a diferença. Esta é uma das razões pelas quais os estudiosos do tema acreditam na inconveniência dos textos eletrônicos para esta faixa etária. Mas a principal razão vai agora: eletrônicos estão associados com entrega, abandono da criança. O livro físico exige a presença do adulto, e a interação é que faz toda a diferença.

Esta é uma área em que o Brasil vem evoluindo, mas muito pouco em relação a outros países. A quantidade de livros publicados é enorme, mas a qualidade deixa muito a desejar. Saudades da Cosac-Naif! Predominam ainda os livros politicamente corretos, os livros que querem ensinar valores e boas maneiras a qualquer custo ou os livros que querem fazer gracinha com as palavras, mas que raramente conseguem sucesso. Claro que muitos livros excelentes, com boas histórias, mesmo para crianças de zero a quatro anos. E sempre há os clássicos – sempre é possível encontrar boas edições deles.

Em 2010 me apaixonei pelo tema. A razão: tinha obtido sucesso com programas de alfabetização, mas para fazer a criança chegar bem ao 5º ano do ensino fundamental precisava começar mais cedo – com a formação do gosto e hábito pela leitura. No Instituto Alfa e Beto, produzimos um catálogo chamado “Os 600 livros que toda criança deve ler antes de chegar na escola”. O catálogo está superado, mas a ideia permanece: 6 anos, 100 livros por ano, 2 livros por semana. Uma dieta saudável.

E produzimos também um vídeo explicando e ilustrando como fazer leitura interativa.

Em tempos de coronavírus, vale estimular a sociedade a valorizar os livros e a leitura interativa em casa. E, quem puder, que ajude os que não podem a ter acesso a livros e às formas de fazer uma boa leitura. Especialmente nesses duros tempos que vamos enfrentar. Essa, sim, é uma pandemia que deve contaminar a todos.

segunda-feira, março 23

Um quadro na parede, por um tempo


Vendas de livros

No Reino Unido, com a situação de confinamento provocada pelo Coronavírus, as vendas de livros dispararam. Nada melhor para enriquecer o espírito, aprender, desenvolver capacidades e passar bem o tempo. Os britânicos já sabem disso há muito (já tiveram 86% de pessoas que compravam e liam livros regularmente); mas em Portugal não sabemos ainda o que vai acontecer, até porque passámos do analfabetismo real ao funcional num abrir e fechar de olhos e nunca conseguimos formar uma população francamente leitora. Ainda assim, tenho recebido imensos e-mails e mensagens com iniciativas e actividades em redor da leitura, da escrita e dos escritores que podemos acompanhar de casa. E achei especialmente graça a uma delas: a criação de um clube de leitura da Josefinas, uma boa marca nacional de sabrinas (e outros sapatos). Chama-se Josefina's Book Club e pode ser acompanhado no Instagram da marca. Foi criado sob o signo de Malala Yousafzai: «Um professor, uma criança, um livro, uma caneta, pode mudar o mundo.» Mesmo sem fazer parte do clube, hoje aconselho, por sugestão deum Extraordinário, a leitura de A Lição de Anatomia, de Philip Roth. Humor não lhe falta e precisamos dele nestes dias.

Recomendação da Espanha

Paloma Valdivia

A árvore da ciência

Sim, é a velha história da árvore da ciência: melhor não provar do fruto e não saber. Viva a gente, leitor, como você e eu, que só temos uma ideia vaga daquilo que nos ocorre nas entranhas e, enquanto a febre não sobe aos quarenta, a dor não pede gritos e a tontura não vira vertigem, – achamos que tudo vai bem.

Já os tristes doutores, que fizeram o seu reino no mundo das tripas, o seu ofício é o saber, e no saber está a tragédia. Não conseguem dissociar o homem do médico – nem sequer nos braços da mulher amada. Sei de uma dama que, tendo ao colo a cabeça do seu doutor predileto, murmurou liricamente para ele: “Está ouvindo o bater do meu coração?” E ele, erguendo os olhos: “Ouço, sim, meu bem. Por sinal você está com a sua boa aortite...”

Enquanto há mocidade, na casa dos vinte, dos trinta anos, tudo para eles vai bem; mocidade, mesmo em médico, tem queda para se considerar imortal. Mas assim que eles chegam à zona dos quarenta, começam as preocupações. O doutor entra a ser o seu próprio paciente. A se tornar consciente das artérias, do fígado e mais vísceras. Suspeitas de úlcera – de hepatite, de nefrite: as possibilidades são riquíssimas. Contudo, essas suspeitas vagas não são nada, até que o infeliz chega à faixa crucial – a dos cinquenta anos. Porque aí começam as realidades. Ele vai descobrindo, com os próprios sentidos atentos, o desgaste da máquina. A pressão que sobe. O tônus que baixa. A menor tolerância para o álcool. Ninguém mais do que ele tem a consciência progressiva de que algo se muda, algo se extravia – e aos poucos perde a insolência de ser homem, em troca da humildade de ser velho. E assim vai se entregando, vai cedendo – quando um dia, ao tomar a própria pressão arterial...

Mas é melhor contar um caso que exemplifique a tese. Não há como um apólogo (no caso, autêntico) para fazer entendida uma teoria.

Era um doutor, nosso conhecido. Solteiro, ou antes solteirão, pois já fizera os 52. Boa figura, boa prosa, bem tratado – era pessoa que cuidava de si, graças a essa tendência que têm os solteirões de se supervalorizarem, em vista do cerco que ainda lhes fazem as damas, no mercado matrimonial. O nosso herói, ainda no rol dos bons partidos, aproveitava a situação. Tinha as suas amigas, levava-as ao Municipal, às boates (ficava muito bem em black-tie). Convidava-as a jantarinhos íntimos, não sei se tinha gravuras no seu apartamento, mas tinha eletrola e bons discos. Médico, como disse, tinha um serviço hospitalar do qual se orgulhava, pelo qual brigava, – era mesmo a menina dos seus olhos. Esqueci de dizer também que o homem era abastado e bem nascido – o que lhe favorecia ainda mais os êxitos profissionais e sociais. Enfim, não posso afirmar que fosse um príncipe, porque entre outras deficiências menores não sabia dirigir e não tinha automóvel, mas na hierarquia do society podia ser seguramente um marquês.

Pois um belo dia o nosso homem, ao descer do lotação, defronte do hospital, sentiu uma leve tontura. Foi coisa rápida, com pouco já estava de uniforme, batia um papo, tomava café, brincava com uma acadêmica, dava uns gritos na enfermeira, iniciava a visita na enfermaria. E eis que o primeiro doente (que o detestava), antes de dizer se melhorara da falta de ar, olhou-o bem e comentou: “O senhor hoje está com a cara ruim, hem, doutor?” E a enfermeira, também com ódio, ajudou: “Eu já tinha reparado”. Impressionado com aquela unanimidade que se seguira à tontura, o doutor, terminada a visita foi à sala dos médicos e chamou um colega mais íntimo: “Fulano, vem cá, me tira a pressão”. Fulano zombou, perguntou o que ele estaria planejando para a noite, mas o outro insistiu, tiraram. O paciente logo notou no amigo aquela expressão característica que os médicos pretendem ser de impenetrabilidade e não passa de uma cara muitíssimo agourenta, capaz de assustar o mais bravo. E Fulano falou, grave: “Meu caro, a gente vai ver de brincadeira e sempre acha qualquer coisa. Talvez seja a emoção do exame – por outro lado você já não é nenhuma criança – mas a pressão está a dezesseis”. E Fulano volta ao jocoso: “Cuidado com o programa desta noite!”

Nada mais precisou ser dito. Nosso doutor era suficientemente médico para saber o que significava aquela pressão a dezesseis. E já que entrara a deslizar na ladeira das suspeitas, fez como certos maridos – quis saber tudo. Dosagem de ureia – e o papelinho do laboratório lhe aumentou o frio do estômago: 0,55. Colesterol? Aumentado. Densidade de urina – um pouco baixa. Sim, "um pouco". Só "um pouco". Tudo passava "um pouco" do normal, não era ainda a moléstia, a morte – mas era um aviso. E ele resolveu consultar a sumidade. Foi ao consultório do mestre com aquela humildade característica dos profissionais diante do superior técnico. Submeteu-se como um cordeiro. O professor leu os exames, pediu outros, auscultou, mediu, confirmou: “Sim, um início de arteriosclerose, – talvez com ligeiro comprometimento renal, muito encontradiço na idade do colega. Mas com cuidados – higiene, dieta, não pensaremos em coisas sérias por muitos anos ainda, não é mesmo?” E o professor riu, citando-se a si mesmo, com a sua pressão de dezoito a vinte, seus problemas gástricos... Como se aquilo consolasse, um velho com os pés na sepultura, todo o mundo estava vendo!

E estava instilado o veneno. O doutor começou a ler – e de autor em autor foi aumentando as suspeitas. Quem sabe não seria uma nefrosclerose maligna? De qualquer forma, o homem aconselhou repouso e, – primeira etapa, ele tratou de abandonar o serviço, o seu precioso e amado serviço, – mas que o cansava demais. Arranjou uma sinecura, por aí. Bebida também – e renunciou ao uísque. Dieta – e renunciou aos prazeres de gourmet. Para poder renunciar a outras gulodices, renunciou às boates, ao Municipal. Com o passar dos meses, e um ano, e outro, de renúncia em renúncia, o solteirão chibante e bom partido já não é mais que um velho – e cauteloso, e escravo da dieta e dos remédios, escravo das artérias e dos rins – a ter pesadelos cada vez que aumenta um miligrama na ureia, sabedor de todas as hipóteses prováveis, eternamente a temê-las, a espreitá-las, a evitá-las. Enfim, um morto a prestações.

***
E se passaram dez anos nessa agonia, em que o nosso amigo praticamente não viveu.

No mês passado morreu, afinal; de um câncer de pulmão que em dois meses o levou. – Sim, um câncer, que não tinha nada com a história.

sábado, março 21

Fique ligado


George RR Martin está a fazer a sua quarentena em Westeros

Os milhões de admiradores de Crónicas de Gelo e Fogo desesperavam desde 2011, altura da edição do quinto volume da saga, para que George RR Martin finalizasse o sexto tomo, que chega depois do fim da adaptação televisiva de A Guerra dos Tronos. Agora, George RR Martin anunciou no seu site que está em isolamento, assistido por apenas um elemento do seu staff, e de regresso ao seu território ficiconal: “Verdade seja dita, estou a passar mais tempo em Westeros do que no mundo real, a escrever todos os dias. As coisas estão bem negras nos Sete Reinos… mas não tão sombrias como poderão ficar aqui fora”, postou. O escritor de 71 anos sossega ainda os medos dos leitores fiéis: “Para aqueles de vocês que possam estar preocupados comigo, sim, estou consciente de que sou pertenço à população mais vulnerável, dada a minha idade e condição física. Mas sinto-me bem e estamos a tomar todas as medidas adequadas.”

George RR Martin reitera que não vai sair nem estar com outras pessoas, tendo ainda decidido fechar o seu cinema – o Jean Cocteau em Santa Fé, no Novo México – mas mantendo, por enquanto, as portas abertas da livraria Beastly Boooks, embora esta tenha cancelado leituras públicas ou sessões de autógrafos. Mas o inventor de personagens tão marcantes como Jon snow e a mãe dos dragões faz o elogio da leitura face ao clima de quarentena vivido em todo o lado, afirmando que “ler é a melhor forma de passar as horas vazias”.

Escritor habituado a tecer narrativas complexas, habitadas por muitos personagens e marcadas por um ritmo vertiginoso e voltefaces (muitos leitores viam o seu apego aos personagens recompensado com a crueldade de os ver brutalmente eliminados a seguir…), Martin recorda, neste texto, que a fantasia sempre foi o seu território mas que, por estes dias, ao ouvir as notícias, sente-se a viver numa espécie de romance de ficção científica. “Mas, infelizmente, não o tipo de ficção científica que, em criança, eu sonhava em viver, com cidades em Marte, robots domésticos programados com as Três Leis, e carros voadores. Nunca gostei assim tanto de histórias sobre pandemias…” E George RR Martin termina o post com uma mensagem universal que tanto Westeros como o mundo assolado por coronavírus podem seguir: “Stay well, my friends. Better to be safe than sorry.”