sábado, março 28

O filho perpétuo

A guerra carregou as pessoas, os seus próprios filhos desapareceram como se fossem ondas, nuvens, plumas sem peso. A guerra é um mar que se afoga sozinho. Foi pelo regresso do mar que Baraza pediu a Deus pelo dia de hoje

Baraza senta-se num velho tronco da mangueira. Ocupa aquele assento com a gentileza de uma sombra. Do outro lado do terreiro, à distância de uma vida, fica a improvisada maternidade da aldeia: quatro estacas de madeira sustentando uma casota de capim e adobe. Baraza espera que a sua mulher, Farai, dê à luz aquele que será, jura ele, o último dos seus filhos. Proclama alto essa certeza como se decretasse o fim de toda a humanidade.

Sentado nesse velho tronco, Baraza vai afiando o silêncio. Com essa lâmina ele irá golpear o tempo da espera. No casebre em frente abre-se, enfim, uma porta e emergem as parteiras cantando. É um rapaz, conclui. Se fosse uma menina elas dançavam. É assim que se procede na sua aldeia.


– Não entre já – manda uma das parteiras. – Deixe que os ossos da criança sequem mais um pouco.

– O parto já aconteceu – diz uma outra. E acrescenta – Mas esse menino ainda continua a nascer.

Baraza volta a sentar-se, surpreendido com a docilidade com que aceita as ordens das parteiras. Há momentos em que devemos obedecer às mulheres. Este é um deles, condescende ele. Retira do bolso uma velha garrafa de tontonto. Ergue a cabeça, leva a garrafa à boca. Enche os olhos de sol enquanto a garrafa se foi vazando. Quando os lábios se tornam vidro, Baraza faz estalar a língua nos dentes. Se a intenção era impressionar alguém, melhor teria sido ter ficado quieto. Não há ninguém naquele terreiro. Passam-lhe pela cabeça os seus cinco filhos. Todos nascidos naquele mesmo casebre, daquelas mesmas mãos, daquele mesmo ventre.

Os filhos estão a levar-me o rosto, pensa ele, fazendo deslizar os dedos pelas rugas da testa. Das vezes anteriores, aquele terreiro estava cheio de gente, a espera tinha sido partilhada. A guerra carregou as pessoas, os seus próprios filhos desapareceram como se fossem ondas, nuvens, plumas sem peso. A guerra é um mar que se afoga sozinho. Foi pelo regresso do mar que Baraza pediu a Deus pelo dia de hoje.

As parteiras finalmente se retiram. Passam por ele e executam uma espécie de vénia. Uma delas sugere que regresse no dia seguinte. Não se visita no escuro quem acabou de nascer. Baraza faz de conta que escuta. E permanece calado e quieto como se fosse feito da madeira do assento.

Deixa que a noite ganhe peso, aproxima-se da maternidade e abre a porta sem ruído. Quase tropeça na mulher, deitada numa esteira que ocupa todo o quarto. Está adormecida, vencida pela exaustão. Baraza ajoelha-se para separar o menino dos braços da mãe. Esforço vão. Não são braços que fundem os dois corpos. São lianas de uma árvore que sangra.

Confirma então aquilo que suspeitava: o filho era defeituoso. Tão escasso de tamanho que os dedos do pai se assustam e recuam no escuro. Como se diz na sua aldeia: há crianças que têm raízes nas pedras. E é mais a raiva do que a tristeza que faz Baraza crispar as mandíbulas.

De repente, ele se ergue, decidido. Embrulha o menino num pano, coloca-o num caixote e leva-o para fora do casebre. Atravessa os escuros atalhos até chegar ao pátio da casa onde reside. Amarra o caixote ao selim da sua velha bicicleta, toma a estrada de areia que vai até à cidade. No caminho, várias vezes parece escutar um choro ténue vindo das estranhas da caixa. Detém-se, preocupado. Uma criança chorando no meio da noite terá a sua voz para sempre tomada pelas feiticeiras. Depois, volta a ficar tranquilo. Aquele pranto não passa de uma ilusão. Não é possível que o filho saiba chorar. Aquele recém-nascido ainda não começara a viver.

Uma semana depois, Baraza regressa à aldeia. Veio pedalando célere para chegar antes do fim do dia. Sabia que a esposa estaria dentro de casa, deitada como a tinha deixado na maternidade. Estava certo de que Farai não daria conta da sua chegada. As casas da aldeia não possuem janelas. As paredes são tão espessas que apenas os parentes as atravessam. Para isso, porém, é preciso que a travessia aconteça durante o dia. À noite, as paredes tornam-se ainda mais espessas. É por isso que ninguém chega depois do pôr do sol.

É nessa hora do poente que Baraza entra em casa junto com a bicicleta. Amarra-a nas traves do tecto com nós tão apertados como se nunca mais a fosse usar. Da penumbra emerge um fio de voz.

– Onde fostes, marido?

O homem não responde. Junto à fogueira prepara um chá. Sopra na chávena de alumínio, os olhos enevoados pelo vapor.

– Onde está o meu filho? – pergunta a mulher.

– Entreguei-o.

– A quem?

– A uma enfermeira. Uma do hospital. Disse-me que tratava dele.

– Conhecia essa enfermeira?

– O que interessa isso?

– Porque o levou de mim?

– Não fui eu quem o levou. Você sabe disso, mulher.

Farai levanta-se e pontapeia a chaleira. E logo se arrepende. Pede desculpa, diz que foi sem querer, que tropeçou. Está cansada. Não dorme há dias, o seu corpo ainda parece estar em trabalho de parto. O marido levanta-se para recolher a chaleira e volta a colocá-la sobre as pedras da fogueira.

– Quero ver essa mulher – declara Farai.

– Que mulher?

– Essa que ficou com o meu filho…

– Nunca mais me peça tal coisa.

Em silêncio, Baraza reúne pedaços de lenha e volta a acender o fogo. A mulher acena com a cabeça como se o homem lhe tivesse falado. E começa a preparar a refeição. Depois, o homem come sozinho enquanto a mulher o contempla. Sem dizer palavra, Farai estende a esteira para que, saciada a fome, ele se deite e repouse. Veio de longe, o marido. Veio empurrando o seu próprio corpo do outro lado do rio.

Quando o homem já dorme, Farai deita-se na mesma esteira. Enrosca-se no dorso de Baraza, esse é o seu modo de se ir embora. Porque é ela a enfermeira. É ela a mulher. É ela a mulher a quem o marido entregou o seu filho perpétuo.

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