De repente
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Pierre Pivet |
E de repente, caminhando nesse dia de novembro, atribulado de deveres, no ano trigésimo quinto de minha história confusa e malbaratada, quando todas as amarguras já bebi, nem de todo sábio, nem de todo bobo, não tendo outro propósito no espírito senão o de abrir bem os olhos, pegar os objetos, ouvir, provar os vinhos turvos, respirar este aroma vegetal de outras tardes antigas, receber, enfim, a dádiva dos sentidos e cumpri-la, aquecendo-me ao sol, molhando-me na chuva e no mar, de repente, em meu caminho, cruzando por um cego embriagado e crianças de uniforme, imaginando com remorso que a gente esperdiça tempo demais a trabalhar sem amor, de repente, sem qualquer disposição para o jornalismo, grave e sereno às quatro horas da tarde, empenhado em não deixar o dia partir inutilmente, dedicando-me com toda a honestidade a enamorar-me do mundo e deste momento inelutável, como quem segura um vaso de louça, de repente, repito, ocorreu-me de novo o milagre, e doeu-me — coisa espantosa — uma saudade magnífica de Paris na primavera, os plátanos agitando as ramas no ar silente, os bancos à beira do rio, onde li e reli que sob a ponte Mirabeau corre o Sena, e a alegria sempre vinha após a pena, e era uma saudade mais de mim a vadiar pelas ruas e os bosques, indo e vindo pelo cais da margem esquerda, remexendo livros empoeirados, admirando a cor e o imponderável de Paris, brincando com as pontes o eterno jogo da poesia, afeiçoando-me até morrer pela ilha de São Luís, as torres góticas encostadas em luz de ouro, e outras cores, outras ramagens, ruas que faziam por si mesmas o meu destino, os vinhos tintos do crepúsculo, as brisas eufóricas, uma saudade, disse eu, sem jeito, feérica, rue Gît-Le-Cœur, rue de Hautefeuille, rue de la Harpe, rue du Chat Qui Pêche, uma saudade que me dispersava, fatalizando-me suavemente, inclinando-me às águas quiméricas do tempo, como me perco no olhar de quem amo.
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