Nesse jogo, as histórias criadas pela imaginação podem ser a reprodução estética do mundo material. Mas elas também se antecipam ao que chamamos de realidade. Quer uma prova? O novo coronavírus dá um freio de arrumação na existência humana e nos coloca num cenário que parece saído de um livro.
Freio de arrumação enquanto trafegávamos na pista da intolerância, do egoísmo, do capitalismo selvagem, da sede de poder. Somente isso, convenhamos, renderia um argumento e tanto para se construir uma novela, uma ficção.
O Covid-19, na sua natureza silenciosa e invisível, traz uma resposta, objetiva, a um questionamento que muitas vezes é feito pelos interessados em literatura: para que servem os clássicos? Pegue o livro “A Peste”, romance escrito em 1947 por um dos mais importantes escritores do século passado, o franco-argelino Albert Camus.
Conta a história que se passa na cidade de Orã, na Argélia, onde os habitantes vivem o cotidiano tranquilamente até que ratos começam a aparecer do subterrâneo. Os bichos morrem, aos milhares, transmitindo a peste e obrigando a população a sofrer dramas semelhantes ao que nós, brasileiros, vivemos hoje.
Primeira resposta objetiva: comprovando que a vida é feita em narrativas, os livros parecem mais integrais do que a realidade que vivemos (ou que vemos). Além de contar a situação de epidemia, Camus, o autor do clássico, nos leva a repensar a condição humana e os nossos papéis.
Na chamada vida real, nem sempre temos consciência dos nossos momentos. A gente não presta atenção na vida. Lendo, sim. “A peste” é uma representação da vida com reflexão. Agora, o novo coronavírus, assim como a doença do romance, nos favorece a enxergar nossos limites e fraquezas.
Estamos sendo obrigados a encontrar ou a desmistificar princípios. Estamos tendo uma possibilidade única de pensar sobre a ética. Ou sobre as virtudes. Ou sobre a espiritualidade. Há, de fato, um limiar pequeno entre os clássicos, a narrativa histórica, a vida.
No freio de arrumação e na literatura, a peste reorienta não apenas a nossa maneira de ver o mundo. Mas, também, o próprio mundo: o Covid-19 levou para dormir até São Paulo, a cidade que nunca dorme. O Rio, pelo menos por enquanto, deixou de ser maravilhoso.
Nesse isolamento a que estamos obrigados, nenhum caminho leva a Roma, as muralhas da China ficaram prestes a ruir, não se vê mais romantismo nas gôndolas em Veneza, e apagaram-se as luzes de Paris. Quando sairmos da quarentena, e voltarmos para as ruas, ninguém será o mesmo. Seremos narrativas.Cícero Belmar
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